História - Reconquista: de Pelágio a Afonso III das Astúrias, por Alexandre Herculano
Canicas
ou Gangas foi desde o tempo de Pelágio a capital das Astúrias:
Fruela fundou
Oviedo, mais ao ocidente, para onde o reino se dilatava, e esta
povoação veio depois
a ser a cabeça da monarquia e a dar-lhe exclusivamente o nome. Os
seus sucessores
parece terem residido com preferência em Pravia, povoação ao
noroeste de Oviedo,
onde Silo, sucessor de Aurélio, assentou a sua residência.
Silo
deveu a escolha que dele fizeram os godos a sua mulher Adosinda,
filha de Afonso
I, o Católico. As causas da influência de Adosinda não no-las revelam as
crónicas quase contemporâneas
que assim o afirmam. Segundo elas, a paz com os muçulmanos subsistiu
no tempo deste príncipe, por ocasião de cuja morte sua viúva
pretendeu fazer coroar
o moço Afonso, filho de Fruela. Mauregato, porém, filho bastardo
de Afonso I, eleito
pelos descontentes, pôde expulsá-lo e obter para si o trono das
Astúrias, que ocupou
seis anos, no fim dos quais morreu em Pravia depois de um reinado
tranquilo e obscuro.
A
reacção da raça visigoda contra a conquista árabe começara na
Espanha poucos anos
depois dessa conquista. Nas ásperas serranias das Astúrias, um
punhado de godos que
não haviam aceitado o jugo dos muçulmanos alevantaram o estandarte
de uma guerra
de religião e de independência que devia durar por mais de sete
séculos até a final
vitória do Evangelho contra o Corão. A batalha de Cangas de Onis,
em que os infiéis
ficaram desbaratados, foi o primeiro anel de uma cadeia contínua de
combates, que
nos fins do século XV veio soldar-se na campa dos derradeiros
defensores de Granada,
quando Fernando e Isabel, os Católicos, conquistaram a capital do
último reino
mourisco da Península. Pelágio foi o capitão destes godos
refugiados nas Astúrias e
o fundador da primeira monarquia cristã da Espanha, depois chamada
de Oviedo e Leão.
Os estados de Pelágio ficaram durante o seu reinado e o de seu filho
Fávila circunscritos
às serras asturianas; mas por morte deste último, cujo governo foi
tão curto quanto
obscuro, sucedeu-lhe um homem extraordinário, o qual dilatou com
repetidas vitórias
os limites do país que nunca aceitara o jugo dos infiéis.
Afonso I das Astúrias (o Católico)
Afonso I (693 - 757),
genro de Pelágio,
subiu ao trono após seu cunhado Fávila e brevemente penetrou com mão armada
pela Galiza até o Douro e por Leão e Castela-a-Velha. Anteriormente
a guerra, ora
ofensiva, ora defensiva, tinha exclusivamente entretido os cristãos:
na época, porém, de
Afonso I as povoações assoladas e os templos reduzidos a ruínas
começaram a surgir de
novo. Depois de largo e glorioso reinado, este príncipe faleceu,
recaindo a escolha dos
godos em seu filho Fruela ou Froila (722 — 768), que o imitou no esforço e foi,
segundo parece, homem
de carácter violento.
Fruela I das Astúrias
Num recontro pouco importante Fruela
desbaratou os árabes
junto a Ponthumium. Depois de apaziguar as rebeliões que ou a
ferocidade do seu
ânimo ou algumas outras causas haviam suscitado na Galiza, domou ao
norte o País Basco, levantado contra ele. As suspeitas que concebera de seu irmão
Vimarano levaram-no
a cometer um fratricídio que a justiça de Deus não deixou impune.
Fruela foi
assassinado pelos godos, os quais, usando do antigo direito
visigótico, recusaram a coroa
a seu filho Afonso, que ou a memória paterna lhes tornava odioso, ou
a imbecilidade
da infância inabilitava para reger um país cujo estado ordinário
era o de guerra
com os sarracenos. Um sobrinho de Afonso I, Aurélio, filho de seu
irmão Fruela
e
primo do rei assassinado, subiu então ao trono, que ocupou durante
mais de seis anos. Por
todo este período os estados dos reis das Astúrias gozaram da paz
externa; mas Aurélio
teve de lutar com um levantamento dos servos, que reprimiu, ou
melhorando a sua
situação, ou constrangendo-os a sujeitarem-se a ela.
