História - Reconquista: De Garcia I de Leão a Bermudo II de Leão, por Alexandre Herculano
Garcia I de Leão
Das
cidades que o grande capitão Afonso III fizera renascer das suas cinzas, Leão,
a antiga Legio
dos romanos e dos godos, parece ter sido uma das que receberam mais
rápido incremento.
Garcia estabeleceu aí a sua corte, ficando seu irmão Fruela
governando as Astúrias
e Ordonho a Galiza, senão como reinos separados, ao menos com certo
grau de independência
que naturalmente provinha de o haverem ajudado a obter a coroa
paterna mais
cedo do que devia. Essa situação equívoca, a qual julgamos ter
sido a dos dois príncipes,
deu, talvez, origem à mudança do título de rei de Oviedo para o de
rei de Leão,
que principia a aparecer-nos no reinado de Garcia e foi a primeira
tentativa de desmembração
da monarquia espanhola, de que depois acharemos mais positivos exemplos.
Antes, porém, disto, no tempo de Afonso III, a Navarra, província
sempre inquieta
e mal sofrida do jugo asturiano, havia-o sacudido. Afonso dera o
governo dela a Sancho Garcês I de Pamplona, conde de Bigorre, denominado pelos bascos Arista,
que em basco
soa
como o Roble ou o Forte, por morte do qual os navarros proclamaram
rei seu filho Garcia
Sanches, sem que o de Oviedo pudesse embargá-lo. Desde então o
reino de Navarra
ficou independente, e por isso os sucessos desta parte da Península
deixam de ter
relação, ao menos imediata, com a origem da monarquia portuguesa.
O
governo de Garcia de Leão foi muito curto. Nos primeiros tempos,
dedicou-se a guerrear
os sarracenos do partido de Hafssun, devastando o distrito de Toledo:
nos últimos,
a reedificar algumas povoações das fronteiras dos seus já
dilatados domínios, como
Osma, Corunha do Conde e Gormaz. A morte, porém, interrompeu-lhe
todos os desígnios
quando contava apenas três anos de reinado. Ou porque não deixasse
filhos, ou
porque seu irmão Ordonho soubesse atrair a si os ânimos dos
grandes, foi este escolhido
para suceder-lhe e aclamado em Leão segundo o costume e pela forma
usada no
tempo dos reis visigodos.
Ordonho II da Galiza e Leão
Durante
a vida de seu pai e de seu irmão, Ordonho II da Galiza e Leão, tinha mostrado génio
belicoso e
esforçado em várias entradas que fizera nas terras dos sarracenos.
Ou porque a duração
das tréguas com Córdova estivesse acabada, ou porque Ordonho
julgasse conveniente
quebrá-las, depois de três anos de tranquilo reinado, passando de
novo as fronteiras
para o sul, correu a antiga Lusitânia aquém e além do Tejo até o
Guadiana, espalhando
por toda a parte ruínas e mortes. Os habitantes de Mérida,
aterrados pela ferocidade
do rei cristão, ofereceram-lhe avultados presentes para o aplacarem.
Persuadido,
talvez, de que lhe seria dificultoso levar à viva força as
fortificações daquela
grande povoação, Ordonho, carregado de despojos e deixando
espalhado o terror
do seu nome, voltou a Leão, donde tornou brevemente a invadir os
territórios muçulmanos,
reduzindo Salamanca a cinzas. Segundo alguns, a invasão de Ordonho
foi uma
só; mas é certo que os estragos feitos por ele uma ou mais vezes
suscitaram as represálias
dos sarracenos. As crónicas cristãs falam de um célebre desbarato
destes junto
de Santo Estêvão de Gormaz, bem como os historiadores árabes
celebram a grande
vitória obtida do rei de Leão pelo emir de Córdova. A falta de
datas cronológicas torna
assaz confusa, tanto nuns como noutros, a narração destes sucessos.
Parece, porém,
que a desvantagem ficou ao lado de Ordonho; ao menos, foi o
território cristão que
ultimamente serviu de teatro a esta longa e sanguinolenta luta.
