História: Almançor por Alexandre Herculano
Logo após a morte de Al-Hakam II, seu filho único, Hisham II, foi declarado califa.
Contava
apenas dez anos, idade pouco adequada para o governo do
vasto império que herdara.
Sua mãe, Subh, tinha sido a favorita do califa defunto e
ganhara assim
ilimitada influência. Era seu principal valido e secretário Abu Amir Muhammad ibn Abdullah ibn Abi Amir,
homem que, pela afabilidade do trato, gentileza e dotes do espírito, merecera
a estimação e confiança de Sunh e do próprio Al-Hakam. Assim, na menoridade
do príncipe, Muhammad foi elevado ao grau de hájibe ou
primeiro-ministro e
considerado como tutor de Hisham. Unido com Subn, ele vinha a ser o
verdadeiro califa,
não no nome, mas no essencial, que era o supremo poder. Depois de
procurar por todos
os modos tornar-se aceite pelos poderosos, o hájibe obteve grande
popularidade declarando
serem as suas intenções quebrar as tréguas com os cristãos e
guerreá-los até os
reduzir inteiramente à obediência do seu pupilo. Para isto começou
por assentar pazes
com Balkin Ibn Zeiri, que de novo corria o Magreb e tinha cercado
Ceuta. Obrigou-se
este a mandar-lhe anualmente certo número de cavaleiros berberes,
com recíprocas
obrigações e mediante uma soma de dinheiro ajustada entre ambos.
Dispostas assim
as coisas, Abi Amir partiu para as fronteiras orientais, onde ordenou
aos vális e caides
fizessem levas de tropa para correrem duas vezes por ano as terras
dos cristãos.
Voltando
às fronteiras ocidentais, mandou avançar as tropas do Gharb e com
elas fez a sua
primeira tentativa na Galiza, onde pelo inesperado daquele ímpeto
pôde a salvo devastar
campos, queimar aldeias, roubar gado e fazer cativos, com que voltou
a Córdova
contente da boa estreia desta algara (correria), que foi como o sinal
da guerra de
extermínio que resolvera fazer aos inimigos do islamismo.
Desde
esta época até o fim do século X a luta com os cristãos foi
contínua, e o implacável
hájibe reduziu-os à sua mínima dimensão. Não cansaremos o leitor
com a narração de
tão repetidas entradas, correrias e batalhas, até porque teremos
adiante de fazer de
tudo isso menção um pouco mais particularizada.
Em quase todas
estas empresas Muhammad saiu vitorioso, e o sangue cristão correu em torrentes. Um
sem-número de cativos,
ricos despojos e o terror que incutia o seu nome foram a recompensa
das suas fadigas
e tornaram-no o mais célebre capitão daquele tempo. Ao passo,
porém, que assim
se fazia recear dos estranhos, o hábil hájibe soube conservar o
poder de que se apossara
e engrandecer-se a ponto que nos últimos anos da sua vida a Espanha muçulmana
quase se esquecera de que acima dele estava um fantasma sem
autoridade e sem
força, a quem deixara o título vão de califa. É do progresso
desse engrandecimento que
falaremos aqui.
Eis,
em resumo, como um dos principais historiadores árabes, Al-Makkari,
narra os
princípios e o aumento da influência do famoso hájibe. Muhammad (diz ele), que Al-Hakam elevara
do cargo de cádi ao de vizir, aproveitou-se da sua situação para
usurpar o
poder em dano do moço Hisham. Ajudado por Jafar Ibn Othman
Al-Muchafi, um dos hájibes
do califa, por Ghalib, governador de Medina-Celi, e pelos eunucos do
palácio, começou
por mandar matar Al-Mugheyrab, irmão de Al-Hakam. Fomentou depois a discórdia entre
os próceres do império, que recorreram às armas e mutuamente se
destruíram. Proibiu
aos vizires o contacto com o califa, a não ser de se retirarem sem lhe falarem. Atraiu com liberalidades
a soldadesca e os eruditos dando-lhes cargos: com a força conteve as
sedições.
Dentro
em breve, sem autorização do califa ou, para melhor dizer,
ignorando-o este,
enviou tropas contra alguns personagens, conjurados em ódio dele e
resolvidos a oporem-se
aos seus ambiciosos desígnios, expulsando-os dos cargos que
ocupavam. Soprou
então a má vontade entre o hájibe Al-Muchafi e os eunucos eslavos,
que foram deitados
fora do palácio em número de oitocentos. Seguiu-se casar com a
filha de Ghalib,
o célebre general do califa defunto. Seduziu com lisonjas e
artifícios, mandou matar
ou submeteu pela violência todas as pessoas de quem podia ter receio
ou que mereciam
distinção entre os chefes árabes. Desafrontado assim de todos os
que podiam opor-se
à sua omnipotente autoridade, tratou de assegurar o exército
introduzindo aí indivíduos
seus afeiçoados, quase todos berberes ou de outras gentes africanas.
