História - Reconquista: De Afonso V de Leão a Afonso VI de Leão e Castela, por Alexandre Herculano
O
astro brilhante que alumiara os passos de Pelágio, dos três
primeiros Afonsos e de Ramiro II quase que se imergira nas mais
espessas trevas durante
esse longo reinado. Apenas nos desvios selváticos das Astúrias
evitaram os cristãos
a última ruína. O século XI começava com uma triste perspectiva;
porque à pobreza,
despovoação e desalento geral se ajuntava o ir caindo em desuso o
direito electivo
dos godos, sucedendo na coroa um rei menino, qual era Afonso, filho
de Bermudo,
então de cinco anos de idade, quando para salvar a monarquia leonesa
era necessário
um príncipe ao mesmo tempo político e guerreiro, que pudesse conter
as discórdias
civis, primeira fonte do mal, e pôr de algum modo termo à
invariável fortuna do
terrível hájibe de Córdova.
Com
péssimos auspícios foi, pois, aclamado o moço Afonso V em Leão,
que os cristãos
tinham começado a reedificar. Tomaram felizmente o leme dos negócios públicos
Menendo Gonçalves, conde da Galiza, e Sancho Garcez, conde de
Castela e tio do
rei, ambos cavaleiros ilustres. A viúva de Bermudo, Geloira ou
Elvira, mulher de altos
espíritos, obteve também grande influência na administração do
país, à qual presidia
juntamente com os dois condes. Guerras em Africa tinham entretido por
algum tempo
o implacável Almançor, e os cristãos puderam por breve intervalo
despir as armas.
Mas ainda no ano 1000 ele fizera uma correria em Castela, na qual
desbaratara Sancho
Garcez, e depois, passando àquela parte da antiga Lusitânia que já
se achava unida
à Galiza, tomara os castelos de Aguiar e Montemor. Foi todavia só
em 1002 que o hájibe
se empenhou em reduzir definitivamente Castela ao domínio muçulmano, consumindo
o ano anterior nas disposições necessárias para essa conquista. A
nova dos imensos aprestos dos sarracenos derramou o susto entre os
cristãos.
Os
tutores e conselheiros de Afonso V preparavam-se activamente para a
luta. Sancho, rei
de Navarra, que por seu muito esforço e energia adquirira o apelido
de Quadrimano, veio
com as forças de Navarra, com algumas do Meio-Dia da França e, até,
com os bascos independentes ajuntar-se às tropas de Leão, Galiza e Castela. Nos
campos de Lorca
viram-se pela primeira vez sinceramente unidos esses homens irmãos
em crença, que,
havia tantos anos, as paixões políticas tinham feito adversários
ou pelo menos estranhos.
Entretanto os sarracenos avançavam seguindo a corrente do Douro para
o nascente
e assolando tudo na sua passagem. Junto a um lugar que os
historiadores árabes
indicam pelo nome de Kalat Al-Nosor (píncaro dos abutres) deram de
rosto com o
campo dos cristãos, cujo número encheu de espanto os corredores
muçulmanos. Entre estes
e os inimigos travou-se logo uma pequena escaramuça, que a noite
veio interromper,
começando a batalha ao alvorecer do dia seguinte.
Foi terrível o
recontro, pelejando
uns e outros como quem não ignorava a importância daquela jornada.
Durou o
combate enquanto durou a luz do Sol, e ao anoitecer nem cristãos nem
sarracenos haviam
recuado um só passo. As trevas vieram pôr termo à carnificina, sem
que a vitória
se inclinasse claramente para nenhuma parte. Quando, porém, durante
a noite, Almançor
soube que a maior e melhor porção dos seus cabos de guerra e
cavaleiros perecera,
fraquejando-lhe o ânimo feroz, ordenou passar o Douro com o que restava do exército.
Os cristãos, não menos destroçados que os inimigos, nem sequer
ousaram segui-lo.
O hájibe não pôde sobreviver à desonra. A mágoa, a idade e
algumas feridas que
recebera o fizeram expirar apenas transpostas as fronteiras de
Casteia.
Abd al-Malik al-Muzaffar,
filho de Almançorr, foi nomeado hájibe em lugar de seu pai, como já vimos.
Em 1003 o novo hájibe abriu a campanha acometendo na Primavera a
Catalunha e
no Outono a monarquia leonesa, onde tomou a cidade de Leão, que
principiava a erguer-se
das suas ruínas e que foi de novo destruída. Durante o ano de 1005
as mútuas correrias
cessaram com uma trégua que durou até 1007, época em que Abd al-Malik, penetrando
na Castela e dali passando à Galiza, pôs tudo a ferro e fogo. A
terra ficou destruída,
e foram arrasados os castelos de Osma e Gormaz. Seguindo as margens
do Douro,
o hájibe voltou a Córdova, senão coberto de glória por batalhas
vencidas, ao menos
rico de despojos.
Mas
estas vantagens dos sarracenos breve deviam ter desconto. No ano
seguinte Abd al-Malik avançou pela Galiza com poderoso exército, cujo principal nervo era
um corpo
numeroso de cavalaria escolhida. Saíram-lhe os cristãos ao
encontro; onde e quando,
coisa é que se ignora. Foi brava e disputada a peleja e, se
acreditarmos os historiadores
árabes, os soldados do rei de Leão recuaram a princípio; porém melhorando-se
logo, posto que o hájibe sustivesse até à noite o peso da batalha,
foi por fim
vencido, não sem grande perda dos seus adversários. Voltou então a
Córdova, onde faleceu
nesse mesmo ano.
A
morte de Abd al-Malik produziu as graves perturbações.
As guerras civis de cada uma das duas raças inimigas que disputavam
o domínio
da Península eram naturalmente ocasião de engrandecimento ou, pelo
menos, de
repouso para a outra. Foi o que desta vez sucedeu. Nos combates que
então alagaram de
sangue as praças da orgulhosa Córdova, as tropas africanas que
formavam a guarda do
califa Hisham, adversa a Mohammed Ibn Hisham, o qual soubera apossar-se
do califado,
foram obrigadas, conforme dissemos, a sair da cidade perseguidas
pelos muçulmanos espanhóis
e a retirar-se para as fronteiras de Castela. Suleiman Ibn Al-Hakem capitaneava-as
então por morte do seu antigo general Hisham Al-Rashid. Propôs ele ao conde
castelhano ceder-lhe certos castelos que tinha de sua mão nas
fronteiras, se o quisesse
ajudar contra Mohammed. Aceitou o conde.
Não
só as revoltas entre os sarracenos deixavam repousar das passadas
angústias a monarquia
leonesa, mas também as diversas parcialidades que mutuamente se dilaceravam
restituíam aos cristãos as povoações e castelos conquistados pelo
célebre Almançor
para obterem deles auxílio. Assim o conde Sancho Garcez, que houvera
de Suleiman
alguns lugares como retribuição de serviços prestados, alcançou
daí a pouco recuperar
Santo Estêvão, Osma e Clunia, servindo os adversários do africano.