As
armas dos muçulmanos voltaram-se então contra o rei de Navarra,
cuja independência
estava provavelmente reconhecida pelo de Leão e Astúrias; porque achamos
Ordonho combatendo em Junquera ao lado do príncipe navarro. O campo cristão
foi roto com grande mortandade, e Ordonho fugiu para Leão com o que restava do
seu exército, abandonando o rei de Navarra, que buscou refúgio nos
sólidos muros de Pamplona.
Ébrios com a vitória, os sarracenos passaram os Pirenéus e,
talando os arredores
de Tolosa, voltaram a Espanha. As perdas que tinham padecido tanto à
ida como
à volta, principalmente nos desfiladeiros das serranias, perdas que,
se acreditarmos
os cronistas cristãos, equivaleram a uma completa destruição,
obrigaram o emir
de Córdova a recolher-se à sua capital.
Enquanto
assim os sarracenos invadiam o Sul da França, dizem que Ordonho, juntando ao que restara do seu exército novos soldados, fazia uma entrada
pelo interior da Espanha
maometana, penetrando até os distritos orientais da Andaluzia. O
carácter belicoso
do rei de Leão e a ausência do exército vencedor em Junquera
tornam provável este
acontecimento, de que todavia se não encontra memória nos
historiadores árabes. Os
últimos tempos do reinado de Ordonho II são só notáveis por um
acto de rigor feroz
próprio da rudeza da época. A causa desse acto foi, segundo parece,
a vingança.
Os
condes ou governadores de vários distritos de Castela mostravam-se
rebeldes à autoridade
do rei leonês. Conforme a opinião de alguns, a rebelião consistira
em haverem
eles recusado acompanhar Ordonho na expedição a favor de Navarra:
mais provável
cremos que as tentativas de independência, que por toda a parte
tendiam a desmembrar
a já muito vasta monarquia das Astúrias, fossem a realidade do facto.
Seja o que
for, Ordonho convocou para Burgos com mostras pacíficas quatro
condes daquela província,
indo-os esperar ao caminho. Aí prendeu-os e, enviando-os para Leão,
fez-lhes decepar
as cabeças. Dentro de pouco, Ordonho II morreu em Zamora (923) e foi sepultado
na catedral de Leão.
Fruela II das Astúrias e Leão
Apesar
de ficarem quatro filhos do rei falecido, seu irmão Fruela foi
eleito para lhe
suceder. Fruela II reinou apenas um ano, no qual não consta tivesse
guerra com os sarracenos,
e todas as memórias do seu reinado reduzem-se a algumas fundações
pias.
Afonso IV de Leão
Por
morte deste príncipe, Afonso, filho de Ordonho, obteve a coroa que
fora de seu
pai, posto que Fruela deixasse também três filhos. A incerteza
destas sucessões prova
a tenacidade com que os descendentes dos visigodos guardavam as
instituições políticas
da Espanha anteriores à conquista árabe. Afonso IV foi, segundo
parece, de ânimo
pacífico e inclinado mais que seu tio para as coisas de religião. Ainda
não tinha seis anos
de reinado completos quando, havendo chamado à corte seu irmão
Ramiro, que governava
o distrito denominado hoje o Bierzo, abdicou a coroa nele com acordo
dos nobres
juntos em Zamora e recolheu-se ao Mosteiro de São Facundo ou
Sahagún. Era Ramiro,
pelo contrário do irmão, de ânimo turbulento e guerreiro. Assim,
apenas elevado
ao trono, começou a preparar-se para renovar a guerra contra os
sarracenos.