Dadas estas
providências, tirou a Hisham toda a ingerência nos negócios, e se o
califado continuou
nominalmente a existir, isso redundava só em proveito e grandeza
pessoal do primeiro-ministro.
Renovando a guerra contra os infiéis, tirou aos árabes os postos
mais altos
e favoreceu com eles os berberes que mandara vir de África,
procedendo em tudo como
se fora sua a soberania. Edificou para si um castelo a que pôs nome
Az-Zahirah, onde
meteu os seus tesouros e de que fez uma espécie de arsenal. Tomou
então o título de al-Hajib al-Mansur (o ministro vitorioso) e no seu estilo usou de
expressões de monarca.
Leis,
proclamações, decretos, saía tudo em nome dele; por ele davam nas mesquitas
a colecta como pelo califa, e o seu nome gravado nas moedas
igualmente o foi
no selo do Estado. Criou ministros, encheu o exército de berberes e
de foragidos cristãos
e rodeou-se de um tropel de escravos e guardas para firmar o seu
poder e esmagar
qualquer émulo que tentasse disputar-lho. Em suma, não deixou a
Hisham mais do
que a prerrogativa de ser mencionado nas orações públicas e nas
moedas com os títulos
vãos que ele lhe dava de barato.
Tal
é o retrato que Al-Makkari nos faz do célebre hájibe de Córdova.
Carregado, talvez,
é ele; mas as obras de Muhammad condizem com os traços principais.
O segredo do
seu poder era, de feito, a largueza para com a soldadesca, preferindo
em tudo os africanos
e os cristãos, que corriam a alistar-se debaixo das suas bandeiras
para guerrearem
os próprios correligionários pelo acolhimento e favor que achavam
nele.
Assim
chegou a passar mostra geral em Córdova, dizem os autores árabes, a
duzentos mil
cavaleiros e seiscentos mil infantes, número evidentemente
exagerado, mas que, ainda
dando-lhe o devido desconto, devia ser superior ao das antigas forças
do império. Para
entreter esta multidão de gente de guerra e enriquecê-la de
despojos, cumprindo ao mesmo
tempo a promessa que fizera de combater sem descanso os estados
cristãos, repetia
regularmente duas vezes por ano as entradas no território inimigo,
que deixava assolado.
Aproveitando habilmente as rixas e ódios que pululavam entre os
adversários do
islamismo, fazia reverter tudo em engrandecimento próprio. A
disciplina severa que introduziu
nos exércitos muçulmanos não obstou à afeição dos soldados, os
quais viam nele
um chefe que não só guardava a todos rigorosa justiça, mas também
arriscava nas batalhas
a vida corno o último dos que lhe obedeciam. Foi assim que em
cinquenta campanhas
pôde ir gradualmente reduzindo a monarquia fundada por Pelágio
quase ao estado
dos primeiros anos da sua existência, ou antes levando-a a um ponto
próximo da sua
derradeira ruína.
As
vitórias obtidas dos cristãos por Muhammad, que em consequência
delas tomara
o apelido por que mais conhecido é, o de Almançor, não tinham
sido alcançadas
por ele haver empregado exclusivamente as suas forças e cuidados na guerra,
que fazia quase a um tempo na Galiza, em Leão e em Castela. A
província do Magreb
chamava igualmente a atenção do hájibe e distraía em parte os
recursos do califado
de Córdova. O califa fatimita ordenara ao seu general Balkin
favorecesse as tentativas
que o antigo emir dos Ziridas Al-Hassan fazia para reconquistar o
senhorio daquela
parte da África. Assim protegido, Al-Hassan chegou de feito a
apoderar-se de uma
parte dos seus anteriores domínios e a sitiar em Ceuta o irmão do
hájibe, Omar.
Apenas,
porém, Almançor o soube, enviou seu filho Abd al-Malik , mancebo de poucos
anos, mas já de grande reputação, com um exército contra o Zirida, que, não se atrevendo
a resistir, submeteu-se. A submissão foi inútil, porque o hájibe o
mandou assassinar. Abd al-Malik, nomeado então governador do Magreb, tomou pelo feliz resultado
daquela empresa, que dirigira em tão verdes anos, o título de al-Muzaffar.
A
partida deste para Espanha, daí a pouco tempo, trouxe novas
perturbações na África.
Balkin tornou a apoderar-se de Fez e Almançor a enviar tropas de
reforço aos generais
andaluzes que naquelas partes sustentavam a supremacia do califado de Córdova.
