segunda-feira, 17 de junho de 2013

História - Reconquista: de Pelágio a Afonso III das Astúrias, por Alexandre Herculano

História - Reconquista: de Pelágio a Afonso III das Astúrias, por Alexandre Herculano


Canicas ou Gangas foi desde o tempo de Pelágio a capital das Astúrias: Fruela fundou Oviedo, mais ao ocidente, para onde o reino se dilatava, e esta povoação veio depois a ser a cabeça da monarquia e a dar-lhe exclusivamente o nome. Os seus sucessores parece terem residido com preferência em Pravia, povoação ao noroeste de Oviedo, onde Silo, sucessor de Aurélio, assentou a sua residência.

Silo deveu a escolha que dele fizeram os godos a sua mulher Adosinda, filha de Afonso I, o Católico. As causas da influência de Adosinda não no-las revelam as crónicas quase contemporâneas que assim o afirmam. Segundo elas, a paz com os muçulmanos subsistiu no tempo deste príncipe, por ocasião de cuja morte sua viúva pretendeu fazer coroar o moço Afonso, filho de Fruela. Mauregato, porém, filho bastardo de Afonso I, eleito pelos descontentes, pôde expulsá-lo e obter para si o trono das Astúrias, que ocupou seis anos, no fim dos quais morreu em Pravia depois de um reinado tranquilo e obscuro.

A reacção da raça visigoda contra a conquista árabe começara na Espanha poucos anos depois dessa conquista. Nas ásperas serranias das Astúrias, um punhado de godos que não haviam aceitado o jugo dos muçulmanos alevantaram o estandarte de uma guerra de religião e de independência que devia durar por mais de sete séculos até a final vitória do Evangelho contra o Corão. A batalha de Cangas de Onis, em que os infiéis ficaram desbaratados, foi o primeiro anel de uma cadeia contínua de combates, que nos fins do século XV veio soldar-se na campa dos derradeiros defensores de Granada, quando Fernando e Isabel, os Católicos, conquistaram a capital do último reino mourisco da Península. Pelágio foi o capitão destes godos refugiados nas Astúrias e o fundador da primeira monarquia cristã da Espanha, depois chamada de Oviedo e Leão. Os estados de Pelágio ficaram durante o seu reinado e o de seu filho Fávila circunscritos às serras asturianas; mas por morte deste último, cujo governo foi tão curto quanto obscuro, sucedeu-lhe um homem extraordinário, o qual dilatou com repetidas vitórias os limites do país que nunca aceitara o jugo dos infiéis. 

Afonso I das Astúrias (o Católico)

Afonso I (693 - 757), genro de Pelágio, subiu ao trono após seu cunhado Fávila e brevemente penetrou com mão armada pela Galiza até o Douro e por Leão e Castela-a-Velha. Anteriormente a guerra, ora ofensiva, ora defensiva, tinha exclusivamente entretido os cristãos: na época, porém, de Afonso I as povoações assoladas e os templos reduzidos a ruínas começaram a surgir de novo. Depois de largo e glorioso reinado, este príncipe faleceu, recaindo a escolha dos godos em seu filho Fruela ou Froila (722 — 768), que o imitou no esforço e foi, segundo parece, homem de carácter violento. 

Fruela I das Astúrias


Num recontro pouco importante Fruela desbaratou os árabes junto a Ponthumium. Depois de apaziguar as rebeliões que ou a ferocidade do seu ânimo ou algumas outras causas haviam suscitado na Galiza, domou ao norte o País Basco, levantado contra ele. As suspeitas que concebera de seu irmão Vimarano levaram-no a cometer um fratricídio que a justiça de Deus não deixou impune. Fruela foi assassinado pelos godos, os quais, usando do antigo direito visigótico, recusaram a coroa a seu filho Afonso, que ou a memória paterna lhes tornava odioso, ou a imbecilidade da infância inabilitava para reger um país cujo estado ordinário era o de guerra com os sarracenos. Um sobrinho de Afonso I, Aurélio, filho de seu irmão Fruela
e primo do rei assassinado, subiu então ao trono, que ocupou durante mais de seis anos. Por todo este período os estados dos reis das Astúrias gozaram da paz externa; mas Aurélio teve de lutar com um levantamento dos servos, que reprimiu, ou melhorando a sua situação, ou constrangendo-os a sujeitarem-se a ela.

