segunda-feira, 17 de junho de 2013

História - Reconquista: De Garcia I de Leão a Bermudo II de Leão, por Alexandre Herculano

História - Reconquista: De Garcia I de Leão a Bermudo II de Leão, por Alexandre Herculano

Garcia I de Leão


Das cidades que o grande capitão Afonso III fizera renascer das suas cinzas, Leão, a antiga Legio dos romanos e dos godos, parece ter sido uma das que receberam mais rápido incremento. Garcia estabeleceu aí a sua corte, ficando seu irmão Fruela governando as Astúrias e Ordonho a Galiza, senão como reinos separados, ao menos com certo grau de independência que naturalmente provinha de o haverem ajudado a obter a coroa paterna mais cedo do que devia. Essa situação equívoca, a qual julgamos ter sido a dos dois príncipes, deu, talvez, origem à mudança do título de rei de Oviedo para o de rei de Leão, que principia a aparecer-nos no reinado de Garcia e foi a primeira tentativa de desmembração da monarquia espanhola, de que depois acharemos mais positivos exemplos. Antes, porém, disto, no tempo de Afonso III, a Navarra, província sempre inquieta e mal sofrida do jugo asturiano, havia-o sacudido. Afonso dera o governo dela a Sancho Garcês I de Pamplona,  conde de Bigorre, denominado pelos bascos Arista, que em basco
soa como o Roble ou o Forte, por morte do qual os navarros proclamaram rei seu filho Garcia Sanches, sem que o de Oviedo pudesse embargá-lo. Desde então o reino de Navarra ficou independente, e por isso os sucessos desta parte da Península deixam de ter relação, ao menos imediata, com a origem da monarquia portuguesa.

O governo de Garcia de Leão foi muito curto. Nos primeiros tempos, dedicou-se a guerrear os sarracenos do partido de Hafssun, devastando o distrito de Toledo: nos últimos, a reedificar algumas povoações das fronteiras dos seus já dilatados domínios, como Osma, Corunha do Conde e Gormaz. A morte, porém, interrompeu-lhe todos os desígnios quando contava apenas três anos de reinado. Ou porque não deixasse filhos, ou porque seu irmão Ordonho soubesse atrair a si os ânimos dos grandes, foi este escolhido para suceder-lhe e aclamado em Leão segundo o costume e pela forma usada no tempo dos reis visigodos.

Ordonho II da Galiza e Leão


Durante a vida de seu pai e de seu irmão, Ordonho II da Galiza e Leão, tinha mostrado génio belicoso e esforçado em várias entradas que fizera nas terras dos sarracenos. Ou porque a duração das tréguas com Córdova estivesse acabada, ou porque Ordonho julgasse conveniente quebrá-las, depois de três anos de tranquilo reinado, passando de novo as fronteiras para o sul, correu a antiga Lusitânia aquém e além do Tejo até o Guadiana, espalhando por toda a parte ruínas e mortes. Os habitantes de Mérida, aterrados pela ferocidade do rei cristão, ofereceram-lhe avultados presentes para o aplacarem.

Persuadido, talvez, de que lhe seria dificultoso levar à viva força as fortificações daquela grande povoação, Ordonho, carregado de despojos e deixando espalhado o terror do seu nome, voltou a Leão, donde tornou brevemente a invadir os territórios muçulmanos, reduzindo Salamanca a cinzas. Segundo alguns, a invasão de Ordonho foi uma só; mas é certo que os estragos feitos por ele uma ou mais vezes suscitaram as represálias dos sarracenos. As crónicas cristãs falam de um célebre desbarato destes junto de Santo Estêvão de Gormaz, bem como os historiadores árabes celebram a grande vitória obtida do rei de Leão pelo emir de Córdova. A falta de datas cronológicas torna assaz confusa, tanto nuns como noutros, a narração destes sucessos. Parece, porém, que a desvantagem ficou ao lado de Ordonho; ao menos, foi o território cristão que ultimamente serviu de teatro a esta longa e sanguinolenta luta.