Ramiro II de Leão
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Um acontecimento
inesperado veio, porém, interromper os seus desígnios. Afonso IV,
ou por
inconstância de génio, ou incitado por alguns descontentes, saiu de
Sahagún e, dirigindo-se
a Leão, fez-se proclamar de novo rei. Ramiro, que se achava ainda em Zamora,
marchou imediatamente para a capital e, combatendo-a de dia e noite,
entrou-a e,
prendendo seu irmão, lançou-o carregado de ferros no fundo de um
calabouço. Os três
filhos de Fruela, primos dos príncipes contendores, tomaram então o
partido do cativo
e tentaram colher Ramiro numa cilada. Soube-o ele: fê-los prender e
conduzir à mesma
prisão em que jazia Afonso IV, onde mandou arrancar os olhos tanto a
este como
àqueles. Nesse miserável estado, Afonso ainda viveu dois anos,
ficando-lhe por morte
um único filho chamado Ordonho, conhecido depois pelo epíteto de
Mau.
Apaziguadas
estas alterações intestinas, Ramiro II dispôs tudo para uma
invasão na
Espanha árabe, o que executou entrando com o seu exército até
Madrid (outros dizem
Talavera), que servia como de fortaleza fronteira para impedir as
correrias dos cristãos
contra Toledo. Combatida vigorosamente, a povoação foi entrada,
posta a saque e,
mortos ou cativos os seus habitantes, desmantelada. Dali voltou
Ramiro a Leão sem que
os sarracenos pudessem opor-se à sua passagem. Mas estes não
tardaram a desagravar-se
do dano recebido, acometendo a província de Castela com poderoso exército.
O conde Fernão Gonçalves, que a regia, invocou o socorro de Ramiro,
que não tardou
em chegar. Se acreditarmos as relações árabes, os muçulmanos
tiveram, todavia, tempo
para devastarem os territórios cristãos até à Galiza, donde
conduziram grande número
de cativos e avultado despojo. Na passagem, porém, do Douro, perto
de Osma, Ramiro
veio encontrá-los. Receosos de que os cativos lhes servissem de
impedimento na
batalha, meteram todos à espada. Travado o combate, a fúria e ódio
mútuo com que pelejavam
fizeram com que este fosse um dos bem feridos entre leoneses e
sarracenos, ficando
o campo alastrado de mortos e o resultado indeciso; porque tanto os
cronistas cristãos
como os árabes atribuem aos seus a vitória. Contudo, não só a
linguagem pouco explícita
dos últimos, mas também a retirada do exército para Córdova
persuadem que Ramiro
levou a melhor.
O
que parece claro é que a batalha de Osma deixou mui quebradas as
forças dos dois
adversários, porque os vemos dar tréguas às hostilidades durante
três anos, no fim dos
quais a luta se renovou com mais energia que dantes. Uma pequena
faísca deu azo a um
grande incêndio.
Umeyyah
Ibn Isak Abu Yahya era neste tempo caide de Santarém, e seu irmão Mohammed
vizir ou conselheiro na corte de Córdova. Teve o califa razões de
queixa contra
Mohammed e mandou-o matar. Irado com este procedimento, o caide de Santarém
ligou-se com Ramiro, prestando-lhe obediência com um grande número
de cavaleiros
sarracenos do Gharb e entregando-lhe os castelos dependentes dele.
Com esta aliança
o rei de Leão pôde devastar a antiga Lusitânia, correndo por
Badajoz até Mérida e
voltando pelas imediações de Lisboa, donde se encaminhou para a
Galiza carregado de
despojos, posto o inquietassem os inimigos, que nesta conjuntura só
se atreveram a fazer
uma rápida correria além do Douro.
Apenas
o califa de Córdova, Abdu r-Rahman, soube dos estragos feitos pelo
rei leonês,
resolveu empenhar todas as suas forças contra os cristãos e
aniquilar-lhes o poder,
que cada vez se tornava mais formidável para o islamismo. Por
mandado do califa,
todos os vális e caides marcharam com, as suas tropas para
Salamanca, aonde o próprio
Abdu r-Rahman veio tomar o mando do exército, que subia a mais de
cem mil homens.
Este corpo numeroso atravessou as fronteiras inimigas e, depois de
assolar os lugares
abertos e arrasar vários castelos, foi assentar campo em volta dos
muros de Zamora.