Bermudo I das Astúrias


Um irmão do rei Aurélio foi então chamado a reger os godos: Vermudo ou Bermudo (760 - 797) havia seguido a vida eclesiástica e sido elevado ao grau de diácono, o que, apesar de o excluir da dignidade real, segundo as antigas instituições visigóticas, não serviu de impedimento à sua eleição. Naquelas eras, em que a existência quase bárbara dos cristãos das Astúrias contrastava profundamente com a civilização dos muçulmanos da Espanha e da África, o ânimo generoso e ilustrado de Bermudo I surge como um farol no meio das trevas espessas que o rodeiam. A piedade, a demência, a magnanimidade são os dotes que os mais antigos historiadores lhe atribuem. Pouco depois de obter a autoridade suprema, renovou o exemplo de alguns dos reis visigodos anteriores à conquista árabe, associando ao governo o filho de Fruela I, duas vezes repelido do trono, para por esse meio lhe assegurar a sucessão. Não contente com isto, apenas o moço Afonso alcançou conciliar o afecto dos seus súbditos, Bermudo I voltou voluntariamente ao exercício do ministério sagrado, posto que, contra os cânones recebidos em Espanha, houvesse esposado Nunila, de quem teve Ramiro, o qual depois veio a ser sucessor de Afonso II.

Afonso II das Astúrias


No período que decorreu desde a morte de Afonso I até à abdicação de Bermudo I, isto é, desde o segundo quartel do século viu até os fins dele, o reino das Astúrias subsistiu quase sempre pacífico ao lado da dominação sarracena. Mas no terceiro ano depois que Afonso II  (759/760 — 842) reinava, achamos quebrada a paz entre as duas raças e os árabes invadindo as Astúrias. Foram correrias de Afonso nas terras dos muçulmanos que trouxeram este acontecimento, ou foi deliberação espontânea deles? É o que hoje não será fácil dizer. Certo é, porém, que os invasores, salteados de improviso pelos cristãos, ficaram desbaratados. Deste feito data a celebridade de Afonso II, mais conhecido entre os historiadores pela denominação de Casto, porque durante o seu reinado de meio século sempre se conservou celibatário.

Reinava neste tempo além dos Pirenéus Carlos, o Grande. Afonso II buscou aliar-se com ele, enviando-lhe mensageiros com ricos presentes, provavelmente despojos duma correria que se diz ter feito aquém do Douro até às margens do Tejo.

Estabelecendo a sua capital em Oviedo, que engrandeceu e adornou de igrejas e paços, trabalhou por avivar as instituições do império visigótico que, no meio duma existência de perigos e combates, tinham caído em desuso, restaurando ao mesmo tempo o esplendor da ordem eclesiástica, reedificando templos e instituindo pastores. Durante, porém, estas tentativas de organização social uma revolução o expulsou do trono, ao qual os seus partidários dentro em poucos meses o fizeram subir de novo. Ora vitorioso, ora vencido pelos sarracenos, com quem teve mais de uma vez guerra, Afonso morreu em 842. Dizem alguns que ele associara ao governo o filho do seu antecessor Bermudo I, chamado Ramiro ou Ranimiro, que de feito lhe sucedeu. É, todavia, certo que a morte do velho monarca trouxe, como era natural sendo o reino electivo, graves dissensões.

Nepociano, conde do palácio, fez-se aclamar em Oviedo, e Ramiro, que então se achava na Bardulia (Castela-a-Velha), correu a disputar-lhe a coroa. Os soldados de Nepociano abandonaram-no no momento de virem às mãos com Ramiro, e este pôde colher vivo perto de Pravia o seu émulo, a quem mandou arrancar os olhos e fechar num mosteiro para o resto de seus dias.

Ramiro I das Astúrias

By Afernand74 [Public domain or Public domain], via Wikimedia Commons

Seguro no trono, Ramiro I (790 - 850) obteve várias vitórias dos muçulmanos e repeliu os piratas normandos que principiavam então a saltear as costas da Galiza. As tentativas para o expulsar do trono renovaram-se ainda por duas vezes, mas de ambas saiu vencedor. A vingança que tomou dos cabeças destas rebeliões prova que o carácter de Ramiro era bem contrário à brandura do de seu pai. 

Ao conde Aldoroito condenou-o à mesma pena a que condenara Nepociano, e a Piníolo, que também se rebelara, mandou matar juntamente com seus sete filhos. A crueldade de Ramiro estendia-se ao excesso das penas que impunha aos criminosos ou supostos tais. Os ladrões fazia-os cegar, e queimar todos aqueles que eram acusados de magia. Ramiro I soube assegurar a herança da coroa para seu filho: ao menos, vemos suceder-lhe este sem as lutas que as mais das vezes trazia a eleição de novo príncipe.