As armas dos muçulmanos voltaram-se então contra o rei de Navarra, cuja independência estava provavelmente reconhecida pelo de Leão e Astúrias; porque achamos Ordonho combatendo em Junquera ao lado do príncipe navarro. O campo cristão foi roto com grande mortandade, e Ordonho fugiu para Leão com o que restava do seu exército, abandonando o rei de Navarra, que buscou refúgio nos sólidos muros de Pamplona. Ébrios com a vitória, os sarracenos passaram os Pirenéus e, talando os arredores de Tolosa, voltaram a Espanha. As perdas que tinham padecido tanto à ida como à volta, principalmente nos desfiladeiros das serranias, perdas que, se acreditarmos os cronistas cristãos, equivaleram a uma completa destruição, obrigaram o emir de Córdova a recolher-se à sua capital.

Enquanto assim os sarracenos invadiam o Sul da França, dizem que Ordonho, juntando ao que restara do seu exército novos soldados, fazia uma entrada pelo interior da Espanha maometana, penetrando até os distritos orientais da Andaluzia. O carácter belicoso do rei de Leão e a ausência do exército vencedor em Junquera tornam provável este acontecimento, de que todavia se não encontra memória nos historiadores árabes. Os últimos tempos do reinado de Ordonho II são só notáveis por um acto de rigor feroz próprio da rudeza da época. A causa desse acto foi, segundo parece, a vingança.

Os condes ou governadores de vários distritos de Castela mostravam-se rebeldes à autoridade do rei leonês. Conforme a opinião de alguns, a rebelião consistira em haverem eles recusado acompanhar Ordonho na expedição a favor de Navarra: mais provável cremos que as tentativas de independência, que por toda a parte tendiam a desmembrar a já muito vasta monarquia das Astúrias, fossem a realidade do facto. Seja o que for, Ordonho convocou para Burgos com mostras pacíficas quatro condes daquela província, indo-os esperar ao caminho. Aí prendeu-os e, enviando-os para Leão, fez-lhes decepar as cabeças. Dentro de pouco, Ordonho II morreu em Zamora (923) e foi sepultado na catedral de Leão.

Fruela II das Astúrias e Leão


Apesar de ficarem quatro filhos do rei falecido, seu irmão Fruela foi eleito para lhe suceder. Fruela II reinou apenas um ano, no qual não consta tivesse guerra com os sarracenos, e todas as memórias do seu reinado reduzem-se a algumas fundações pias.

Afonso IV de Leão

Por morte deste príncipe, Afonso, filho de Ordonho, obteve a coroa que fora de seu pai, posto que Fruela deixasse também três filhos. A incerteza destas sucessões prova a tenacidade com que os descendentes dos visigodos guardavam as instituições políticas da Espanha anteriores à conquista árabe. Afonso IV foi, segundo parece, de ânimo pacífico e inclinado mais que seu tio para as coisas de religião. Ainda não tinha seis anos de reinado completos quando, havendo chamado à corte seu irmão Ramiro, que governava o distrito denominado hoje o Bierzo, abdicou a coroa nele com acordo dos nobres juntos em Zamora e recolheu-se ao Mosteiro de São Facundo ou Sahagún. Era Ramiro, pelo contrário do irmão, de ânimo turbulento e guerreiro. Assim, apenas elevado ao trono, começou a preparar-se para renovar a guerra contra os sarracenos.

Ramiro II de Leão

By Anonymous [Public domain], via Wikimedia Commons

Um acontecimento inesperado veio, porém, interromper os seus desígnios. Afonso IV, ou por inconstância de génio, ou incitado por alguns descontentes, saiu de Sahagún e, dirigindo-se a Leão, fez-se proclamar de novo rei. Ramiro, que se achava ainda em Zamora, marchou imediatamente para a capital e, combatendo-a de dia e noite, entrou-a e, prendendo seu irmão, lançou-o carregado de ferros no fundo de um calabouço. Os três filhos de Fruela, primos dos príncipes contendores, tomaram então o partido do cativo e tentaram colher Ramiro numa cilada. Soube-o ele: fê-los prender e conduzir à mesma prisão em que jazia Afonso IV, onde mandou arrancar os olhos tanto a este como àqueles. Nesse miserável estado, Afonso ainda viveu dois anos, ficando-lhe por morte um único filho chamado Ordonho, conhecido depois pelo epíteto de Mau.