Bermudo I das Astúrias
Um
irmão do rei Aurélio foi então chamado a reger os godos:
Vermudo ou Bermudo (760 - 797) havia seguido a vida eclesiástica e sido elevado ao grau de diácono,
o que, apesar
de o excluir da dignidade real, segundo as antigas instituições
visigóticas, não serviu
de impedimento à sua eleição. Naquelas eras, em que a existência
quase bárbara dos
cristãos das Astúrias contrastava profundamente com a civilização
dos muçulmanos da
Espanha e da África, o ânimo generoso e ilustrado de Bermudo I surge
como um farol no
meio das trevas espessas que o rodeiam. A piedade, a demência, a
magnanimidade são
os dotes que os mais antigos historiadores lhe atribuem. Pouco depois
de obter a autoridade
suprema, renovou o exemplo de alguns dos reis visigodos anteriores à conquista
árabe, associando ao governo o filho de Fruela I, duas vezes
repelido do trono,
para por esse meio lhe assegurar a sucessão. Não contente com isto,
apenas o moço
Afonso alcançou conciliar o afecto dos seus súbditos, Bermudo I voltou voluntariamente
ao exercício do ministério sagrado, posto que, contra os cânones recebidos
em Espanha, houvesse esposado Nunila, de quem teve Ramiro, o qual
depois veio
a ser sucessor de Afonso II.
Afonso II das Astúrias
No
período que decorreu desde a morte de Afonso I até à abdicação
de Bermudo I, isto
é, desde o segundo quartel do século viu até os fins dele, o reino
das Astúrias subsistiu
quase sempre pacífico ao lado da dominação sarracena. Mas no
terceiro ano depois
que Afonso II (759/760 — 842) reinava, achamos quebrada a paz entre as duas raças e
os árabes invadindo
as Astúrias. Foram correrias de Afonso nas terras dos muçulmanos
que trouxeram
este acontecimento, ou foi deliberação espontânea deles? É o que
hoje não será
fácil dizer. Certo é, porém, que os invasores, salteados de
improviso pelos cristãos, ficaram
desbaratados. Deste feito data a celebridade de Afonso II, mais
conhecido entre os
historiadores pela denominação de Casto, porque durante o seu
reinado de meio século
sempre se conservou celibatário.
Reinava
neste tempo além dos Pirenéus Carlos, o Grande. Afonso II buscou
aliar-se com
ele, enviando-lhe mensageiros com ricos presentes, provavelmente
despojos duma
correria que se diz ter feito aquém do Douro até às margens do
Tejo.
Estabelecendo
a sua capital em Oviedo, que engrandeceu e adornou de igrejas e
paços, trabalhou
por avivar as instituições do império visigótico que, no meio
duma existência de
perigos e combates, tinham caído em desuso, restaurando ao mesmo
tempo o esplendor
da ordem eclesiástica, reedificando templos e instituindo pastores.
Durante, porém,
estas tentativas de organização social uma revolução o expulsou
do trono, ao qual
os seus partidários dentro em poucos meses o fizeram subir de novo.
Ora vitorioso, ora
vencido pelos sarracenos, com quem teve mais de uma vez guerra,
Afonso morreu em
842. Dizem alguns que ele associara ao governo o filho do seu
antecessor Bermudo I, chamado
Ramiro ou Ranimiro, que de feito lhe sucedeu. É, todavia, certo que
a morte do
velho monarca trouxe, como era natural sendo o reino electivo, graves
dissensões.
Nepociano,
conde do palácio, fez-se aclamar em Oviedo, e Ramiro, que então se
achava na
Bardulia (Castela-a-Velha), correu a disputar-lhe a coroa. Os
soldados de Nepociano abandonaram-no
no momento de virem às mãos com Ramiro, e este pôde colher vivo perto
de Pravia o seu émulo, a quem mandou arrancar os olhos e fechar num
mosteiro para
o resto de seus dias.
Ramiro I das Astúrias
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Seguro
no trono, Ramiro I (790 - 850) obteve várias vitórias dos muçulmanos e repeliu
os piratas
normandos que principiavam então a saltear as costas da Galiza. As
tentativas para
o expulsar do trono renovaram-se ainda por duas vezes, mas de ambas
saiu vencedor.
A vingança que tomou dos cabeças destas rebeliões prova que o
carácter de Ramiro
era bem contrário à brandura do de seu pai.
Ao conde Aldoroito
condenou-o à mesma
pena a que condenara Nepociano, e a Piníolo, que também se
rebelara, mandou matar
juntamente com seus sete filhos. A crueldade de Ramiro estendia-se ao
excesso das
penas que impunha aos criminosos ou supostos tais. Os ladrões
fazia-os cegar, e queimar
todos aqueles que eram acusados de magia. Ramiro I soube assegurar a
herança da
coroa para seu filho: ao menos,
vemos suceder-lhe este sem as lutas que as mais das vezes
trazia a eleição de novo príncipe.