Ramiro
II, da sua parte, havia ajuntado em Burgos todas as forças de Leão, Astúrias,
Galiza e Castela. Garcia, rei de Navarra, descera a socorrê-lo, e
Abu Yahya viera
também em seu auxílio com um grosso de cavalaria muçulmana. Assim
o exército cristão,
em estado já de competir com o do califa, pôde marchar ao encontro
dele. Abdu r-Rahman,
deixando no cerco de Zamora vinte mil homens, saiu com oitenta mil a
receber os
inimigos nas margens do Pisuerga junto a Simancas. As avançadas dos
dois exércitos,
encontrando-se ali, travaram uma escaramuça que não teve
consequências.
Durante
dois dias sarracenos e cristãos se conservaram sem começar o
combate, como tomados
da terribilidade da empresa, terribilidade que um grande eclipse do
Sol viera aumentar.
Ao terceiro dia, enfim, a cavalaria do Gharb rompeu a batalha, e
Ramiro avançou
com os seus esquadrões. A lide durou até à noite com igual fúria
e esforço de ambas
as partes e com vária fortuna. Ao anoitecer, o campo estava
alastrado de cadáveres e
de troços de armas. As trevas separaram os combatentes sem vantagem decisiva
de nenhuma das partes, bem que ambas, como é natural, atribuíssem a
si a vitória.
Induzem a crer as expressões dos cronistas árabes que a perda dos
muçulmanos havia
sido a maior e que o rei de Leão ficaria vencedor, se tivera no dia
seguinte renovado
a peleja. Ele retirou-se, porém, naquela noite por conselho de Abu
Yahya, que,
porventura, já estava arrependido, como o persuade o seu posterior
procedimento, de
ter ajudado os inimigos do Corão a derramar o sangue dos muçulmanos,
e que soube fazer
acreditar a Ramiro que, se renovasse o combate, o último desfecho
lhe seria desfavorável.
Os
sarracenos não ousaram perseguir o exército leonês e voltaram ao
campo de Zamora.
Reina tal confusão entre os escritores árabes, sobretudo
confrontados com os cronistas
cristãos, que é impossível relatar com certeza e individuação os
sucessos que seguiram
a batalha de Simancas. O que parece mais provável é que os
sarracenos se apossassem,
enfim, de Zamora, mas com perda imensa, ou porque Ramiro viesse de improviso
acometê-los, ou porque a resistência dos sitiados fosse
tenacíssima, de modo que
Abdu r-Rahman se retirou para Salamanca, conservando em Zamora uma guarnição,
que pouco depois deixou cair novamente aquela povoação importante
nas mãos
dos leoneses, os quais cativaram aí o caide de Santarém, Abu Yahya,
motor de toda
esta guerra, e que se tinha em tão breve tempo tornado a unir aos
seus correligionários.
Nesse
mesmo ano (939) Ramiro II passou o Douro, menos para fazer novas invasões
no interior da Espanha maometana do que para firmar o domínio
cristão nos territórios
que tinham sido teatro das precedentes lutas. Salamanca, Ledesma, Penharanda,
Gormaz, Osma e outros muitos lugares das fronteiras, que jaziam
desertos e
destruídos, foram repovoados e guarnecidos de soldados. Data desta
época o verdadeiro
engrandecimento dos condes de Castela, onde a maior parte daquelas povoações
eram situadas; engrandecimento que tantas perturbações veio a
produzir na Espanha
cristã e trouxe dentro em breve a rebelião dos condes Fernando
Gonçalves e Diogo
Nunes, os quais Ramiro submeteu, perdoando-lhes depois de algum tempo
de prisão.