Aproveitando
habilmente as circunstâncias, o incansável conde de Castela chegou
por este
modo a ver ainda durante á sua vida restaurada a integridade do
território castelhano.
O apreço que os sarracenos faziam da aliança de Sancho, a
influência que tinha
em toda a monarquia como tio do moço Afonso V e a quase
independência de que já
os seus antecessores tinham gozado incitavam o conde a converter a
Castela num estado
de todo independente. Favoreciam a tentativa assim os poucos anos do
rei de Leão,
como a supremacia que Sancho Garcez tinha na realidade sobre os
outros condes daquela
província, posto que só o distrito de Burgos, a principal cidade de
Castela, constituísse
em rigor o condado de Sancho, em cuja família se tornara hereditário
um cargo
que, pelas antigas instituições visigóticas era, quando muito,
vitalício.
Foi
no período decorrido de 1012 a 1016 que rebentaram as discórdias
entre Afonso
V, que ainda não contava vinte anos, e seu tio Sancho Garcez. Estas
discórdias parece
haverem-se prolongado até 1021, época da morte do conde de Castela.
Se acreditarmos
vários documentos desse tempo (de cuja autenticidade alguns
duvidam), o próprio
Afonso V taxava então o tio de infidelíssimo e de seu adversário.
O que é certo é
que o moço rei de Leão acolheu com honras e mercês a poderosa
família dos Velas ou Vigilas,
que haviam abandonado a Castela por inimizades com Sancho Garcez, e
não menos
o é que este fazia ligas com os muçulmanos ou os guerreava, sem
curar dos interesses
ou da vontade do governo leonês, o que prova proceder ele como se
fosse um soberano
independente.
Todavia,
se este acontecimento gerou uma guerra civil, ela não foi nem
violenta nem
duradoura. O conde de Castela faleceu em 1021 deixando por sucessor
seu filho Garcia
Sanches ainda na infância, e não consta que Afonso V tentasse
aproveitar este ensejo
para anular a importância dos condes castelhanos, antes, segundo
alguns historiadores,
foi ainda em vida deste rei que Bermudo, seu único filho, se
desposou com
Urraca, irmã mais moça do novo conde, e se contratou o casamento
deste com Sancha,
irmã de Bermudo. Pretendem outros, talvez com melhor fundamento, que
os esponsais
do conde de Castela só se contraíssem no reinado de Bermudo, no
qual sucedeu
indubitavelmente o assassínio de Garcia Sanches, assassínio que,
como logo veremos,
deu azo a grandes alterações políticas na Espanha cristã.
Os
antigos monumentos falam vagamente das guerras de Afonso V com os sarracenos
e das grandes vitórias deste príncipe: o que sabemos, porém, com
certeza é que
em 1027 ele passara o Douro e, discorrendo pelo Norte do Gharb, viera
pôr cerco a Viseu,
que provavelmente ficara em poder dos muçulmanos desde o tempo de
Almançor.
Foi
durante o assédio que a morte o salteou no vigor da idade. Era no
estio; intensa
a calma. Despidas as armas e trajando apenas uma túnica de linho, o
rei discorria
em volta dos muros inimigos: um virote partiu das ameias e, ferindo-o mortalmente,
derrubou-o do cavalo. Levado à sua tenda, Afonso V expirou
brevemente, contando
pouco mais de trinta anos e quase outros tantos de reinado.
Bermudo III de Leão
Subindo
ao trono Bermudo III, filho do rei defunto, os nobres de Castela, provavelmente
os tutores de Garcia, enviaram-lhe mensageiros propondo o casamento do
moço conde com a infanta Sancha, e pedindo para ele a concessão do
título de rei. Não
recusou Bermudo, segundo parece, a pretensão, porque dentro em pouco
os nobres de
Burgos se dirigiram a Leão levando consigo o seu pupilo, a fim de
concluírem aquele casamento
que devia pôr termo às discórdias entre o rei e o seu já em
demasia poderoso súbdito.
Tinha entretanto Bermudo partido para Oviedo.
Chegados os castelhanos
a Leão,
resolveram prosseguir até aquela cidade para se verem com o rei: mas
atalhou-lhes os
passos inopinado sucesso. Os irmãos Vigilas ou Velas, que guardavam
profundo rancor
contra a família do conde Sancho Garcez, ajuntando um grosso corpo
de soldadesca nas
Astúrias e caminhando uma noite inteira, entraram em Leão ao
alvorecer e, encontrando
o jovem Garcia, assassinaram-no juntamente com muitos castelhanos e leoneses
que haviam tentado ampará-lo. Saindo depois a seu salvo da cidade,
dirigiram-se para
a fronteira de Castela e acolheram-se a Monzón, lugar forte situado
num monte sobranceiro
ao rio Carrión.
O
idoso Sancho, rei de Navarra, era casado com a irmã mais velha de
Garcia. Por este
motivo julgou que devia suceder ao conde e vingá-lo. Entrou com um
exercito por Castela,
veio sitiar Monzón, tomou-a, meteu
a cutelo os seus defensores e mandou queimar
vivos os Velas, que aí cativara. Depois, dirigindo-se a
Burgos, fez-se aclamar sucessor
de Garcia Sanches, unindo a Castela à Navarra, e fazendo-se assim o
mais poderoso
potentado da Espanha cristã.
Nem
a ambição de Sancho, excitada pelo aumento de domínios, nem o ressentimento
de Bermudo ou dos seus tutores pela diminuição deles consentiram durasse
muito a paz entre Leão e Navarra. A reedificação de Palência fez
rebentar o incêndio.
Intentara o navarro alevantá-la das ruínas como situada nos limites
do con-dado de
Castela. Bermudo opôs-se pretendendo que estava incluída dentro do
distrito leonês.
Daqui as hostilidades. Sancho, velho enérgico e guerreiro, penetrou
logo nos domínios
do seu adversário e apossou-se de todo o território que se dilata
entre os rios Cea
e Pisuerga. Andava então na Galiza Bermudo, empenhado em atalhar
tumultos naquela
sempre inquieta província, e o inimigo pôde atravessar o Cea e
correr os campos
de Leão. Mas os leoneses começaram a tomar as armas, e Bermudo,
ajuntando um
exército de galegos, veio em seu auxílio.