Depois de vários sucessos, Almançor viu restabelecida essa espécie
de supremacia
nominal, porque na realidade o poder estava nas mãos dos chefes das
tribos berberes,
que ora seguiam a voz dos Fatimídas, ora a dos Benu Umeyyas, conforme
um ou
outro partido lhes oferecia mais facilidade para satisfazerem as suas
ambições. Foi nesta
conjuntura e em consequência de semelhante situação do país que
certo Zeyri Ibn Atiyah,
chefe dos zenetas, chegou a ocupar a dignidade de emir do Magreb que
por tanto
tempo pertencera à dinastia de Idris. Ibn Atiyah, que obtivera de
Almançor o emirado,
tinha-se feito assaz poderoso, e o hájibe começou a recear quebra
na sua fidelidade.
A fim de evitar o perigo nomeou-o váli ou governador do distrito
de Córdova,
para o obrigar a residir na corte e poder ele vigiá-lo. Veio Zeyri
e, apesar de todos
os afagos e pompas com que Almançor o tratou, concebeu-lhe grande
aversão vendo
o despotismo com que governava a Espanha e conservava em tutela
abjecta o próprio
califa. Entretanto, Yadu Ibn Yala, chefe das tribos dos Benu Yeferun, aproveitando
a sua ausência, acometera e tomara Fez, e ocupara o lugar de emir.
Serviu isto
de razão ou de pretexto a Zeyri para voltar à África. Chegado a
Tânger, Zeyri marchou
contra o seu adversário, que venceu, apoderando-se novamente de Fez.
Dentro de
pouco ele tinha firmado o seu poder no Magreb, e quando, finalmente,
se julgou aparelhado
para a resistência fez suprimir o nome do hájibe na chótebra ou
oração pública
e expulsou dos seus lugares os ministros andaluzes que regiam
diversos distritos do
emirado. Almançor mandou partir imediatamente para África um
exército capitaneado
pelo eunuco Vadheh, que Zeyri destroçou. Então Abd al-Malik, o filho
do hájibe,
passou o mar com tropas numerosas e, apesar da longa e desesperada
resistência de
Zeyri, veio a subjugar de novo o Magreb, reduzindo Fez e voltando à
Península depois
de deixar reconhecida por toda a parte a autoridade do califa, ou
para melhor dizer,
a de Almançor.
Este,
na sua imensa ambição de glória, não contente dos triunfos por
toda a parte obtidos,
quis também ilustrar-se com o esplendor que cercava os nomes de Abd ar-Rahman III e
de Al-Hakam II Nos intervalos de repouso que lhe davam as guerras, anualmente
renovadas contra os estados cristãos, o omnipotente hájibe procurou
com incansável
diligência promover na corte de Córdova o progresso das letras e
ciências.
Costumava
trazer consigo no exército poetas que celebrassem as suas vitórias
e, voltando
à capital, o seu palácio convertia-se numa espécie de academia,
onde eram recebidos e festejados todos os sujeitos notáveis por engenho ou saber.
Visitava as escolas
e colégios e, assentando-se entre os escolares, não consentia que
os professores interrompessem
o ensino ou mostrassem o menor sinal de respeito para com ele. Não poupava
dinheiro em recompensar os talentos extraordinários, e assim a fama
da ciência,
literatura e civilização da Espanha, especialmente da capital,
atraía para esta cidade
não só as pessoas estudiosas da África, mas também as dos países
cristãos da Europa;
e até os sábios mais ilustres do Oriente não duvidavam de vir
exercer o ministério
de professores na academia de Córdova.
O
termo de tantas grandezas e prosperidades chegou finalmente para
Almançor, o
mais terrível açoute do cristianismo espanhol depois dos primeiros
invasores árabes. Começara
o século XI e, apesar de tantas campanhas em que entrara, dos
imensos estragos
que fizera no território dos inimigos e de quanto encurtara os
limites deste com a
conquista ou destruição de muitas povoações importantes, o hájibe
não estava ainda saciado
de sangue. Na Primavera de 1002 fez passar da África para a
Península novas levas
de soldados, dispondo tudo para a invasão que daí a pouco efectuou.
O extraordinário dos
preparativos para este acometimento produziu graves receios entre os
cristãos, mas
o excesso do temor salvou-os; porque, pondo de parte as suas
discórdias passadas, uniram-se
enfim todos para defenderem a causa comum.