Acham-se
nos historiadores árabes notícias de alguns recontros entre
cristãos e muçulmanos
posteriores a esta época. Deviam ser correrias de pouca substância,
como de
gente cansada de guerras e desejosa de repouso. Vemos, de feito,
Ramiro enviar embaixadores
a Córdova em 944 para assentarem paz com o califa, e este mandar a Leão
o seu ministro ou vizir Ahmed Ibn Said para o mesmo fim. As tréguas
então feitas duraram
firmes até 949, último ano do reinado de Ramiro, que ainda então
fez uma entrada
até Elbora, hoje Talavera, a qual não pôde tomar, mas em cujas
imediações desbaratou
um grosso de sarracenos, fazendo-lhes grande matança e avultado
número de cativos,
ao que Abdu r-Rahman correspondeu com uma correria no território dos
cristão, enquanto
Ramiro II, oprimido de grave doença, falecia em Leão nos primeiros
dias do
ano de 950, havendo abdicado a coroa em seu filho mais velho Ordonho
IlI.
Ordonho III de Leão
Apenas
Ordonho subiu ao trono logo seu irmão Sancho começou a
disputar-lho. Era
ele então governador ou conde de Burgos e mancebo sabedor das coisas
de guerra, que
aprendera na escola de seu esforçado pai. O turbulento conde de
Castela Fernando Gonçalves
favorecia o seu bando. Este e Sancho dirigiram-se, cada um com seu exército,
para Leão; mas Ordonho estava prevenido, e os dois aliados tiveram
de desistir da
empresa. Toda a vingança de Ordonho parece ter-se reduzido a
repudiar sua mulher Urraca,
filha do conde de Castela, a qual depois passou a segundas núpcias
com Ordonho,
o Mau.
A
tentativa de Sancho teve eco na Galiza, para onde o rei de Leão
marchou logo com
grosso exército contra os levantados, que brevemente cederam.
Pacificado tudo, Ordonho
aproveitou as forças que ajuntara para fazer uma entrada nas terras
dos infiéis. Passou
o Douro, desceu pelo território muçulmano que hoje chamamos Beira e Estremadura
até à foz do Tejo, tomou e saqueou Lisboa e voltou a Leão rico
de despojos
e cativos. Entretanto os sarracenos entravam por Castela e, segundo
afirmam os
seus cronistas, faziam aí grandes estragos. Nestas guerras obscuras
passou o reinado de
Ordonho III, que faleceu depois de governar por cinco anos e alguns
meses.
Sancho I de Leão
Sucedeu-lhe
seu irmão Sancho, que já havia mostrado quanto ambicionava a coroa. Pouco
tempo reinou em paz Sancho I, denominado, pela sua extrema obesidade,
o Gordo.
Apenas passado um ano, Ordonho, filho de Afonso IV, que vivia em Leão
como simples
particular, tendo-se ligado com o sempre inquieto Fernando Gonçalves,
cuja filha
abandonada por Ordonho III tomara por mulher, rebelou-se contra o
irmão e, ajudado
pelo sogro, expulsou-o do trono. Sancho, fugitivo, acolheu-se a
Navarra e dali a Córdova,
buscando a protecção do inimigo de seu pai, do ilustre Abdu
r-Rahman. Não se
fiou em vão da generosidade do famoso califa: o príncipe muçulmano
subministrou-lhe os
socorros necessários para reconquistar os seus estados. A frente de
um exército sarraceno,
Sancho I entrou de novo na sua capital, donde fugira Ordonho, o Mau, esperando
defender-se nas serras das Astúrias. Sancho, porém, não lhe
concedeu repouso
até o expulsar dos seus territórios. Ordonho, enfim, obrigado a
refugiar-se entre os
sarracenos, aí viveu o resto de seus dias na obscuridade e,
porventura, na miséria; porque
dele não tornam a fazer menção os historiadores.
Desde
a época da restituição de Sancho I ao trono, a qual parece dever
colocar-se em
961, até o segundo ano do califado de Al-Hakem, filho e sucessor de
Abdu r-Rahman III,
falecido pouco depois daquele sucesso, a paz subsistiu entre os
cristãos e os sarracenos.