Esta guerra iminente
evitou-se, todavia, conforme
alguns, por intervenção dos bispos de um e de outro país. Os dois
reis firmaram
a paz com a condição de que Fernando, filho segundo do de Navarra,
casaria com
Sancha, a prometida esposa do assassinado Garcia, cedendo-lhe Bermudo
o território
conquistado pelo navarro entre o Cea e o Pisuerga. Estes sucessos,
que tornavam
Sancho o mais poderoso entre os príncipes cristãos da Espanha,
passavam pelos
anos de 1032: a ambição, porém, não o deixava repousar. Ignora-se
com que pretexto,
mas é certo que em 1034 entrou por Leão em som de guerra e subjugou
todo aquele
país até às fronteiras da Galiza e, porventura, ainda numa parte
desta, conquistas que
conservou até à época do seu falecimento nos princípios do ano
seguinte, em que contava
setenta de idade e de reinado sessenta e cinco.
A
morte de Sancho gerou a guerra civil. Dividira ele entre os filhos os
seus vastos estados,
que abrangiam as modernas Navarras, francesa e espanhola, o condado
de Aragão,
muito mais limitado que a actual província deste nome, a Castela e
Leão propriamente
dito; isto é, abrangiam mais de dois terços do território da
Espanha libertada
do jugo dos sarracenos. A Navarra ficou ao mais velho, Garcia, que
então se achava
em Itália, Aragão a Ramiro e a Fernando o novo reino de Castela
com a parte de
Leão entre Cea e Pisuerga, tendo Bermudo ocupado imediatamente a
outra parte.
Ramiro,
porém, cujo quinhão fora o mais diminuto, talvez porque, como se
crê, era bastardo,
aproveitando a ausência de Garcia e aliando-se com os vális de
Saragoça, Huesca
e Tudela, entrou pelos estados do irmão com intento de os
conquistar. Entretanto,
Garcia, que, recebida a nova da morte de seu pai, voltara a Espanha, sabendo
da tentativa do irmão, saiu-lhe ao encontro com as forças que à
pressa pôde ajuntar.
A sorte das armas foi inteiramente adversa a Ramiro, que escapou a
custo perseguido
por Garcia, ficando no campo muitos aragoneses e ainda mais
sarracenos. Vencido,
Ramiro pediu e obteve a paz, contentando-se de salvar a pequena
porção que lhe
coubera na rica herança paterna.
Bermudo,
como dissemos, logo que Sancho de Navarra morrera, havia dentro em poucos
dias recuperado a província de Leão, segundo parece, por acto
espontâneo dos condes
e governadores de castelos, sem que lhe fosse necessário
reconquistá-la. Tinha Bermudo
chegado então à idade viril. Pintam-no como mancebo de altos
espíritos, esforçado
e amigo da justiça. O largo período da sua menoridade devia ter
gerado muitos
abusos. O primeiro ano de governo gastou-o em remediar os males
passados; mas
no imediato (1037) resolveu restabelecer os anteriores limites do
território leonês, invadindo
o distrito entre Cea e Pisuerga, que fora constrangido a ceder. Com
um exército
de galegos e leoneses, entrou por aquela parte: Fernando, rei de
Castela e seu cunhado,
achando-se inferior em forças, invocou o socorro de Garcia, que
desceu imediatamente
de Navarra a ajudá-lo. Saíram os dois irmãos a receber o invasor
e, encontrando-o
junto do rio Carrión, travou-se a batalha.
Foi esta a das mais bem
feridas que
se viram em Espanha; fizeram-se muitas gentilezas de armas, e Bermudo distinguiu-se
entre todos pelo seu valor. A Providência tinha, porém, marcado o
termo à dinastia
leonesa. Rompendo por entre as alas castelhanas e navarras, o audaz
filho de Afonso
V foi topar em cheio com o rei de Castela, a cujas mãos acabou, se
acreditarmos o
letreiro que ainda se lê sobre o túmulo de Bermudo na catedral de
Leão, ou antes às de Garcia
de Navarra, como parece indicarem-no os antigos cronistas. Fernando,
vitorioso, marchou
imediatamente contra a capital, cujos moradores tentaram
resistir-lhe. Mas por uma
espécie de direito consuetudinário de sucessão, que na prática ia
substituindo pouco
a pouco o direito electivo dos visigodos, morto Bermudo sem filhos a
coroa pertencia
a Fernando de Castela por sua mulher Sancha, irmã e herdeira de
Bermudo.
Assim
os habitantes de Leão, conhecendo talvez que o último resultado da
luta seria reconhecerem
como rei o príncipe castelhano, cederam à fortuna do vencedor, e
Fernando I foi aclamado rei de Leão e Castela.
Fernando I de Leão, o Magno
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O
novo monarca era, de feito, digno das duas coroas: o seu génio e
vasta capacidade,
tanto na paz como na guerra, granjearam-lhe na sucessão dos tempos o título
de Magno ou Grande. Nos primeiros anos de reinado aplicou-se a
reprimir as rebeliões
que para os fidalgos de Espanha eram hábito inveterado, a
estabelecer o sossego
e a dar vigor às leis do país, confirmando as antigas e promulgando
outras novas.
Até 1050 a monarquia de Leão e Castela desfrutou debaixo do seu
governo a paz externa,
não só com os príncipes. cristãos da Espanha oriental, mas também
com os sarracenos,
cujo império, devorado pelas discórdias, caíra em completa
anarquia.
A
ambição de Garcia veio então interromper este estado próspero e
tranquilo. Garcia,
que estabelecera a corte em Naxera, achava-se aí enfermo: obrigado
do afecto fraterno,
Fernando I correu a vê-lo. Apenas chegou, o irmão tramou prendê-lo,
mas, avisado
da traição, o rei castelhano pôde ainda salvar-se. Daí a pouco
Fernando adoeceu igualmente,
e Garcia, talvez para arredar as suspeitas que, segundo se persuadia,
apenas seu
irmão concebera, veio visitá-lo. Não perdeu Fernando o ensejo para
a vingança. O rei
de Navarra foi preso e metido no castelo de Cea. Pouco lhe durou,
porém, o cativeiro;
porque, peitando os que o guardavam, alcançou escapar e recolher-se
aos seus estados.
Depois
disto a guerra era inevitável: Garcia começou-a fazendo correrias
furiosas por
Castela e pondo tudo a ferro e fogo. Seu irmão ajuntou logo numeroso
exército; mas antes
de marchar contra ele enviou-lhe mensageiros propondo-lhe a paz e o esquecimento
do passado. Cerrou os ouvidos o rei de Navarra a todas as proposições
e, depois
de maltratar os enviados, despediu-os com terríveis ameaças e
encaminhou-se imediatamente
para Burgos.
