segunda-feira, 17 de junho de 2013

História: Almançor por Alexandre Herculano

História: Almançor por Alexandre Herculano

Logo após a morte de Al-Hakam II, seu filho único, Hisham II, foi declarado califa.

Contava apenas dez anos, idade pouco adequada para o governo do vasto império que herdara. Sua mãe, Subh, tinha sido a favorita do califa defunto e ganhara assim ilimitada influência. Era seu principal valido e secretário Abu Amir Muhammad ibn Abdullah ibn Abi Amir, homem que, pela afabilidade do trato, gentileza e dotes do espírito, merecera a estimação e confiança de Sunh e do próprio Al-Hakam. Assim, na menoridade do príncipe, Muhammad foi elevado ao grau de hájibe ou primeiro-ministro e considerado como tutor de Hisham. Unido com Subn, ele vinha a ser o verdadeiro califa, não no nome, mas no essencial, que era o supremo poder. Depois de procurar por todos os modos tornar-se aceite pelos poderosos, o hájibe obteve grande popularidade declarando serem as suas intenções quebrar as tréguas com os cristãos e guerreá-los até os reduzir inteiramente à obediência do seu pupilo. Para isto começou por assentar pazes com Balkin Ibn Zeiri, que de novo corria o Magreb e tinha cercado Ceuta. Obrigou-se este a mandar-lhe anualmente certo número de cavaleiros berberes, com recíprocas obrigações e mediante uma soma de dinheiro ajustada entre ambos.

Dispostas assim as coisas, Abi Amir partiu para as fronteiras orientais, onde ordenou aos vális e caides fizessem levas de tropa para correrem duas vezes por ano as terras dos cristãos.

Voltando às fronteiras ocidentais, mandou avançar as tropas do Gharb e com elas fez a sua primeira tentativa na Galiza, onde pelo inesperado daquele ímpeto pôde a salvo devastar campos, queimar aldeias, roubar gado e fazer cativos, com que voltou a Córdova contente da boa estreia desta algara (correria), que foi como o sinal da guerra de extermínio que resolvera fazer aos inimigos do islamismo.

Desde esta época até o fim do século X a luta com os cristãos foi contínua, e o implacável hájibe reduziu-os à sua mínima dimensão. Não cansaremos o leitor com a narração de tão repetidas entradas, correrias e batalhas, até porque teremos adiante de fazer de tudo isso menção um pouco mais particularizada. 

Em quase todas estas empresas Muhammad saiu vitorioso, e o sangue cristão correu em torrentes. Um sem-número de cativos, ricos despojos e o terror que incutia o seu nome foram a recompensa das suas fadigas e tornaram-no o mais célebre capitão daquele tempo. Ao passo, porém, que assim se fazia recear dos estranhos, o hábil hájibe soube conservar o poder de que se apossara e engrandecer-se a ponto que nos últimos anos da sua vida a Espanha muçulmana quase se esquecera de que acima dele estava um fantasma sem autoridade e sem força, a quem deixara o título vão de califa. É do progresso desse engrandecimento que falaremos aqui.

Eis, em resumo, como um dos principais historiadores árabes, Al-Makkari, narra os princípios e o aumento da influência do famoso hájibe. Muhammad (diz ele), que Al-Hakam elevara do cargo de cádi ao de vizir, aproveitou-se da sua situação para usurpar o poder em dano do moço Hisham. Ajudado por Jafar Ibn Othman Al-Muchafi, um dos hájibes do califa, por Ghalib, governador de Medina-Celi, e pelos eunucos do palácio, começou por mandar matar Al-Mugheyrab, irmão de Al-Hakam. Fomentou depois a discórdia entre os próceres do império, que recorreram às armas e mutuamente se destruíram. Proibiu aos vizires o contacto com o califa, a não ser de se retirarem sem lhe falarem. Atraiu com liberalidades a soldadesca e os eruditos dando-lhes cargos: com a força conteve as sedições.