As correrias, porém, do conde Fernando Gonçalves pela Espanha muçulmana
acenderam de novo a guerra. Al-Hakem entrou em Castela, arrasou Gormaz,
apossou-se de várias outras povoações, pôs cerco a Zamora,
reduziu-a por fim e
desmantelou-a, voltando depois a Córdova.
Provavelmente
a guerra continuou pelos generais do califa; porque em 965 Sancho
I lhe enviou embaixadores com mensagens dos condes fronteiros de
Castela, que
pediam paz. Estas mensagens indicam terem sido as correrias de
Fernando Gonçalves
feitas sem aprovação do rei leonês, que parece haver ficado mero
espectador da
luta. Al-Hakem acedeu aos desejos de Sancho, e a paz durou até o fim
do governo deste
príncipe.
Um
levantamento de vários condes da Galiza, ligados com o bispo de Compostela,
obrigaram Sancho I a entrar com mão armada naquela província.
Gonçalo Sanches,
um dos cabeças da rebelião, não se julgando assaz forte para
resistir, fingiu ceder;
mas numa conferência com o rei de Leão mandou envenená-lo. Assim
acabou o reinado
de Sancho I nos fins de 967.
Ramiro III de Leão
Ramiro,
seu filho, bem que contasse apenas cinco anos
de idade, foi escolhido por sucessor do pai sob a tutela de sua tia
Elvira. Algumas pequenas
inquietações civis e um desembarque dos piratas normandos na Galiza
são os acontecimentos
mais notáveis da regência de Elvira, se não quisermos contar entre
eles a
morte do célebre Fernando Gonçalves (970), que, durante o seu longo
governo em Burgos,
capital de Castela, quase nunca depôs as armas, ou para acometer os
sarracenos ou
para promover tumultos contra os reis de Leão.
Al-Hakem
tinha falecido em Córdova e, do mesmo modo que sucedera em Leão, seu
filho Hisham, ainda menor, herdara o califado debaixo da tutela de sua
mãe Subh, que
entregou as rédeas do governo ao hájibe Almaçor.
Após uma trégua
que durara por anos, foi este que de novo acendeu entre as duas raças
que disputavam
o domínio da Península o facho de sanguinosa e duradoura guerra.
A
primeira tentativa do hájibe contra os cristãos foi uma larga
algara ou correria súbita
na Galiza, de que saiu sem risco e sem combate pelo repentino e
inesperado dela. Nos
anos seguintes Almançor repetiu estas entradas, travando combates
com as tropas cristãs
da Galiza e de Castela e desbaratando-as. As discórdias civis da
Espanha goda facilitavam
as vitórias dos sarracenos. Ramiro III, chegando à puberdade,
começou a dar
mostras de génio voluntário, inquieto e soberbo, que não tardou a
alienar-lhe os ânimos
da nobreza e do vulgo. Vendo ocasião oportuna, Vermudo ou Bermudo,
neto de Fruela
II, ajudado por vários condes da Galiza e ainda de Leão e Castela,
fez-se aclamar em
Compostela. Ramiro, à frente de um exército, marchou logo contra
ele e, encontrando-se
junto de Monteroso, os dois émulos travaram uma sanguinolenta batalha,
que durou um dia inteiro sem vantagem conhecida, no fim da qual
Ramiro retrocedeu para Leão e Bermudo para Compostela.
Neste
tempo Almançor corria as fronteiras da Galiza. Bermudo parece ter buscado
então a sua aliança e havê-lo induzido a acometer os territórios
do seu adversário.
O hájibe penetrou, de feito, até às margens do Ezla, que vem
entrar no Douro
perto de Zamora. Ramiro saiu a recebê-lo, e um dia em que os
sarracenos repousavam
descuidados no seu campo salteou-os com tal fúria que Almaçor esteve quase
desbaratado. Foi precisa toda a energia do seu carácter para
salvar-se da última ruína;
mas os leoneses, vitoriosos a princípio, voltaram por fim as costas.