Apaziguadas estas alterações intestinas, Ramiro II dispôs tudo para uma invasão na Espanha árabe, o que executou entrando com o seu exército até Madrid (outros dizem Talavera), que servia como de fortaleza fronteira para impedir as correrias dos cristãos contra Toledo. Combatida vigorosamente, a povoação foi entrada, posta a saque e, mortos ou cativos os seus habitantes, desmantelada. Dali voltou Ramiro a Leão sem que os sarracenos pudessem opor-se à sua passagem. Mas estes não tardaram a desagravar-se do dano recebido, acometendo a província de Castela com poderoso exército. 

O conde Fernão Gonçalves, que a regia, invocou o socorro de Ramiro, que não tardou em chegar. Se acreditarmos as relações árabes, os muçulmanos tiveram, todavia, tempo para devastarem os territórios cristãos até à Galiza, donde conduziram grande número de cativos e avultado despojo. Na passagem, porém, do Douro, perto de Osma, Ramiro veio encontrá-los. Receosos de que os cativos lhes servissem de impedimento na batalha, meteram todos à espada. Travado o combate, a fúria e ódio mútuo com que pelejavam fizeram com que este fosse um dos bem feridos entre leoneses e sarracenos, ficando o campo alastrado de mortos e o resultado indeciso; porque tanto os cronistas cristãos como os árabes atribuem aos seus a vitória. Contudo, não só a linguagem pouco explícita dos últimos, mas também a retirada do exército para Córdova persuadem que Ramiro levou a melhor.

O que parece claro é que a batalha de Osma deixou mui quebradas as forças dos dois adversários, porque os vemos dar tréguas às hostilidades durante três anos, no fim dos quais a luta se renovou com mais energia que dantes. Uma pequena faísca deu azo a um grande incêndio.

Umeyyah Ibn Isak Abu Yahya era neste tempo caide de Santarém, e seu irmão Mohammed vizir ou conselheiro na corte de Córdova. Teve o califa razões de queixa contra Mohammed e mandou-o matar. Irado com este procedimento, o caide de Santarém ligou-se com Ramiro, prestando-lhe obediência com um grande número de cavaleiros sarracenos do Gharb e entregando-lhe os castelos dependentes dele. Com esta aliança o rei de Leão pôde devastar a antiga Lusitânia, correndo por Badajoz até Mérida e voltando pelas imediações de Lisboa, donde se encaminhou para a Galiza carregado de despojos, posto o inquietassem os inimigos, que nesta conjuntura só se atreveram a fazer uma rápida correria além do Douro.

Apenas o califa de Córdova, Abdu r-Rahman, soube dos estragos feitos pelo rei leonês, resolveu empenhar todas as suas forças contra os cristãos e aniquilar-lhes o poder, que cada vez se tornava mais formidável para o islamismo. Por mandado do califa, todos os vális e caides marcharam com, as suas tropas para Salamanca, aonde o próprio Abdu r-Rahman veio tomar o mando do exército, que subia a mais de cem mil homens. Este corpo numeroso atravessou as fronteiras inimigas e, depois de assolar os lugares abertos e arrasar vários castelos, foi assentar campo em volta dos muros de Zamora.

Ramiro II, da sua parte, havia ajuntado em Burgos todas as forças de Leão, Astúrias, Galiza e Castela. Garcia, rei de Navarra, descera a socorrê-lo, e Abu Yahya viera também em seu auxílio com um grosso de cavalaria muçulmana. Assim o exército cristão, em estado já de competir com o do califa, pôde marchar ao encontro dele. Abdu r-Rahman, deixando no cerco de Zamora vinte mil homens, saiu com oitenta mil a receber os inimigos nas margens do Pisuerga junto a Simancas. As avançadas dos dois exércitos, encontrando-se ali, travaram uma escaramuça que não teve consequências.

Durante dois dias sarracenos e cristãos se conservaram sem começar o combate, como tomados da terribilidade da empresa, terribilidade que um grande eclipse do Sol viera aumentar. Ao terceiro dia, enfim, a cavalaria do Gharb rompeu a batalha, e Ramiro avançou com os seus esquadrões. A lide durou até à noite com igual fúria e esforço de ambas as partes e com vária fortuna. Ao anoitecer, o campo estava alastrado de cadáveres e de troços de armas. As trevas separaram os combatentes sem vantagem decisiva de nenhuma das partes, bem que ambas, como é natural, atribuíssem a si a vitória. Induzem a crer as expressões dos cronistas árabes que a perda dos muçulmanos havia sido a maior e que o rei de Leão ficaria vencedor, se tivera no dia seguinte renovado a peleja. Ele retirou-se, porém, naquela noite por conselho de Abu Yahya, que, porventura, já estava arrependido, como o persuade o seu posterior procedimento, de ter ajudado os inimigos do Corão a derramar o sangue dos muçulmanos, e que soube fazer acreditar a Ramiro que, se renovasse o combate, o último desfecho lhe seria desfavorável.