Dentro em breve, sem autorização do califa ou, para melhor dizer, ignorando-o este, enviou tropas contra alguns personagens, conjurados em ódio dele e resolvidos a oporem-se aos seus ambiciosos desígnios, expulsando-os dos cargos que ocupavam. Soprou então a má vontade entre o hájibe Al-Muchafi e os eunucos eslavos, que foram deitados fora do palácio em número de oitocentos. Seguiu-se casar com a filha de Ghalib, o célebre general do califa defunto. Seduziu com lisonjas e artifícios, mandou matar ou submeteu pela violência todas as pessoas de quem podia ter receio ou que mereciam distinção entre os chefes árabes. Desafrontado assim de todos os que podiam opor-se à sua omnipotente autoridade, tratou de assegurar o exército introduzindo aí indivíduos seus afeiçoados, quase todos berberes ou de outras gentes africanas. Dadas estas providências, tirou a Hisham toda a ingerência nos negócios, e se o califado continuou nominalmente a existir, isso redundava só em proveito e grandeza pessoal do primeiro-ministro. Renovando a guerra contra os infiéis, tirou aos árabes os postos mais altos e favoreceu com eles os berberes que mandara vir de África, procedendo em tudo como se fora sua a soberania. Edificou para si um castelo a que pôs nome Az-Zahirah, onde meteu os seus tesouros e de que fez uma espécie de arsenal. Tomou então o título de al-Hajib al-Mansur (o ministro vitorioso) e no seu estilo usou de expressões de monarca.

Leis, proclamações, decretos, saía tudo em nome dele; por ele davam nas mesquitas a colecta como pelo califa, e o seu nome gravado nas moedas igualmente o foi no selo do Estado. Criou ministros, encheu o exército de berberes e de foragidos cristãos e rodeou-se de um tropel de escravos e guardas para firmar o seu poder e esmagar qualquer émulo que tentasse disputar-lho. Em suma, não deixou a Hisham mais do que a prerrogativa de ser mencionado nas orações públicas e nas moedas com os títulos vãos que ele lhe dava de barato.

Tal é o retrato que Al-Makkari nos faz do célebre hájibe de Córdova. Carregado, talvez, é ele; mas as obras de Muhammad condizem com os traços principais. O segredo do seu poder era, de feito, a largueza para com a soldadesca, preferindo em tudo os africanos e os cristãos, que corriam a alistar-se debaixo das suas bandeiras para guerrearem os próprios correligionários pelo acolhimento e favor que achavam nele.

Assim chegou a passar mostra geral em Córdova, dizem os autores árabes, a duzentos mil cavaleiros e seiscentos mil infantes, número evidentemente exagerado, mas que, ainda dando-lhe o devido desconto, devia ser superior ao das antigas forças do império. Para entreter esta multidão de gente de guerra e enriquecê-la de despojos, cumprindo ao mesmo tempo a promessa que fizera de combater sem descanso os estados cristãos, repetia regularmente duas vezes por ano as entradas no território inimigo, que deixava assolado. Aproveitando habilmente as rixas e ódios que pululavam entre os adversários do islamismo, fazia reverter tudo em engrandecimento próprio. A disciplina severa que introduziu nos exércitos muçulmanos não obstou à afeição dos soldados, os quais viam nele um chefe que não só guardava a todos rigorosa justiça, mas também arriscava nas batalhas a vida corno o último dos que lhe obedeciam. Foi assim que em cinquenta campanhas pôde ir gradualmente reduzindo a monarquia fundada por Pelágio quase ao estado dos primeiros anos da sua existência, ou antes levando-a a um ponto próximo da sua derradeira ruína.


As vitórias obtidas dos cristãos por Muhammad, que em consequência delas tomara o apelido por que mais conhecido é, o de Almançor, não tinham sido alcançadas por ele haver empregado exclusivamente as suas forças e cuidados na guerra, que fazia quase a um tempo na Galiza, em Leão e em Castela. A província do Magreb chamava igualmente a atenção do hájibe e distraía em parte os recursos do califado de Córdova. O califa fatimita ordenara ao seu general Balkin favorecesse as tentativas que o antigo emir dos Ziridas Al-Hassan fazia para reconquistar o senhorio daquela parte da África. Assim protegido, Al-Hassan chegou de feito a apoderar-se de uma parte dos seus anteriores domínios e a sitiar em Ceuta o irmão do hájibe, Omar.

Apenas, porém, Almançor o soube, enviou seu filho Abd al-Malik , mancebo de poucos anos, mas já de grande reputação, com um exército contra o Zirida, que, não se atrevendo a resistir, submeteu-se. A submissão foi inútil, porque o hájibe o mandou assassinar. Abd al-Malik, nomeado então governador do Magreb, tomou pelo feliz resultado daquela empresa, que dirigira em tão verdes anos, o título de al-Muzaffar.