A
poucas léguas desta cidade saiu-lhe ao encontro o rei de Leão e
Castela, que ainda
tentou evitar o combate. Todavia o navarro, fiado na bondade dos seus
homens de armas,
no grande número de sarracenos que tomara a soldo e no próprio
esforço e destreza
militar, pela qual era na verdade afamado, recusou toda a
conciliação. Ao romper
do dia os dois exércitos acometeram-se com igual furor; mas um troço
de cavaleiros
escolhidos, que o rei leonês pusera em cilada num bosque vizinho,
arrojaram-se, lança
em riste, quando mais revolto andava o combate, contra a ala onde
pelejava Garcia
e, rompendo por entre os que o rodeavam, feriram a um tempo no rei de
Navarra e
deram com ele em terra, quase ou inteiramente morto. Sabida esta
nova, os navarros desampararam
o campo perseguidos pelos seus contrários, a quem Fernando ordenou respeitassem
a vida e a liberdade dos cristãos e aprisionassem ou matassem sem
piedade os
sarracenos aliados de Garcia. Depois, buscando o cadáver do irmão,
levou-o consigo para
Naxera, onde entrou vitorioso, e deu-lhe honrada sepultura na
catedral desta cidade.
A
moderação de Fernando I após a vitória, moderação que ainda
hoje fora admirável,
é muito mais digna de louvor atendendo à rudeza e ambições
desregradas daqueles
tempos. Estava a seus pés a coroa de Navarra: não a pôs sobre a
cabeça; porque
vemos Sancho, filho mais velho de Garcia, suceder a seu pai no trono,
que ocupou
por muitos anos.
Estes
acontecimentos sucediam por fins de 1054. No ano seguinte Fernando I, senhor
da maior e melhor porção da Espanha cristã, ao passo que o império
de Córdova, dilacerado,
como vimos, por atrozes e longas guerras civis, se desmembrara em
quase tantos
estados quantas eram as suas províncias ou distritos, resolveu
aproveitar a conjuntura
para dilatar os próprios domínios à custa dos sectários do Corão.
Assim, atravessando
o Douro pelo lado de Zamora e encaminhando-se para o ocidente, entrou pela
nossa moderna província da Beira, cujos castelos tantas vezes tinham
sido já tomados
e perdidos por cristãos e sarracenos. O de Seia (Sena) foi o
primeiro que ele tomou,
talando os seus arredores e reduzindo outros castelos menos
importantes. Desde então
a guerra continuou por todas as primaveras seguintes, sendo
conquistados sucessivamente
(1057) Viseu, Lamego, Tarouca e outros lugares fortes. Transportando depois
o teatro da guerra para as fronteiras de Castela, prosseguiu durante
anos a série de
suas conquistas e triunfos até vir pôr cerco a Alcalá de Henares,
situada no interior da
Espanha árabe, não longe de Toledo. Requerido pelos habitantes de
Alcalá para que os
salvasse, o emir toledano Al-Mamon preferiu sair com esse intento à
custa de súplicas
e avultadíssimas dádivas a comprá-lo por preço de sangue.
Satisfeito com os presentes
e humilhação de Al-Mamon, Fernando I deixou respirar os sarracenos
por algum
tempo e voltou a Zamora, entretendo-se no ano imediato em restaurá-la completamente
das antigas ruínas.
Mas
o seu génio inquieto e guerreiro não lhe consentia despir por muito
tempo as armas.
Fazendo nova entrada para o ocidente, veio pôr cerco à cidade de
Coimbra, a mais
importante povoação deste lado das fronteiras muçulmanas. Era o
lugar forte e bem
defendido, e o sítio durou seis meses. Por fim os sarracenos
renderam-se ou por fome
ou porque o estado dos muros, de contínuo combatidos, não consentia
mais dilatada
defensa. Assim, finalmente, Coimbra caiu em poder dos cristãos, para
nunca mais
sair dele.
Passava
este sucesso em 1064/65 . No ano seguinte Fernando I levou as suas
armas até
a extremidade meridional da Espanha muçulmana, onde nunca havia
penetrado nenhum
dos seus predecessores, isto é, até Valência. Esta remota
correria, de que falam os
cronistas cristãos e que seria árdua de crer pelo extraordinário
da empresa, explica-se pelo
que referem as histórias árabes. Al-Mamon, amir de Toledo, desde
que obtivera a paz
com o rei de Leão e Castela no cerco de Alcalá, soubera conservar
sempre a sua poderosa
aliança. Levado, no meio das lutas civis em que ardia a Espanha
maometana, a declarar
guerra a seu genro o emir de Valência, pediu socorros a Fernando, o
Magno. A invasão
do território de Valência por Al-Mamon cai, segundo o testemunho
dos escritores
árabes, neste ano. São eles que nos certificam de que o socorro
pedido se verificara,
e as conquistas de Al-Mamon, que chegou a expulsar o genro dos seus domínios,
vem a ser a mesma coisa que as vitórias do rei leonês narradas
pelos cronistas cristãos.
Antes
de acabarem as guerras do emir de Toledo, Fernando I, achando-se
bastante enfermo,
voltou a Leão, onde, agravando-se a doença, faleceu nos fins de
Dezembro do ano
1065.
Já anteriormente, seguindo as pisadas de Sancho, o Maior, o
rei leonês tinha determinado
num concílio ou cortes a forma por que todos os seus filhos deviam
herdar cada
qual uma porção dos vastos estados que lhes legava. Estas divisões,
contrárias ao disposto
no Código Visigótico, o qual, no mais, se conservava geralmente em
vigor, tinham
origem, quanto a nós, não tanto no amor excessivo dos príncipes
para com seus filhos,
como nas circunstâncias que haviam acompanhado o crescimento da
monarquia fundada
por Pelágio. A rápida narração que temos feito basta para se
conhecer que essa monarquia,
depois de se dilatar por certa extensão de território, tendia
constantemente a desmembrar-se
em pequenos principados. Cada conde ou governador de distrito, tendo necessariamente,
em virtude do estado de guerra contínua, juntos em suas mãos todos
os poderes
militares, judiciais, administrativos, era quase um verdadeiro rei, e
nada mais fácil
do que esquecer-se de que lá ao longe, para o lado das montanhas das
Astúrias, havia
um homem superior a ele. Sem existir o feudalismo, causas análogas
às que o tinham
gerado no Norte da Europa actuavam na Espanha, e a estas causas, mais
fortes nos
distritos da fronteira árabe, onde a energia dos respectivos condes
devia ser maior e o
seu poder mais ilimitado, faziam com que aí as rebeliões fossem
mais frequentes e algumas
coroadas de bom sucesso, como sucedeu, primeiro com a Navarra ao
oriente, depois
com Castela no centro e, por último, com Portugal ao ocidente.
Palpando, por assim
dizer, este espírito de desmembração, que nascia da força das
coisas depois que os estados
cristãos adquiriram pela conquista mais remotos limites, Fernando
Magno procurou
que as tendências de separação, em vez de aproveitarem a
estranhos, revertessem
em proveito dos membros da sua família, e que assim se evitassem as
lutas civis,
cedendo a essas tendências em vez de tentar inutilmente,
reprimi-las.