Perseguiu-os o
hájibe até Leão sem lhes dar repouso, e teria tomado aquela
capital se uma súbita e horrorosa
tempestade de neve e granizo, segundo o testemunho dos escritores
tanto árabes como
cristãos, não viesse impedir o combate no momento em que já os
sarracenos punham
as lanças nas portas da cidade. Receando o Inverno, em que a
natureza pelejava a
favor dos leoneses, Almançor voltou para Córdova, deixando
espalhado entre os inimigos
o terror do seu nome.
Nem
por isso os países cristãos ficaram tranquilos. Como se lhes não
bastassem os estragos
feitos pelos muçulmanos, a guerra civil entre Galiza e Leão
continuou durante dois
anos e provavelmente só foi interrompida pela segunda entrada de
Almançor, que na
Primavera de 984 veio de novo pôr cerco a Leão. Os condes cristãos,
de que fala o cronista
Pélagio de Oviedo e que serviam no exército do hájibe, eram
provavelmente os parciais
de Bermudo, que para destruírem o poder de Ramiro não duvidavam de sacrificar
a pátria comum e associavam os ódios intestinos à guerra de raça
e de religião.
Sitiando
a capital do reino leonês, Almançor resolvera tomá-la a todo o
custo, ferindo
assim os inimigos no coração. Ramiro, segundo alguns, era já
falecido, mas segundo
outros, cuja opinião parece mais bem fundada, vivia ainda nos fins
deste ano. Reinasse,
porém, Bermudo ou Ramiro, é certo que um deles fugiu para as
Astúrias, levando
consigo todas as preciosidades, não só de Leão, mas também de
Astorga, que naquele
tempo era a segunda povoação do reino.
Bermudo II de Leão e da Galiza
Enquanto
o sucessor de Pelágio abandonava assim o centro da monarquia ao
furor dos
infiéis, o alcaide ou capitão da cidade preparava-se para tenaz
defesa. De feito, os sarracenos
receberam enormes perdas nos sucessivos combates que deram à
povoação; mas,
insistindo no seu propósito, Almaçor levou-a à escala vista.
Saqueada, mortos ou
cativos os seus habitantes, o hájibe mandou arrasar-lhe os muros e o
seu forte castelo.
A
tomada de Astorga seguiu-se à de Leão, apesar da brava resistência
dos seus defensores.
Quisera Almançor seguir a vitória embrenhando-se nas Astúrias;
mas, rechaçado
dos castelos de Luna, Alva e Gordon, recolheu-se a Córdova
satisfeito com deixar
reduzidas a ruínas as duas mais notáveis povoações do país
inimigo.
A
tão disputada coroa da Espanha cristã meridional possuía-a, enfim,
sem competidor,
Bermudo II, mas convertida em coroa de espinhos. Os sarracenos
corriam vitoriosos
por Leão, Castela e Galiza, devastando esta última até as ribas do
mar e parando
só, pelo sertão ao norte, na barreira insuperável que lhes
antepunham as agras serranias
das Astúrias. O reinado de Bermudo, a quem uma enfermidade incurável fizera
denominar o Gotoso, foi-lhe dilatada agonia, vendo quase anualmente
os infiéis assolarem-lhe
o território e desmantelarem-lhe as mais belas cidades do seu
senhorio, cuja
extensão e importância as memórias das perdas dessa triste época,
melhor que nenhumas
outras, dão a conhecer. O terrível hájibe parecia ter jurado
apagar o nome cristão
na Península.
Vencedor ao norte dos catalães e navarros, reduzia os
estados do Sul
e Meio-Dia quase à derradeira extremidade. Em diversos anos da sua
longa regência em
nome do califa Hisham ermou a Castela, tomando e derribando as
povoações mais notáveis,
e o mesmo fez à Galiza, cujas fronteiras, provavelmente desde a
invasão de Ordonho
III na antiga Lusitânia, se estendiam até o Mondego. Em 987,
Coimbra (a Kulūmriyya dos árabes) caiu em poder de Almançor, que a destruiu, repovoando-a
de sarracenos passados sete anos, durante os quais esteve deserta.