Os sarracenos não ousaram perseguir o exército leonês e voltaram ao campo de Zamora. Reina tal confusão entre os escritores árabes, sobretudo confrontados com os cronistas cristãos, que é impossível relatar com certeza e individuação os sucessos que seguiram a batalha de Simancas. O que parece mais provável é que os sarracenos se apossassem, enfim, de Zamora, mas com perda imensa, ou porque Ramiro viesse de improviso acometê-los, ou porque a resistência dos sitiados fosse tenacíssima, de modo que Abdu r-Rahman se retirou para Salamanca, conservando em Zamora uma guarnição, que pouco depois deixou cair novamente aquela povoação importante nas mãos dos leoneses, os quais cativaram aí o caide de Santarém, Abu Yahya, motor de toda esta guerra, e que se tinha em tão breve tempo tornado a unir aos seus correligionários.

Nesse mesmo ano (939) Ramiro II passou o Douro, menos para fazer novas invasões no interior da Espanha maometana do que para firmar o domínio cristão nos territórios que tinham sido teatro das precedentes lutas. Salamanca, Ledesma, Penharanda, Gormaz, Osma e outros muitos lugares das fronteiras, que jaziam desertos e destruídos, foram repovoados e guarnecidos de soldados. Data desta época o verdadeiro engrandecimento dos condes de Castela, onde a maior parte daquelas povoações eram situadas; engrandecimento que tantas perturbações veio a produzir na Espanha cristã e trouxe dentro em breve a rebelião dos condes Fernando Gonçalves e Diogo Nunes, os quais Ramiro submeteu, perdoando-lhes depois de algum tempo de prisão.

Acham-se nos historiadores árabes notícias de alguns recontros entre cristãos e muçulmanos posteriores a esta época. Deviam ser correrias de pouca substância, como de gente cansada de guerras e desejosa de repouso. Vemos, de feito, Ramiro enviar embaixadores a Córdova em 944 para assentarem paz com o califa, e este mandar a Leão o seu ministro ou vizir Ahmed Ibn Said para o mesmo fim. As tréguas então feitas duraram firmes até 949, último ano do reinado de Ramiro, que ainda então fez uma entrada até Elbora, hoje Talavera, a qual não pôde tomar, mas em cujas imediações desbaratou um grosso de sarracenos, fazendo-lhes grande matança e avultado número de cativos, ao que Abdu r-Rahman correspondeu com uma correria no território dos cristão, enquanto Ramiro II, oprimido de grave doença, falecia em Leão nos primeiros dias do ano de 950, havendo abdicado a coroa em seu filho mais velho Ordonho IlI.

Ordonho III de Leão


Apenas Ordonho subiu ao trono logo seu irmão Sancho começou a disputar-lho. Era ele então governador ou conde de Burgos e mancebo sabedor das coisas de guerra, que aprendera na escola de seu esforçado pai. O turbulento conde de Castela Fernando Gonçalves favorecia o seu bando. Este e Sancho dirigiram-se, cada um com seu exército, para Leão; mas Ordonho estava prevenido, e os dois aliados tiveram de desistir da empresa. Toda a vingança de Ordonho parece ter-se reduzido a repudiar sua mulher Urraca, filha do conde de Castela, a qual depois passou a segundas núpcias com Ordonho, o Mau.

A tentativa de Sancho teve eco na Galiza, para onde o rei de Leão marchou logo com grosso exército contra os levantados, que brevemente cederam. Pacificado tudo, Ordonho aproveitou as forças que ajuntara para fazer uma entrada nas terras dos infiéis. Passou o Douro, desceu pelo território muçulmano que hoje chamamos Beira e Estremadura até à foz do Tejo, tomou e saqueou Lisboa e voltou a Leão rico de despojos e cativos. Entretanto os sarracenos entravam por Castela e, segundo afirmam os seus cronistas, faziam aí grandes estragos. Nestas guerras obscuras passou o reinado de Ordonho III, que faleceu depois de governar por cinco anos e alguns meses.