 Ordonho I das Astúrias

By Anonymous [Public domain], via Wikimedia Commons

Ordonho I (830 — 866), mais valoroso e feliz ainda que seu pai, não ajuntou a ferocidade ao esforço. Dedicou todos os seus cuidados à reedificação de várias povoações de Leão, da Galiza e dos chamados Campos Góticos, como foi cidade de Leão, depois capital do reino do mesmo nome, e as de Tui, Astorga e Amaia. Isto parece indicar que o território dos cristãos começava a estar menos exposto as correrias dos sarracenos, ou porque as fronteiras se alargavam, ou porque se defendiam melhor.

O godo renegado Musa ibn Musa, que se tinha tornado independente do emir de Córdova, ousara entrar no território dos cristãos, onde construiu a fortaleza de Albaida ou Albelda na moderna Rioja. O rei de Oviedo saiu logo contra ele, desbaratou-o junto de Clavijo e tomou Albaida. Depois de repelir uma nova tentativa dos normandos nas costas da Galiza, Ordonho fez várias entradas pelas terras dos inimigos com próspero sucesso, subjugou os bascos, que, sempre inquietos, se haviam mais uma vez rebelado, tomou aos infiéis Coria e Salamanca e reconquistou-lhes Orense, cidade da Galiza de que, segundo se vê deste sucesso, eles se haviam apossado. Continuando nestas guerras com vária fortuna, Ordonho veio a falecer em 866, fazendo antes disso eleger seu filho Afonso, ainda criança, por sucessor do reino. 

Entretanto Fruela, conde ou governador da Galiza, protegido pela nobreza daquela província, tomava o título de rei e marchava para a capital à frente de um exército. Os que tinham aceitado por monarca o filho de Ordonho abandonaram-no, e Afonso fugiu de Oviedo para as bandas de Castela. O reinado, porém, de Fruela foi muito curto: uma conjuração rebentou na corte, os magnates que lhe eram adversos assassinaram-no no seu próprio palácio. O filho de Ordonho voltou então a Oviedo e foi proclamado rei (Afonso III das Astúrias, o Grande, 848 —  910).

Afonso III das Astúrias

By Pelagius [Public domain or Public domain], via Wikimedia Commons
  

Logo em 867 os bascos rebelaram-se, e Afonso III teve de os combater por muito tempo com vária fortuna, terminando a guerra, se crermos as tradições bascas, pela concessão de uma espécie de independência a esta raça indomável.

Seguiu-se, passados três anos, uma guerra violenta com os sarracenos. Para sul e sueste o Douro formava a linha mais ordinária das sempre vacilantes fronteiras entre cristãos e muçulmanos. Afonso transpôs o rio com o seu exército, ocupou Salamanca e cercou Coria, que no reinado antecedente estivera já em poder dos godos. Obrigado a retirar-se, os sarracenos entraram pelas províncias cristãs; mas, colhidos em desfiladeiros onde a cavalaria lhes era inútil, foram completamente desbaratados.

Por doze anos a história de Afonso III é uma série quase não interrompida de combates: ora os seus territórios são invadidos pelos sarracenos, ora ele invade as províncias muçulmanas. Vitoriosas as mais das vezes, as armas cristãs dilataram-se então principalmente para o lado da antiga Lusitânia: Lamego, Viseu, Coimbra caíram em poder do rei de Oviedo, e a devastação chegou até os distritos de Idanha e ainda até Mérida. Depois, segundo parece, Afonso recolheu-se aos seus antigos estados das Astúrias e Galiza, porque o achamos marchando daquelas partes ao encontro dos sarracenos, que haviam posto cerco a Zamora, tomada e fortificada anteriormente por ele. A batalha de Polvoraria, junto ao rio Orbiego, em que os muçulmanos foram destroçados e postos em fuga, trouxe uma trégua de três anos, no fim da qual a guerra se ateou de novo. 