A partida deste para Espanha, daí a pouco tempo, trouxe novas perturbações na África. Balkin tornou a apoderar-se de Fez e Almançor a enviar tropas de reforço aos generais andaluzes que naquelas partes sustentavam a supremacia do califado de Córdova. Depois de vários sucessos, Almançor viu restabelecida essa espécie de supremacia nominal, porque na realidade o poder estava nas mãos dos chefes das tribos berberes, que ora seguiam a voz dos Fatimídas, ora a dos Benu Umeyyas, conforme um ou outro partido lhes oferecia mais facilidade para satisfazerem as suas ambições. Foi nesta conjuntura e em consequência de semelhante situação do país que certo Zeyri Ibn Atiyah, chefe dos zenetas, chegou a ocupar a dignidade de emir do Magreb que por tanto tempo pertencera à dinastia de Idris. Ibn Atiyah, que obtivera de Almançor o emirado, tinha-se feito assaz poderoso, e o hájibe começou a recear quebra na sua fidelidade. A fim de evitar o perigo nomeou-o váli ou governador do distrito de Córdova, para o obrigar a residir na corte e poder ele vigiá-lo. Veio Zeyri e, apesar de todos os afagos e pompas com que Almançor o tratou, concebeu-lhe grande aversão vendo o despotismo com que governava a Espanha e conservava em tutela abjecta o próprio califa. Entretanto, Yadu Ibn Yala, chefe das tribos dos Benu Yeferun, aproveitando a sua ausência, acometera e tomara Fez, e ocupara o lugar de emir. Serviu isto de razão ou de pretexto a Zeyri para voltar à África. Chegado a Tânger, Zeyri marchou contra o seu adversário, que venceu, apoderando-se novamente de Fez. Dentro de pouco ele tinha firmado o seu poder no Magreb, e quando, finalmente, se julgou aparelhado para a resistência fez suprimir o nome do hájibe na chótebra ou oração pública e expulsou dos seus lugares os ministros andaluzes que regiam diversos distritos do emirado. Almançor mandou partir imediatamente para África um exército capitaneado pelo eunuco Vadheh, que Zeyri destroçou. Então Abd al-Malik, o filho do hájibe, passou o mar com tropas numerosas e, apesar da longa e desesperada resistência de Zeyri, veio a subjugar de novo o Magreb, reduzindo Fez e voltando à Península depois de deixar reconhecida por toda a parte a autoridade do califa, ou para melhor dizer, a de Almançor.

Este, na sua imensa ambição de glória, não contente dos triunfos por toda a parte obtidos, quis também ilustrar-se com o esplendor que cercava os nomes de Abd ar-Rahman III e de Al-Hakam II  Nos intervalos de repouso que lhe davam as guerras, anualmente renovadas contra os estados cristãos, o omnipotente hájibe procurou com incansável diligência promover na corte de Córdova o progresso das letras e ciências.

Costumava trazer consigo no exército poetas que celebrassem as suas vitórias e, voltando à capital, o seu palácio convertia-se numa espécie de academia, onde eram recebidos e festejados todos os sujeitos notáveis por engenho ou saber. Visitava as escolas e colégios e, assentando-se entre os escolares, não consentia que os professores interrompessem o ensino ou mostrassem o menor sinal de respeito para com ele. Não poupava dinheiro em recompensar os talentos extraordinários, e assim a fama da ciência, literatura e civilização da Espanha, especialmente da capital, atraía para esta cidade não só as pessoas estudiosas da África, mas também as dos países cristãos da Europa; e até os sábios mais ilustres do Oriente não duvidavam de vir exercer o ministério de professores na academia de Córdova.

O termo de tantas grandezas e prosperidades chegou finalmente para Almançor, o mais terrível açoute do cristianismo espanhol depois dos primeiros invasores árabes. Começara o século XI e, apesar de tantas campanhas em que entrara, dos imensos estragos que fizera no território dos inimigos e de quanto encurtara os limites deste com a conquista ou destruição de muitas povoações importantes, o hájibe não estava ainda saciado de sangue. Na Primavera de 1002 fez passar da África para a Península novas levas de soldados, dispondo tudo para a invasão que daí a pouco efectuou. O extraordinário dos preparativos para este acometimento produziu graves receios entre os cristãos, mas o excesso do temor salvou-os; porque, pondo de parte as suas discórdias passadas, uniram-se enfim todos para defenderem a causa comum. 