Sancho I de Leão


Sucedeu-lhe seu irmão Sancho, que já havia mostrado quanto ambicionava a coroa. Pouco tempo reinou em paz Sancho I, denominado, pela sua extrema obesidade, o Gordo. Apenas passado um ano, Ordonho, filho de Afonso IV, que vivia em Leão como simples particular, tendo-se ligado com o sempre inquieto Fernando Gonçalves, cuja filha abandonada por Ordonho III tomara por mulher, rebelou-se contra o irmão e, ajudado pelo sogro, expulsou-o do trono. Sancho, fugitivo, acolheu-se a Navarra e dali a Córdova, buscando a protecção do inimigo de seu pai, do ilustre Abdu r-Rahman. Não se fiou em vão da generosidade do famoso califa: o príncipe muçulmano subministrou-lhe os socorros necessários para reconquistar os seus estados. A frente de um exército sarraceno, Sancho I entrou de novo na sua capital, donde fugira Ordonho, o Mau, esperando defender-se nas serras das Astúrias. Sancho, porém, não lhe concedeu repouso até o expulsar dos seus territórios. Ordonho, enfim, obrigado a refugiar-se entre os sarracenos, aí viveu o resto de seus dias na obscuridade e, porventura, na miséria; porque dele não tornam a fazer menção os historiadores.

Desde a época da restituição de Sancho I ao trono, a qual parece dever colocar-se em 961, até o segundo ano do califado de Al-Hakem, filho e sucessor de Abdu r-Rahman III, falecido pouco depois daquele sucesso, a paz subsistiu entre os cristãos e os sarracenos. As correrias, porém, do conde Fernando Gonçalves pela Espanha muçulmana acenderam de novo a guerra. Al-Hakem entrou em Castela, arrasou Gormaz, apossou-se de várias outras povoações, pôs cerco a Zamora, reduziu-a por fim e desmantelou-a, voltando depois a Córdova.

Provavelmente a guerra continuou pelos generais do califa; porque em 965 Sancho I lhe enviou embaixadores com mensagens dos condes fronteiros de Castela, que pediam paz. Estas mensagens indicam terem sido as correrias de Fernando Gonçalves feitas sem aprovação do rei leonês, que parece haver ficado mero espectador da luta. Al-Hakem acedeu aos desejos de Sancho, e a paz durou até o fim do governo deste príncipe.

Um levantamento de vários condes da Galiza, ligados com o bispo de Compostela, obrigaram Sancho I a entrar com mão armada naquela província. Gonçalo Sanches, um dos cabeças da rebelião, não se julgando assaz forte para resistir, fingiu ceder; mas numa conferência com o rei de Leão mandou envenená-lo. Assim acabou o reinado de Sancho I nos fins de 967. 

Ramiro III de Leão


Ramiro, seu filho, bem que contasse apenas cinco anos de idade, foi escolhido por sucessor do pai sob a tutela de sua tia Elvira. Algumas pequenas inquietações civis e um desembarque dos piratas normandos na Galiza são os acontecimentos mais notáveis da regência de Elvira, se não quisermos contar entre eles a morte do célebre Fernando Gonçalves (970), que, durante o seu longo governo em Burgos, capital de Castela, quase nunca depôs as armas, ou para acometer os sarracenos ou para promover tumultos contra os reis de Leão.

Al-Hakem tinha falecido em Córdova e, do mesmo modo que sucedera em Leão, seu filho Hisham, ainda menor, herdara o califado debaixo da tutela de sua mãe Subhque entregou as rédeas do governo ao hájibe Almaçor. Após uma trégua que durara por anos, foi este que de novo acendeu entre as duas raças que disputavam o domínio da Península o facho de sanguinosa e duradoura guerra.