Ordonho I das Astúrias
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Ordonho I (830 — 866), mais valoroso e
feliz ainda que seu pai,
não ajuntou a ferocidade ao esforço. Dedicou todos os seus cuidados
à reedificação de
várias povoações de Leão, da Galiza e dos chamados Campos
Góticos, como foi cidade
de Leão, depois capital do reino do mesmo nome, e as de Tui, Astorga
e Amaia. Isto
parece indicar que o território dos cristãos começava a estar
menos exposto as correrias
dos sarracenos, ou porque as fronteiras se alargavam, ou porque se
defendiam melhor.
O
godo renegado Musa ibn Musa, que se tinha
tornado independente
do emir de Córdova, ousara entrar no território dos cristãos, onde construiu
a fortaleza de Albaida ou Albelda na moderna Rioja. O rei de Oviedo
saiu logo
contra ele, desbaratou-o junto de Clavijo e tomou Albaida. Depois de
repelir uma nova
tentativa dos normandos nas costas da Galiza, Ordonho fez várias
entradas pelas terras
dos inimigos com próspero sucesso, subjugou os bascos, que,
sempre inquietos,
se haviam mais uma vez rebelado, tomou aos infiéis Coria e Salamanca
e reconquistou-lhes
Orense, cidade da Galiza de que, segundo se vê deste sucesso, eles
se haviam
apossado. Continuando nestas guerras com vária fortuna, Ordonho veio
a falecer
em 866, fazendo antes disso eleger seu filho Afonso, ainda criança, por sucessor
do reino.
Entretanto
Fruela, conde ou governador da Galiza, protegido pela nobreza
daquela província, tomava o título de rei e marchava para a capital
à frente de um
exército. Os que tinham aceitado por monarca o filho de Ordonho
abandonaram-no, e
Afonso fugiu de Oviedo para as bandas de Castela. O reinado, porém,
de Fruela foi muito
curto: uma conjuração rebentou na corte, os magnates que lhe eram
adversos assassinaram-no
no seu próprio palácio. O filho de Ordonho voltou então a Oviedo e
foi proclamado
rei (Afonso III das Astúrias, o Grande, 848 — 910).
Afonso III das Astúrias
Afonso III das Astúrias
By Pelagius [Public domain or Public domain], via Wikimedia Commons
Logo
em 867 os bascos rebelaram-se, e Afonso III teve de os combater
por muito
tempo com vária fortuna, terminando a guerra, se crermos as
tradições bascas, pela
concessão de uma espécie de independência a esta raça indomável.
Seguiu-se,
passados três anos, uma guerra violenta com os sarracenos. Para sul
e sueste
o Douro formava a linha mais ordinária das sempre vacilantes
fronteiras entre cristãos
e muçulmanos. Afonso transpôs o rio com o seu exército, ocupou
Salamanca e cercou
Coria, que no reinado antecedente estivera já em poder dos godos.
Obrigado a retirar-se,
os sarracenos entraram pelas províncias cristãs; mas, colhidos em desfiladeiros
onde a cavalaria lhes era inútil, foram completamente desbaratados.
Por
doze anos a história de Afonso III é uma série quase não
interrompida de combates:
ora os seus territórios são invadidos pelos sarracenos, ora ele
invade as províncias
muçulmanas. Vitoriosas as mais das vezes, as armas cristãs
dilataram-se então
principalmente para o lado da antiga Lusitânia: Lamego, Viseu,
Coimbra caíram em
poder do rei de Oviedo, e a devastação chegou até os distritos de
Idanha e ainda até Mérida.
Depois, segundo parece, Afonso recolheu-se aos seus antigos estados
das Astúrias
e Galiza, porque o achamos marchando daquelas partes ao encontro dos
sarracenos, que
haviam posto cerco a Zamora, tomada e fortificada anteriormente por
ele. A batalha
de Polvoraria, junto ao rio Orbiego, em que os muçulmanos foram
destroçados e postos
em fuga, trouxe uma trégua de três anos, no fim da qual a guerra se
ateou de novo.
Depois de penetrar até à serra Morena, em cuja proximidade
desbaratou o exército
árabe que tentara resistir-lhe, o rei de Oviedo retirou-se outra vez
para as Astúrias.