Os Herdeiros de Fernando Magno
Fossem
estes motivos racionais ou outros quaisquer os do procedimento de Fernando
I, é certo que não deixou sem quinhão nenhum dos três filhos e
duas filhas que
tinha quando faleceu. Sancho, o primogénito, herdou a Castela com o
título de rei; Afonso,
o reino de Leão e Astúrias; Garcia, a Galiza, também constituída
então em reino
independente. Urraca ficou soberana em Zamora, e Geloira ou Elvira em
Touro, com
muitos outros bens nos domínios dos irmãos e, o que era mais
importante, com o senhorio
de todos aqueles mosteiros cujo padroado pertencia à coroa. O título
de rainhas,
com que parece ficarem também, deu provavelmente origem ao costume
de atribuir
essa denominação a todas as infantas ou filhas de reis, costume que
veremos seguido
ainda entre nós nos princípios da monarquia.
Durante
algum tempo os três filhos de Fernando, posto que descontentes todos mais
ou menos da partilha, viveram em paz, provavelmente porque o respeito
a sua mãe D.
Sancha, que os historiadores pintam como um modelo de virtude, de
lhaneza e de bom
juízo, os refreava. Falecendo, porém, D. Sancha nos fins de 1067,
logo no ano seguinte
o fogo que ardia debaixo das cinzas se ateou em chama violenta.
Ignora-se o pretexto
que para isso houve; mas é certo que a luta começou entre Afonso de
Leão e Sancho
de Castela. Os dois irmãos marcharam um contra o outro e vieram
encontrar-se junto
do rio Pisuerga. Foi brava a batalha com grande e mútuo estrago; mas
por fim Afonso
foi desbaratado. Como os fundamentos da guerra, ignoram-se igualmente
as circunstâncias
que embargaram os passos do vencedor; vê-se, todavia, que o rei de
Leão voltou
à sua capital sem ser perseguido e que as hostilidades se não
renovaram durante os
três anos seguintes.
No
Verão, porém, de 1071 a paz quebrou-se de novo, e os dois irmãos
tornaram a acometer-se.
Tratando desta batalha, os antigos cronistas falam do exército de
Afonso como
composto não só de leoneses, mas também de galegos, o que,
juntamente com os sucessos
posteriores, nos persuade de que o rei da Galiza, Garcia, se inclinou
à parcialidade
do de Leão enviando-lhe socorros. Encontraram-se os dois exércitos
nas fronteiras
de Leão e Castela, nas margens do Carrión. Mais ferida e tenaz foi
esta batalha
que a primeira. No fim do dia os castelhanos desordenaram-se e
fugiram. Sancho, mau
grado seu, seguiu-os arrastado por eles. Afonso ficou senhor dos
arraiais do rei
de Castela e, contente com a vitória, proibiu aos seus que
perseguissem os fugitivos.
Um
guerreiro, porém, havia entre os soldados de Sancho, que, célebre
já por extraordinário
esforço, conservara desafogado ânimo no meio daquela triste rota. Chamava-se
Roderico Didacide ou Rui Dias, mais conhecido depois pelo nome de
Cid, de
quem tantas patranhas se contam. Persuadido de que um cometimento
repentino contra
os descuidados vencedores poderia mudar a fortuna daquela fatal
jornada, convenceu
o rei de Castela de que, voltando de noite e dando inesperadamente
nos inimigos
ao romper da alva, fácil seria desbaratá-los. Assim se fez, e o
resultado provou a
bondade do estratagema. Colhidos de improviso e meio desarmados, os
leoneses e galegos
cederam facilmente, e tão completo foi o destroço que o próprio
Afonso caiu em
poder de seu irmão, o qual o mandou conduzir cativo para Burgos e,
avançando com o
exército vitorioso, se apossou de Leão sem encontrar resistência.
O rei prisioneiro foi obrigado,
para evitar pior sorte, a vestir a cógula monástica no célebre
Mosteiro de São Facundo
ou Sahagún, donde passados tempos pôde evadir-se para Toledo,
pondo-se debaixo
da protecção do antigo aliado de seu pai, o amir Al-Mamon.
Enquanto
estas coisas se passavam entre castelhanos e leoneses, os estados que Fernando
Magno herdara a seu terceiro filho não gozavam de mais
tranquilidade. Garcia reinava
na Galiza e no território já denominado Portugal, que abrangia não
só toda a porção
daquela província ao sul do Minho e ao norte do Douro, mas também o
distrito que,
ao sul deste último rio até o Mondego, tinha sido conquistado aos
sarracenos. Era Garcia
de ânimo feroz, querendo mais governar pelo terror que pelo afecto.
Alguns barões
de Entre Douro e Minho, mal-sofridos do jugo e capitaneados pelo
conde Nuno Menendes,
rebelaram-se; mas foram desbaratados entre Brachara (Braga) e o
Cávado.
Um
historiador do século XIII, Rodrigo Ximenes, pretende que com a
vitória a tirania do
rei da Galiza se tornara mais dura; que Vérnula, valido daquele
príncipe, fora assassinado
pelos nobres na presença do próprio Garcia, porque os delatava, e
que por esse
acto as vinganças e opressões redobraram; que, irritados os ânimos
dos galegos e portucalenses,
não perdera Sancho a conjuntura favorável para despojar da coroa o irmão
mais moço, o qual, quase sem resistência, ele expulsara do reino,
seguindo o rei fugitivo
apenas trezentos homens de armas; que este buscara abrigo entre os
sarracenos e
favorecido por eles voltara ao distrito de Portugal, onde se
assenhoreara de vários castelos,
mas que num recontro com Sancho fora vencido, cativo e posto em
ferros no castelo
de Luna. A relação, porém, destes sucessos repetida pelo comum dos historiadores
modernos, falta nas memórias mais seguras e envolve algumas dificuldades.
Seja como for, é certo que, se Garcia continuou a governar a Galiza
e Portugal
depois da conquista de Leão por Sancho, foi reconhecendo uma espécie
de supremacia
em seu irmão mais velho; nem é de crer que este se mostrasse
indiferente ao socorro
que parece indubitável ele dera a Afonso na guerra precedente.
Urraca
tinha-se mostrado constantemente parcial do rei de Leão nas
dissensões anteriores,
e fora ela quem favorecera a sua fuga para Toledo. Com este ou outro pretexto,
Sancho pretendeu privá-la do senhorio de Zamora, pondo cerco a esta
cidade. Não
obstante o imenso poder do rei de Castela, os zamorenses ousaram
defender-se, e com
tal perseverança o fizeram que, apesar de repetidos assaltos, Sancho
não pôde submetê-los.