A primeira tentativa do hájibe contra os cristãos foi uma larga algara ou correria súbita na Galiza, de que saiu sem risco e sem combate pelo repentino e inesperado dela. Nos anos seguintes Almançor repetiu estas entradas, travando combates com as tropas cristãs da Galiza e de Castela e desbaratando-as. As discórdias civis da Espanha goda facilitavam as vitórias dos sarracenos. Ramiro III, chegando à puberdade, começou a dar mostras de génio voluntário, inquieto e soberbo, que não tardou a alienar-lhe os ânimos da nobreza e do vulgo. Vendo ocasião oportuna, Vermudo ou Bermudo, neto de Fruela II, ajudado por vários condes da Galiza e ainda de Leão e Castela, fez-se aclamar em Compostela. Ramiro, à frente de um exército, marchou logo contra ele e, encontrando-se junto de Monteroso, os dois émulos travaram uma sanguinolenta batalha, que durou um dia inteiro sem vantagem conhecida, no fim da qual Ramiro retrocedeu para Leão e Bermudo para Compostela.

Neste tempo Almançor corria as fronteiras da Galiza. Bermudo parece ter buscado então a sua aliança e havê-lo induzido a acometer os territórios do seu adversário. O hájibe penetrou, de feito, até às margens do Ezla, que vem entrar no Douro perto de Zamora. Ramiro saiu a recebê-lo, e um dia em que os sarracenos repousavam descuidados no seu campo salteou-os com tal fúria que Almaçor esteve quase desbaratado. Foi precisa toda a energia do seu carácter para salvar-se da última ruína; mas os leoneses, vitoriosos a princípio, voltaram por fim as costas. Perseguiu-os o hájibe até Leão sem lhes dar repouso, e teria tomado aquela capital se uma súbita e horrorosa tempestade de neve e granizo, segundo o testemunho dos escritores tanto árabes como cristãos, não viesse impedir o combate no momento em que já os sarracenos punham as lanças nas portas da cidade. Receando o Inverno, em que a natureza pelejava a favor dos leoneses, Almançor voltou para Córdova, deixando espalhado entre os inimigos o terror do seu nome.

Nem por isso os países cristãos ficaram tranquilos. Como se lhes não bastassem os estragos feitos pelos muçulmanos, a guerra civil entre Galiza e Leão continuou durante dois anos e provavelmente só foi interrompida pela segunda entrada de Almançor, que na Primavera de 984 veio de novo pôr cerco a Leão. Os condes cristãos, de que fala o cronista Pélagio de Oviedo e que serviam no exército do hájibe, eram provavelmente os parciais de Bermudo, que para destruírem o poder de Ramiro não duvidavam de sacrificar a pátria comum e associavam os ódios intestinos à guerra de raça e de religião.

Sitiando a capital do reino leonês, Almançor resolvera tomá-la a todo o custo, ferindo assim os inimigos no coração. Ramiro, segundo alguns, era já falecido, mas segundo outros, cuja opinião parece mais bem fundada, vivia ainda nos fins deste ano. Reinasse, porém, Bermudo ou Ramiro, é certo que um deles fugiu para as Astúrias, levando consigo todas as preciosidades, não só de Leão, mas também de Astorga, que naquele tempo era a segunda povoação do reino.

Bermudo II de Leão e da Galiza


Enquanto o sucessor de Pelágio abandonava assim o centro da monarquia ao furor dos infiéis, o alcaide ou capitão da cidade preparava-se para tenaz defesa. De feito, os sarracenos receberam enormes perdas nos sucessivos combates que deram à povoação; mas, insistindo no seu propósito, Almaçor levou-a à escala vista. Saqueada, mortos ou cativos os seus habitantes, o hájibe mandou arrasar-lhe os muros e o seu forte castelo.

A tomada de Astorga seguiu-se à de Leão, apesar da brava resistência dos seus defensores. Quisera Almançor seguir a vitória embrenhando-se nas Astúrias; mas, rechaçado dos castelos de Luna, Alva e Gordon, recolheu-se a Córdova satisfeito com deixar reduzidas a ruínas as duas mais notáveis povoações do país inimigo.

A tão disputada coroa da Espanha cristã meridional possuía-a, enfim, sem competidor, Bermudo II, mas convertida em coroa de espinhos. Os sarracenos corriam vitoriosos por Leão, Castela e Galiza, devastando esta última até as ribas do mar e parando só, pelo sertão ao norte, na barreira insuperável que lhes antepunham as agras serranias das Astúrias. O reinado de Bermudo, a quem uma enfermidade incurável fizera denominar o Gotoso, foi-lhe dilatada agonia, vendo quase anualmente os infiéis assolarem-lhe o território e desmantelarem-lhe as mais belas cidades do seu senhorio, cuja extensão e importância as memórias das perdas dessa triste época, melhor que nenhumas outras, dão a conhecer. O terrível hájibe parecia ter jurado apagar o nome cristão na Península. 