As turbulências
civis vinham multiplicar entretanto os males da cristandade
espanhola. A um
tempo Sancho Garcez, filho do conde de Castela Garcia Fernandes,
tomava armas contra
seu pai, e Gonçalo Menendes alevantava-se na Galiza contra a
autoridade de Bermudo.
No meio destas revoltas o hájibe entrava por Castela e, depois de
dois dias de furiosa
peleja, destroçava completamente os exércitos unidos do conde
Garcia Fernandes
e do rei de Navarra, que viera em seu auxílio, caindo o conde
moribundo em poder
dos sarracenos, que, apesar de todas as diligências, não puderam
salvar-lhe a vida.
Prosseguiu
Almançorr a sua vitoriosa marcha para a província de Leão, aonde
parece não
voltara desde a destruição da cidade do mesmo nome. Desbaratadas as
tropas leonesas,
o exército sarraceno regressou a Córdova pela entrada do Inverno. Passavam
estes sucessos nos fins de 995. No começo do ano seguinte, Bermudo II,
inquieto com as perturbações domésticas e vendo os seus domínios
assolados pelas incessantes
correrias do indomável hájibe, resolveu enviar mensageiros ao
califa pedindo
tréguas. Almançor, que era o verdadeiro senhor em Córdova,
parecia não estar
longe de conceder algum respiro aos cristãos, mas afinal nada se
concluiu, e em 997
as hostilidades principiaram de novo com redobrada energia.
Foi
no Verão deste ano que os sarracenos intentaram levar mais longe as
armas pelo
lado ocidental dos estados de Bermudo. A gazua (ghaswat, expedição
sacra), como os
árabes denominavam a guerra intentada contra os cristãos, foi desta
vez feita por mar e
por terra. Era em destruir Compostela, correndo a Galiza do sul ao
norte, que o hájibe pusera
a mira. Alentava-o nesta nunca tentada empresa o acordo secreto que
tinha com vários
condes daquelas partes inimigos de Bermudo. Enquanto ele atravessava
o território
das modernas províncias da Estremadura castelhana, Salamanca e Beira
Alta, onde
os seus aliados cristãos se lhe vieram unir, uma frota saída de
Alcácer (Al-Kassr Abu
Danès) ia aportar na foz do Douro e desembarcar junto ao Porto
(Bortkal, Portucale)
mais tropas e petrechos de guerra. Reunidas aí todas as forças do
hájibe, ele atravessou
aquela parte da antiga Galiza chamada hoje província de Entre Douro
e Minho
e, vencendo os obstáculos que lhe opunham os homens e a natureza
naquelas regiões montanhosas,
chegou aos muros de Compostela. Estava desamparada a cidade de seus
habitantes: entraram sem resistência os sarracenos; derribaram os
muros, o castelo e
a igreja de Santiago, a que pela sua celebridade os escritores árabes
chamavam a Kaaba
dos nazarenos, com o quem dissera o templo por excelência, sendo
assim denominado
entre os muçulmanos o de Meca. Dali avançou para o lado da Corunha, aonde,
segundo o testemunho do historiador árabe Al-Makkari, nunca os
sarracenos tinham
chegado. O cansaço da cavalaria impediu o hájibe de prosseguir mais
além para o
norte, e por isso, retrocedendo pela província de Leão, que de novo
assolou, recolheu-se a
Córdova, depois de fazer ricos do nativos, provavelmente parte dos
despojos, aos condes
cristãos que o tinham ajudado naquela campanha e cujos territórios
haviam sido cuidadosamente
respeitados.
No
meio de tantas desventuras chegou o fim do século X e do reinado de Bermudo
II, falecido em 999.
Reconquista: de Pelágio a Afonso III das Astúrias
Reconquista: De Afonso V de Leão a Afonso VI de Castela e Leão
Reconquista: De Afonso V de Leão a Afonso VI de Castela e Leão
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