Durava todavia o cerco, e o ambicioso príncipe mostrava estar
resolvido a levar
a todo o custo a cidade quando um caso estranho pôs termo à
contenda. Velito Adaulfiz
ou Belido Arnulfes, cavaleiro esforçado de Zamora, vendo certo dia
que Sancho
passeava só e descuidado em frente dos muros, saindo das barreiras à
rédea solta
foi topar em cheio com o rei castelhano, derrubou-o de uma lançada e
acolheu-se aos
muros com tal rapidez que ninguém o pôde alcançar. Era mortal a
ferida, e no dia seguinte
Sancho expirou. Com a sua morte o exército sitiador, corpo
heterogéneo formado
de companhias de castelhanos, leoneses e, até, de navarros e
galegos, dispersou-se
em completa desordem. Apenas as tropas de Castela conservaram alguma disciplina
e, resistindo aos sitiados que saíram a persegui-las, levaram com
pompa militar
o cadáver de Sancho ao Mosteiro de Onha, onde foi sepultado.
Afonso VI de Leão e Castela
Corria
o ano de 1072 quando sucederam estes acontecimentos. A morte inesperada
de Sancho mudou inteiramente o aspecto dos negócios públicos.
Urraca apressou-se
a avisar Afonso de que viesse ocupar o trono que ninguém lhe
disputava, não
havendo o rei de Castela deixado filhos. Depois de jurar paz e
aliança com o seu hóspede,
o generoso Al-Mamon, Afonso dirigiu-se a Zamora, onde foi logo
reconhecido pelos
barões de Leão e também pelos de Galiza conforme alguns
historiadores, o que parece
confirmar a ideia de que no reinado antecedente os estados de Garcia
tinham ficado
numa espécie de sujeição a Sancho. Os castelhanos, se acreditarmos
Lucas de Tuy
e Rodrigo Ximenes, exigiram previamente dele o juramento de que não
tinha entrado
na trama da morte de seu irmão, mas não ousando ninguém pedir este juramento,
Rui Dias de Bivar, o Cid, apresentou-se a exigi-lo em nome dos nobres
de Castela.
Todas estas particularidades, porém, foram talvez inventadas para
dar fundamento
histórico às novelas e poemas do Cid, que por largo tempo passaram
e passam
ainda para muitos como narrativas verdadeiras.
A
data do segundo reinado de Afonso, VI do nome na série dos reis de
Oviedo e Leão,
é a dos primeiros dias do ano de 1073. Obtendo sem custo, não só a
própria coroa que
perdera, mas também a de Castela, parecia dever contentar-se deste
favor da sorte; mas
não sucedeu assim. Garcia reinava na Galiza, ou porque nunca dali
saísse, ou porque
voltasse de Sevilha, para onde, afirmam alguns, tinha fugido do
castelo de Luna. Apenas
seguro no trono, Afonso VI, dizem que por conselho de sua irmã
Urraca, atraiu-o enganosamente
à corte e meteu-o numa prisão, donde não tornou a sair enquanto viveu,
posto que fosse aí tratado com toda a atenção e brandura. Nenhuma
das duas províncias,
Portugal e Galiza, recusou aceitar o novo senhor, e Afonso achou-se,
enfim, na
posse pacífica de toda a herança de Fernando Magno acrescentando a
ela daí a três anos
a Rioja e a Biscaia, que lhe cedeu Sancho I de Aragão para que ele
lhe consentisse a
posse pacífica de Navarra, de cuja maior parte o mesmo Sancho se
havia apoderado.
Não
tardou muito que ao poderoso rei de Leão, Castela e Galiza se
oferecesse conjuntura de
mostrar, não só a força do seu braço, mas ao mesmo tempo o seu
agradecimento ao
emir muçulmano que tão nobremente o acolhera no tempo da
adversidade. A Espanha
árabe continuava a despedaçar-se nas guerras intestinas que haviam
nascido da queda
do império dos Benu Umeyyas. O emir de Sevilha, que também obtivera
o domínio
da antiga capital dos califas, invadiu os estados de Al-Mamon. Sem
esperar que
este lhe mandasse pedir socorro, o rei cristão marchou em auxílio
de Al-Mamon. Os dois
exércitos, toledano e leonês, entraram então no território do
emir inimigo, assolando
e queimando tudo. Afinal Al-Mamon, que se apossara de Sevilha,
despediu o seu
aliado rico de despojos, e Afonso voltou a Leão. Daí a pouco
faleceu o velho amir, recomendando
seu filho e sucessor (outros dizem seu neto) à protecção de Afonso
VI, que
por esta época (1077) se assenhoreou de Coria, cidade provavelmente
sujeita ao emir
de Badajoz. Das suas outras vitórias e conquistas feitas no período
que decorre desde
a morte de Al-Mamon até a tomada de Toledo e das posteriores a esse
importante sucesso
falam tão confusa e resumidamente os historiadores cristãos, ao
passo que as celebram
com excessivo encarecimento, que pouco se alcança a este respeito, à
vista do que
eles dizem. É confrontando-os com os escritores árabes que se pode
obter mais alguma
luz sobre os primeiros doze ou quinze anos do dilatado governo de
Afonso VI.
Mohammed
Al-Mutamed Ibn Abbad (o Benabeth das crónicas cristãs) era o emir de
Sevilha contra quem o rei de Leão guerreara como aliado de Al-Mamon.
Apenas Afonso
se retirara, Ibn Abbad viera pôr cerco a Sevilha, onde o amir de
Toledo falecera estando
cercado. Com a sua morte os toledanos viram-se obrigados a ceder, e
não só a capital
da Andaluzia mas também Córdova, conquistada igualmente por
Al-Mamon, voltaram
de novo ao domínio do seu antigo senhor. Só do rei leonês se temia
Ibn Abbad;
porque, como um dos tutores do emir toledano, podia marchar contra
ele e atalhar
o curso das suas recentes vitórias. Tinha Ibn Abbad por vizir
(ministro) um dos homens
mais célebres entre os árabes pela sua habilidade em enredos
políticos.
Chamava-se
Ibn Omar. Foi por intervenção dele que o emir de Sevilha tentou
afastar Afonso
VI da aliança do sucessor de Al-Mamon; mas o rei de Leão soube até
certo ponto
corresponder à confiança que nele pusera o emir falecido, senão
defendendo activamente
o pupilo, ao menos não se unindo por então aos seus inimigos.
Toledo
era naquele tempo, depois de Córdova, talvez a mais famosa cidade da Espanha
muçulmana. Além de ter sido a antiga capital do império
visigótico, a sua situação
central, a fortaleza do seu assento e o aumento que tinha tido desde
que nela reinava
independente a família dos Dhin-Nun tornavam-na de tal importância
que Afonso
VI desejava ardentemente possuí-la para fazer dela, como depois se
viu, a capital
do reino de Oviedo, Leão e Castela. Era a ocasião oportuna; mas a
empresa devia
ser levada com tal arte que o resultado fosse bem seguro. E, de
feito, todos os passos
de Afonso VI se encaminharam a alcançar este único fim durante os
cinco anos que
decorreram desde 1080 até à tomada de Toledo em 1085.