Os infiéis vingaram-se acometendo Castela-a-Velha, onde já se tinha
firmado o
domínio asturiano por meio de muitos lugares fortificados ou
castelos, que deram o nome
à província. Metidos entre os muros das suas fortalezas, os
cristãos resistiram por toda
a parte, e Al-Mundhir, general dos árabes, internou-se para as
bandas de Leão: mas,
sabendo que Afonso III o esperava aí com o seu exército, retrocedeu
para o sudoeste
e veio acampar junto do Orbiego, donde voltou para Córdova.
Dentro
em pouco,
os sarracenos renovaram as hostilidades talando a Navarra e descendo
para Castela
e Leão; mas, rechaçados por toda a parte, tornaram a retirar-se
para Córdova com
grande perda. Cansados de tão dilatadas guerras e de tantas
devastações mútuas, godos
e sarracenos trataram seriamente da paz, que afinal foi jurada entre
o emir de Córdova
e Afonso III e durou por todo o resto do reinado deste príncipe,
isto é, por todo o
largo período de vinte e sete anos.
Os limites dos territórios
cristãos demarcaram-se definitivamente
ao sul e sueste pelo Douro, e o rei de Oviedo pôde dedicar-se a melhorar
o estado interior dos seus domínios, os quais abrangiam já
proximamente um terço
da Península hispânica. Repovoando-os e restabelecendo a ordem em
Leão e em Castela-a-Velha,
alevantou das suas ruínas e fortificou as mais importantes povoações das
fronteiras, como Zamora, Simancas, Donas e Touro, acções que não
contribuíram menos
para lhe adquirir o título de Grande do que as suas vitórias.
Enquanto
Afonso III assim trabalhava em restaurar a vida interna do país
sujeito à sua
autoridade, uma nova guerra vinha perturbar a paz dos cristãos. As
dissensões que por
aquele tempo andavam levantadas entre os sarracenos tinham
quebrado a unidade do governo muçulmano. Córdova ainda era o centro
e cabeça
da Espanha mourisca; porém, em parte das províncias que entestavam
com os estados
de Afonso haviam-se estabelecido pela rebelião alguns potentados independentes.
Tendo Ahmed Ibn Al-Kithi ou Alchaman, como o denominam as crónicas
cristãs, passado ao partido de Omar Ibn Hafssun, o mais poderoso
inimigo do emir
de Córdova, Omar entregou-lhe o poder supremo nos territórios de
Toledo e Talavera.
Aqui, por todos os distritos amotinados contra o emir e, até, por
África, Ahmed
ajuntou um exército de sessenta mil homens e salteou as terras do
rei de Oviedo, cujos
súbditos tornara descuidados a paz feita com o príncipe dos
sarracenos. Os cristãos
que puderam salvar-se acolheram-se às fortificações de Zamora, que
Al-Kithi sitiou
imediatamente, enquanto o governo de Córdova se apressava a
assegurar o rei da Galiza
que desaprovava semelhante invasão. Entretanto Afonso III, recebida
a nova da tentativa
de Ahmed, marchara contra ele. Os dois exércitos encontraram-se nos
campos de
Zamora, e depois de uma batalha bem pelejada os árabes foram
vencidos com espantosa
perda, ficando entre os mortos o próprio Ahmed e seu irmão Abdu
r-Rahman, váli
ou governador de Tortosa. O rei de Oviedo, seguindo a vitória,
dirigiu-se a Toledo com
o intento de reconquistar a antiga capital do império visigótico;
mas as dificuldades do
sítio moveram-no a aceitar um resgate avultado dos habitantes e a
voltar às Astúrias, destruindo
na sua passagem algumas povoações dos sarracenos.
Parecia
que enfim o rei cristão poderia gozar tranquilamente do fruto de
tantas vitórias;
mas as inquietações domésticas tomaram o lugar das lutas com
estranhos. Seu filho
mais velho, Garcia, ajudado pelos irmãos e até, segundo alguns,
pela própria mãe, e
instigado por seu sogro, o conde de Castela Nuno Fernandes, conspirou
para derrubá-lo do
trono. Sabedor das criminosas tentativas do filho, Afonso fê-lo
prender em Zamora
e mandou-o levar em ferros ao castelo de Gauzón. Isto foi como o
sinal de uma rebelião
geral, em que o rei das Astúrias viu entrar todos os outros membros
da sua família.
Seguiu-se uma guerra civil, cujo resultado foi a abdicação, na
aparência voluntária,
mas realmente forçada, de Afonso III, que apenas sobreviveu um ano,
no qual
fez ainda uma entrada nas terras do rebelde Hafssun como simples
general de seu filho.
Na volta desta campanha faleceu em Zamora no fim do ano de 910,
ficando-lhe na história
o mais distinto lugar entre todos os sucessores de Pelágio que o
haviam precedido.
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