Vencedor ao norte dos catalães e navarros, reduzia os estados do Sul e Meio-Dia quase à derradeira extremidade. Em diversos anos da sua longa regência em nome do califa Hisham ermou a Castela, tomando e derribando as povoações mais notáveis, e o mesmo fez à Galiza, cujas fronteiras, provavelmente desde a invasão de Ordonho III na antiga Lusitânia, se estendiam até o Mondego. Em 987, Coimbra (a Kulūmriyya dos árabes) caiu em poder de Almançor, que a destruiu, repovoando-a de sarracenos passados sete anos, durante os quais esteve deserta. 

As turbulências civis vinham multiplicar entretanto os males da cristandade espanhola. A um tempo Sancho Garcez, filho do conde de Castela Garcia Fernandes, tomava armas contra seu pai, e Gonçalo Menendes alevantava-se na Galiza contra a autoridade de Bermudo. No meio destas revoltas o hájibe entrava por Castela e, depois de dois dias de furiosa peleja, destroçava completamente os exércitos unidos do conde Garcia Fernandes e do rei de Navarra, que viera em seu auxílio, caindo o conde moribundo em poder dos sarracenos, que, apesar de todas as diligências, não puderam salvar-lhe a vida.

Prosseguiu Almançorr a sua vitoriosa marcha para a província de Leão, aonde parece não voltara desde a destruição da cidade do mesmo nome. Desbaratadas as tropas leonesas, o exército sarraceno regressou a Córdova pela entrada do Inverno. Passavam estes sucessos nos fins de 995. No começo do ano seguinte, Bermudo II, inquieto com as perturbações domésticas e vendo os seus domínios assolados pelas incessantes correrias do indomável hájibe, resolveu enviar mensageiros ao califa pedindo tréguas. Almançor, que era o verdadeiro senhor em Córdova, parecia não estar longe de conceder algum respiro aos cristãos, mas afinal nada se concluiu, e em 997 as hostilidades principiaram de novo com redobrada energia.

Foi no Verão deste ano que os sarracenos intentaram levar mais longe as armas pelo lado ocidental dos estados de Bermudo. A gazua (ghaswat, expedição sacra), como os árabes denominavam a guerra intentada contra os cristãos, foi desta vez feita por mar e por terra. Era em destruir Compostela, correndo a Galiza do sul ao norte, que o hájibe pusera a mira. Alentava-o nesta nunca tentada empresa o acordo secreto que tinha com vários condes daquelas partes inimigos de Bermudo. Enquanto ele atravessava o território das modernas províncias da Estremadura castelhana, Salamanca e Beira Alta, onde os seus aliados cristãos se lhe vieram unir, uma frota saída de Alcácer (Al-Kassr Abu Danès) ia aportar na foz do Douro e desembarcar junto ao Porto (Bortkal, Portucale) mais tropas e petrechos de guerra. Reunidas aí todas as forças do hájibe, ele atravessou aquela parte da antiga Galiza chamada hoje província de Entre Douro e Minho e, vencendo os obstáculos que lhe opunham os homens e a natureza naquelas regiões montanhosas, chegou aos muros de Compostela. Estava desamparada a cidade de seus habitantes: entraram sem resistência os sarracenos; derribaram os muros, o castelo e a igreja de Santiago, a que pela sua celebridade os escritores árabes chamavam a Kaaba dos nazarenos, com o quem dissera o templo por excelência, sendo assim denominado entre os muçulmanos o de Meca. Dali avançou para o lado da Corunha, aonde, segundo o testemunho do historiador árabe Al-Makkari, nunca os sarracenos tinham chegado. O cansaço da cavalaria impediu o hájibe de prosseguir mais além para o norte, e por isso, retrocedendo pela província de Leão, que de novo assolou, recolheu-se a Córdova, depois de fazer ricos do nativos, provavelmente parte dos despojos, aos condes cristãos que o tinham ajudado naquela campanha e cujos territórios haviam sido cuidadosamente respeitados.

No meio de tantas desventuras chegou o fim do século X e do reinado de Bermudo II, falecido em 999. 



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