A
história dos sucessos daquela época é obscura pelas narrativas
várias e encontradas
dos cronistas cristãos e árabes. De uns parece deduzir-se que um
tio ou irmão
do sucessor de Al-Mamon, chamado Yahya, obtivera o poder no meio das revoltas
que dilaceraram os estados dos Dhin-Nun. Outros parece indicarem que
Yahya fora
o sucessor de Al-Mamon e que Afonso VI esquecera pela ambição os
deveres que o ligavam
àquela família. O que sabemos é que por fim Afonso VI estava
aliado com Ibn Abbad
e que já em 1081 invadia o território de Toledo com um numeroso
exército em que
se achavam, segundo parece, muitos cavaleiros franceses e,
atravessando as serras que
dividem a Castela Velha da Nova, apossava-se de vários lugares
fortes. Nos anos seguintes
renovou a guerra, sempre com tão próspera fortuna que Ibn Abbad,
para mais apertar
os recentes laços que o uniam ao seu antigo adversário, lhe deu por
mulher sua filha
Zaida, cedendo-lhe juntamente o senhorio das terras que pela sua
parte ele conquistara
ao emir de Toledo, como Cuenca, Huete, Ocanha e outras. Aquele casamento,
se tal nome se lhe pode dar, entre um rei cristão e uma princesa
muçulmana, posto
que insólito (tanto mais que Afonso era casado havia já anos com
sua segunda mulher,
Constança de Borgonha, tendo perdido ou repudiado a primeira, Inês),
não parece
ter produzido grande admiração no ânimo dos escritores desses
tempos, um dos quais,
Lucas de Tuy, se contenta de chamar a Zaida «quase mulher» do rei.
As ideias de então
explicam esta singularidade aparente. Pelo que toca a Ibn Abbad, o
dar sua filha a um
homem casado nada tinha de extraordinário, por ser a poligamia
permitida entre os sarracenos.
Quanto a Afonso VI, andavam no seu tempo os costumes tão soltos e
eram tão
frequentes os matrimónios sem intervenção da Igreja que semelhante
sucesso, hoje estranho,
seria apenas digno de reparo naquela época.
Antes
de assentar definitivamente o cerco de Toledo, o rei de Leão seguiu
o sistema
de enfraquecer a capital assolando-lhe duas vezes cada ano, conforme
o testemunho
dos árabes, os campos e povoações das circunvizinhanças e tomando
os castelos
donde os mouros o poderiam saltear durante o sítio. Depois de três
anos de correrias
e estragos, Afonso veio por fim acampar-se em volta dos muros de
Toledo. Yahya
nada tinha feito, segundo parece, para repelir as invasões dos
cristãos. Era o
moço emir mais dado aos passatempos e deleites que aos cuidados do
governo e às fadigas
da guerra. Vendo-se reduzido ao extremo aperto, enviou mensageiros ao
amir de Badajoz,
Ornar Ibn Moharnmed, pedindo-lhe socorro. Mandou este, de feito, seu
filho Al-Fadl,
váli de Mérida, com certo numero de tropas, mas debalde: Afonso não
só o impediu
de entrar na cidade, mas também o desbaratou e constrangeu a fugir.
Encerrava Toledo
nos seus muros um grande número de judeus e de moçárabes ou
moçárabes.
Para
estes o domínio dos leoneses, seus correligionários, se não era de
desejar, pelo menos
não era de temer: para aqueles, indiferentes a estas lutas de duas
raças e de duas crenças
alheias à sua, o único receio grave consistia na possibilidade de
perderem os grossos
cabedais que possuíam, se, tomada de assalto, a cidade fosse posta a
saco. Aproveitando
os incitamentos da fome, que se começava a sentir duramente, falavam
já de
se darem a partido. Alguns muçulmanos, que ainda conservavam as
tradições do esforço
de seus antepassados, pretendiam que se defendesse Toledo até o
último transe; mas
o comum dos habitantes sarracenos quebrados os ânimos pela escasseza
de vitualhas
e pela desesperança de socorro, inclinaram-se à opinião dos judeus
e dos moçárabes.
Constrangido pelos conselhos e clamores gerais, o amir dirigiu a
Afonso VI embaixadores que lhe trouxessem à memória a sua aliança com a família dos
Dhin-Nun e
os benefícios recebidos de Al-Mamon, e que ao mesmo tempo lhe
propusessem o reconhecer
ele, Yahya, a supremacia da coroa leonesa, pagando-lhe tributo anual.
Tudo rejeitou
Afonso: o seu propósito inabalável era apoderar-se da cidade:
tréguas aos mouros,
só assim as daria. Sabida esta resposta, o povo amotinou-se, e não
houve outro remédio
senão ceder. As condições foram vantajosas para os habitantes:
tolerância inteira
para com o culto do Islão; nenhum aumento de tributos; liberdade
plena para todos
que quisessem seguir Yahya e a conservação dos juizes e leis civis
dos muçulmanos,
para por elas se regerem estes. O emir saiu com os principais
sarracenos para
Valência, e Afonso, ordenadas todas as coisas necessárias para
assegurar a sua conquista,
foi habitar o alcaçar dos príncipes muçulmanos, ou antes os paços
transformados dos
reis visigodos, que de Toledo tinham feito a capital do império, e
donde Roderico
saíra perto de quatro séculos antes para a batalha do Chrissus, na
qual se perdeu
a Espanha. Ou fosse por esta circunstância ou pela situação de
Toledo, mais acomodada
que Leão para poder facilmente prosseguir a guerra contra o
islamismo e dilatar
os domínios cristãos, Afonso VI estabeleceu aí a corte, deixando a
de Leão, como
por esta Garcia I abandonara a de Oviedo. Foi na Primavera de 1085
que a antiga capital
da Espanha visigótica se libertou do jugo sarraceno. Aqueles
castelos e povoações
dependentes do emirado de Toledo que ainda não haviam sido tomados
por Afonso
VI seguiram em breve a sorte desta cidade. A balança pendia enfim a
favor da reacção
cristã; porque, com as muitas conquistas deste príncipe, em mais de
metade do território
espanhol a cruz triunfante dominava de novo. As fronteiras ou
estremaduras do
reino leonês-castelhano dilatavam-se agora por uma linha que corria
de poente a nascente
desde a foz do .Mondego, pela Beira Baixa, direita a Corja, Talavera,
Toledo, Huete
e Cuenca, até às serras de Albarracim. Então as povoações ao
norte desta linha, antes
tomadas e perdidas frequentes vezes ou destruídas e abandonadas,
puderam afinal ser
erguidas das suas ruínas e repovoadas, negócio que principalmente
entretinha Afonso
VI nos breves intervalos de trégua que dava aos sarracenos.