Depois de penetrar até à serra Morena, em cuja proximidade desbaratou o exército árabe que tentara resistir-lhe, o rei de Oviedo retirou-se outra vez para as Astúrias. Os infiéis vingaram-se acometendo Castela-a-Velha, onde já se tinha firmado o domínio asturiano por meio de muitos lugares fortificados ou castelos, que deram o nome à província. Metidos entre os muros das suas fortalezas, os cristãos resistiram por toda a parte, e Al-Mundhir, general dos árabes, internou-se para as bandas de Leão: mas, sabendo que Afonso III o esperava aí com o seu exército, retrocedeu para o sudoeste e veio acampar junto do Orbiego, donde voltou para Córdova. 

Dentro em pouco, os sarracenos renovaram as hostilidades talando a Navarra e descendo para Castela e Leão; mas, rechaçados por toda a parte, tornaram a retirar-se para Córdova com grande perda. Cansados de tão dilatadas guerras e de tantas devastações mútuas, godos e sarracenos trataram seriamente da paz, que afinal foi jurada entre o emir de Córdova e Afonso III e durou por todo o resto do reinado deste príncipe, isto é, por todo o largo período de vinte e sete anos. 

Os limites dos territórios cristãos demarcaram-se definitivamente ao sul e sueste pelo Douro, e o rei de Oviedo pôde dedicar-se a melhorar o estado interior dos seus domínios, os quais abrangiam já proximamente um terço da Península hispânica. Repovoando-os e restabelecendo a ordem em Leão e em Castela-a-Velha, alevantou das suas ruínas e fortificou as mais importantes povoações das fronteiras, como Zamora, Simancas, Donas e Touro, acções que não contribuíram menos para lhe adquirir o título de Grande do que as suas vitórias.

Enquanto Afonso III assim trabalhava em restaurar a vida interna do país sujeito à sua autoridade, uma nova guerra vinha perturbar a paz dos cristãos. As dissensões que por aquele tempo andavam levantadas entre os sarracenos tinham quebrado a unidade do governo muçulmano. Córdova ainda era o centro e cabeça da Espanha mourisca; porém, em parte das províncias que entestavam com os estados de Afonso haviam-se estabelecido pela rebelião alguns potentados independentes. Tendo Ahmed Ibn Al-Kithi ou Alchaman, como o denominam as crónicas cristãs, passado ao partido de Omar Ibn Hafssun, o mais poderoso inimigo do emir de Córdova, Omar entregou-lhe o poder supremo nos territórios de Toledo e Talavera. Aqui, por todos os distritos amotinados contra o emir e, até, por África, Ahmed ajuntou um exército de sessenta mil homens e salteou as terras do rei de Oviedo, cujos súbditos tornara descuidados a paz feita com o príncipe dos sarracenos. Os cristãos que puderam salvar-se acolheram-se às fortificações de Zamora, que Al-Kithi sitiou imediatamente, enquanto o governo de Córdova se apressava a assegurar o rei da Galiza que desaprovava semelhante invasão. Entretanto Afonso III, recebida a nova da tentativa de Ahmed, marchara contra ele. Os dois exércitos encontraram-se nos campos de Zamora, e depois de uma batalha bem pelejada os árabes foram vencidos com espantosa perda, ficando entre os mortos o próprio Ahmed e seu irmão Abdu r-Rahman, váli ou governador de Tortosa. O rei de Oviedo, seguindo a vitória, dirigiu-se a Toledo com o intento de reconquistar a antiga capital do império visigótico; mas as dificuldades do sítio moveram-no a aceitar um resgate avultado dos habitantes e a voltar às Astúrias, destruindo na sua passagem algumas povoações dos sarracenos.

Parecia que enfim o rei cristão poderia gozar tranquilamente do fruto de tantas vitórias; mas as inquietações domésticas tomaram o lugar das lutas com estranhos. Seu filho mais velho, Garcia, ajudado pelos irmãos e até, segundo alguns, pela própria mãe, e instigado por seu sogro, o conde de Castela Nuno Fernandes, conspirou para derrubá-lo do trono. Sabedor das criminosas tentativas do filho, Afonso fê-lo prender em Zamora e mandou-o levar em ferros ao castelo de Gauzón. Isto foi como o sinal de uma rebelião geral, em que o rei das Astúrias viu entrar todos os outros membros da sua família. Seguiu-se uma guerra civil, cujo resultado foi a abdicação, na aparência voluntária, mas realmente forçada, de Afonso III, que apenas sobreviveu um ano, no qual fez ainda uma entrada nas terras do rebelde Hafssun como simples general de seu filho. Na volta desta campanha faleceu em Zamora no fim do ano de 910, ficando-lhe na história o mais distinto lugar entre todos os sucessores de Pelágio que o haviam precedido.

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