Leoneses, castelhanos, navarros, vascónios e até algumas tropas de além dos Pirenéus saíram a receber Almançor perto das fontes do Douro. Foi sanguinolenta a batalha e duvidoso o resultado; mas os sarracenos retiraram-se durante a noite, porque a sua perda fora imensa. A maior foi a do hájibe, que, tendo ai adoecido, segundo uns, e segundo outros havendo ficado ferido no recontro, o que é mais provável, foi conduzido a Medina Celi e lá faleceu, substituindo-o no mando das tropas seu filho Abd al-Malik. Tinha o famoso hájibe sessenta e cinco anos de idade, havendo governado vinte e cinco o império de Córdova, nos quais resgatou com a energia, com a boa administração, com a glória militar e com o amor das letras os meios pouco legítimos que empregara para se elevar e reter em si a autoridade suprema.

Abd al-Malik

Subh, a mãe de Hisham, ainda vivia, e o califa conservava-se na espécie de infância perpétua a que havia sido condenado. A sua existência escoava-se brandamente no meio dos perfumes dos jardins de Azzahrat, ao som dos cantos e danças das formosas escravas, nas delícias dos banquetes, na ebriedade, enfim, de contínuos deleites. A velha sultana, fiel à memória de Almançor, fez declarar primeiro-hájibe seu filho Abd al-Malik  digno na verdade de suceder naquele importante cargo, ao menos como capitão valoroso e experimentado. 

Desejoso de vingar a morte de seu pai, renovou as entradas nas terras dos cristãos. As primeiras campanhas parece terem tido só um resultado importante, a ruína da cidade de Leão; mas depois de uma breve trégua de dois anos (1005 a 1007), renovada a guerra, os estragos foram terríveis, ficando destruídas muitas povoações. Vingaram-se, porém, os cristãos no ano seguinte (1008) destroçando um exército que entrara na Galiza capitaneado pelo próprio Abd al-Malikque, retirando-se para Córdova, aí faleceu nesse mesmo ano, não faltando suspeitas de haver sido envenenado.

Abd al-Rahman Ibn Sanchul (filho de Abda, nome árabe que adoptou uma das esposas de Almançor, filha de Sancho Garcés II de Pamplona y Urraca Fernández, e por isso chamado de Sanchuelo, nas crónicas cristãs)

Abd al-Rahman Ibn Sanchul, filho segundo de Almançor, foi escolhido para sucessor de seu
irmão. Esperava-se que ele imitasse tanto um como outro nas qualidades que os tinham tornado dignos do supremo poder. Era, porém, Abd al-Rahman de bem diversa têmpera.

Descuidado das pesadas obrigações do seu cargo, passava os dias em exercícios militares e as noites em festas dissolutas. Gozava assim da intimidade do califa, e apesar da sua incapacidade era aceite ao vulgacho, que se contentava das parecenças que ele tinha exteriormente com Almançor, das suas boas maneiras e, sobretudo, da liberalidade que mostrava. 

Não tinha filhos o califa e, posto que fosse de idade de os ter, a afeição particular que mostrava a Abd al-Rahman animou este a pretender que Hisham o declarasse por seu sucessor. Fê-lo assim o tímido califa. Sabido pelos Benu Umeyyas mais próximos parentes de Hisham o que se tramava contra a sua linhagem, cuidaram em impedi-lo. 

O moço Muhammad, primo do califa e que esperava suceder-lhe, colocou-se, como era natural, à frente das resistências. Os ódios contra a família de Almançor, ou dos Al-Amiris, ardiam debaixo das cinzas comprimidos pelo temor: isto bastou para os excitar. Os nobres, principalmente, inclinaram-se a Muhammad, e em breve este se achou à frente de um partido numeroso e sobretudo audaz. Com ele tentou e obteve assenhorear-se de Córdova, donde Abd al-Rahman saíra para uma expedição contra os cristãos, e a apoderar-se de Hisham, a quem obrigou a abdicar nele a coroa.

Sabendo o que se passava na corte e confiado na aura popular que ali tinha, o hájibe deu imediatamente volta. Não lhe custou a entrar em Córdova; mas ao chegar à praça do alcazar, não só as tropas de Muhammad, mas também os principais da cidade com muito povo miúdo se lhe opuseram, começando uma sanguinolenta briga. Falharam as esperanças de Abd al-Rahman, que assentavam em tão movediço alicerce como é o favor da plebe. Esta declarou-se-lhe geralmente adversa e, apesar do esforço com que ele e os seus combatiam, sendo ferido, caiu nas mãos de Muhammad, que ordenou fosse pregado numa cruz; e assim acabou (1009) em suplício ignominioso o sucessor de Abd al-Malik e filho do célebre Almançor.

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