Leoneses, castelhanos, navarros,
vascónios e até algumas tropas de além dos Pirenéus saíram a
receber Almançor perto
das fontes do Douro. Foi sanguinolenta a batalha e duvidoso o
resultado; mas
os sarracenos retiraram-se durante a noite, porque a sua perda fora
imensa. A maior foi
a do hájibe, que, tendo ai adoecido, segundo uns, e segundo outros
havendo ficado ferido
no recontro, o que é mais provável, foi conduzido a Medina Celi e
lá faleceu, substituindo-o
no mando das tropas seu filho Abd al-Malik. Tinha o famoso hájibe sessenta
e cinco anos de idade, havendo governado vinte e cinco o império de
Córdova, nos
quais resgatou com a energia, com a boa administração, com a glória
militar e com o
amor das letras os meios pouco legítimos que empregara para se
elevar e reter em si a autoridade
suprema.
Abd al-Malik
Subh,
a mãe de Hisham, ainda vivia, e o califa conservava-se na espécie de infância
perpétua a que havia sido condenado. A sua existência escoava-se
brandamente no
meio dos perfumes dos jardins de Azzahrat, ao som dos cantos e danças
das formosas
escravas, nas delícias dos banquetes, na ebriedade, enfim, de
contínuos deleites.
A velha sultana, fiel à memória de Almançor, fez declarar
primeiro-hájibe seu
filho Abd al-Malik digno na verdade de suceder naquele importante
cargo, ao menos
como capitão valoroso e experimentado.
Desejoso
de vingar a morte de seu pai, renovou
as entradas nas terras dos cristãos. As primeiras campanhas parece
terem tido só
um resultado importante, a ruína da cidade de Leão; mas depois de
uma breve trégua de
dois anos (1005 a 1007), renovada a guerra, os estragos foram
terríveis, ficando destruídas
muitas povoações. Vingaram-se, porém, os cristãos no ano seguinte
(1008) destroçando
um exército que entrara na Galiza capitaneado pelo próprio Abd al-Malik, que,
retirando-se para Córdova, aí faleceu nesse mesmo ano, não
faltando suspeitas de haver
sido envenenado.
Abd al-Rahman Ibn Sanchul (filho de Abda, nome árabe que adoptou uma das esposas de Almançor, filha de Sancho Garcés II de Pamplona y Urraca Fernández, e por isso chamado de Sanchuelo, nas crónicas cristãs)
Abd al-Rahman Ibn Sanchul, filho segundo de Almançor, foi escolhido para sucessor de
seu
irmão.
Esperava-se que ele imitasse tanto um como outro nas qualidades que
os tinham tornado
dignos do supremo poder. Era, porém, Abd al-Rahman de bem diversa
têmpera.
Descuidado
das pesadas obrigações do seu cargo, passava os dias em exercícios militares
e as noites em festas dissolutas. Gozava assim da intimidade do
califa, e apesar da
sua incapacidade era aceite ao vulgacho, que se contentava das
parecenças que ele tinha
exteriormente com Almançor, das suas boas maneiras e, sobretudo, da liberalidade
que mostrava.
Não tinha filhos o califa e, posto que fosse de idade
de os ter, a
afeição particular que mostrava a Abd al-Rahman animou este a
pretender que Hisham o
declarasse por seu sucessor. Fê-lo assim o tímido califa. Sabido
pelos Benu Umeyyas mais
próximos parentes de Hisham o que se tramava contra a sua linhagem,
cuidaram em impedi-lo.
O moço Muhammad, primo do califa e que esperava suceder-lhe,
colocou-se, como
era natural, à frente das resistências. Os ódios contra a família
de Almançor, ou dos
Al-Amiris, ardiam debaixo das cinzas comprimidos pelo temor: isto
bastou para os excitar.
Os nobres, principalmente, inclinaram-se a Muhammad, e em breve este
se achou
à frente de um partido numeroso e sobretudo audaz. Com ele tentou e
obteve assenhorear-se
de Córdova, donde Abd al-Rahman saíra para uma expedição contra
os cristãos,
e a apoderar-se de Hisham, a quem obrigou a abdicar nele a coroa.
Sabendo
o que se passava na corte e confiado na aura popular que ali tinha, o hájibe
deu imediatamente volta. Não lhe custou a entrar em Córdova; mas ao
chegar à praça
do alcazar, não só as tropas de Muhammad, mas também os
principais da cidade com
muito povo miúdo se lhe opuseram, começando uma sanguinolenta
briga. Falharam
as esperanças de Abd al-Rahman, que assentavam em tão movediço
alicerce como
é o favor da plebe. Esta declarou-se-lhe geralmente adversa e,
apesar do esforço com
que ele e os seus combatiam, sendo ferido, caiu nas mãos de Muhammad, que ordenou
fosse pregado numa cruz; e assim acabou (1009) em suplício
ignominioso o sucessor
de Abd al-Malik e filho do célebre Almançor.
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