O
emir de Sevilha, que tanto trabalhara por obter a aliança do rei de
Leão e induzi-lo
a destruir o poder dos Dhin-Nun, quando viu quão rápidas e
importantes eram as
conquistas de Afonso, começou a ter graves receios das consequências
fatais que a sua
política podia produzir para o islamismo. Enviou-lhe então
mensageiros, dizendo que
se devia contentar com a posse de Toledo e cessar de ulteriores
conquistas, lembrando-lhe
as condições dos tratados que haviam celebrado. O rei de Leão
entendeu ou
fingiu entender que o emir lhe recordava a obrigação de o ajudar
contra os seus inimigos
e, sem descontinuar da guerra, enviou-lhe quinhentos cavaleiros, que, demorando-se
apenas três dias junto de Sevilha, se dirigiram a Medina Sidónia,
onde a esse
tempo se achava Ibn Abbad. Nunca tão longe haviam penetrado soldados
cristãos. A
cólera e o temor aumentaram no coração do emir com este inesperado
e não pedido socorro,
que Afonso ousava enviar até os limites meridionais da Espanha
árabe. Desde esse
momento Ibn Abbad não cogitou senão no modo de pôr termo ao
engrandecimento do
rei leonês. Uma paz geral entre os diversos amires muçulmanos, já
talvez dantes preparada,
se fez então. Numa assembleia celebrada em Sevilha, a que
pessoalmente assistiram
alguns deles ou a que enviaram os seus vizires e cádis, se deliberou
sobre a maneira
que se teria em obstar à ruína iminente do Islão. A resolução
que tomaram, combatida
energicamente pelo váli de Málaga, foi chamar à Espanha os
almorávidas; resolução
fatal para os cristãos, porém ainda muito mais fatal para a
liberdade dos muçulmanos
espanhóis.
Quem
eram os almorávidas e o seu amir Yusuf já noutro lugar o dissemos.
Ibn Abbad
tinha sido aliado de Yusuf quando o rei de Leão favorecia os
Dhin-Nun de Toledo,
e as armadas do emir de Sevilha haviam ajudado por mar o príncipe
africano a subjugar
Tânger. Por mais de uma vez Ibn Abbad o havia excitado a passar o
Estreito, na
persuasão de que, ajudado pelo africano, poderia assenhorear-se de
todos os estados maometanos
da Espanha, embora houvesse de reconhecer uma espécie de sujeição
ao chefe
almorávida. Há quem diga que o próprio Afonso VI aprovava estes
desígnios do emir
sevilhano na época da estreita amizade que por algum tempo os uniu.
Agora, porém,
era contra o leonês que todos os potentados muçulmanos da Península invocavam
o socorro do célebre Yusuf.
Este
achava-se em Fez, que pouco antes conquistara, quando chegaram os mensageiros
do país do Andaluz. Ouvida sua embaixada, respondeu aos emires que
não passaria
à Espanha sem que lhe cedessem o castelo de Algeciras, por onde
pudesse entrar
e sair da Península com a certeza de não lhe ser embargado o passo,
acrescentando que,
no caso de aceitarem a condição, atravessaria imediatamente o
Estreito para
os ajudar contra o rei infiel. Era extremo o trance: Ibn Abbad,
senhor do castelo pedido,
mandou-o entregar a Yusuf, e pouco tardou que um grosso exército
capitaneado pelo
próprio Abu Yacub passasse de África para Espanha e se dirigisse a
Sevilha.
Afonso
VI, depois de haver talado o território do amir de Badajoz, marchara
para o
oriente e pusera sítio a Saragoça. Foi ali que lhe chegou a notícia
da vinda de Yusuf. Imediatamente,
convocando em seu auxílio Sancho, rei de Aragão, fazendo levantar novas
tropas por Galiza, Astúrias, Leão e Castela e chamando muitos
cavaleiros do Sul da
França, como já havia chamado outros antes de conquistar Toledo,
dirigiu-se a esta cidade,
onde todos esses elementos dispersos se deviam ajuntar para
constituir um exército
capaz de se opor à multidão dos sarracenos, que ameaçavam tirar
crua vingança das
afrontas recebidas pelos muçulmanos do Andaluz.
O
desígnio de Yusuf, segundo parece, era marchar contra Leão e
Galiza, levando a
guerra ao centro dos estados cristãos: porque, em vez de se dirigir
contra Toledo, partira
de Sevilha para Badajoz. Foi perto desta cidade que Afonso VI,
marchando da sua
nova capital com todas as forças aí congregadas, veio sair ao
encontro do príncipe almorávida.
Os
dois exércitos avistaram-se sobre o rio de Badajoz (Nahar-Hagir): o
dos muçulmanos
ocupava na margem esquerda os campos e outeiros denominados pelos escritores
árabes de Zalaca e pelos cronistas cristãos de Sagalias ou
Sacralias: o de Afonso
VI acampou na margem direita. A terribilidade da batalha, que era
inevitável, fazia
hesitar tanto uns como outros; porque alguns dias se passaram em
embaixadas e ameaças.
Os dois exércitos que se achavam frente a frente eram, talvez, os
maiores que desde
a entrada dos sarracenos a Espanha tinha visto. Ainda dando algum
desconto à exageração
ordinária dos antigos escritores árabes e cristãos, os quais,
unânimes, afirmam
que só Deus poderia contar o número de muçulmanos e que as tropas
do rei de Leão
e Castela subiam a oitenta mil cavaleiros e duzentos mil peões, é
todavia certo que ali
se encontravam todas as forças das duas raças que disputavam o solo
da Espanha, ajudadas
uma pelos guerreiros franceses e a outra pelos almorávidas,
conquistadores da Mauritânia.
Há, porém, uma circunstância narrada pelos árabes muito crível,
a qual não devemos
omitir; isto é, a existência de vários corpos de cavalaria cristã
ao serviço de Yusuf
e a de trinta mil muçulmanos ao de Afonso VI, o que prova serem,
mais que o sentimento
religioso, ódios ou ambições humanas quem não consentia um
momento de paz
e repouso na devastada Espanha.
Afonso
resolveu-se, enfim, a acometer os sarracenos e passou o rio ao romper
da manhã
de 23 de Outubro de 1086. Os seus corredores toparam com um corpo de almogaures
de África enviados contra eles e obrigaram-nos a recuar. Entretanto,
parece que
no romper das batalhas algumas tropas cristãs tinham fugido,
aterradas provavelmente
pelo grande número dos inimigos. Todavia o rei de Leão, dividindo o exército
em dois troços, deu o sinal de combate. Ele com a vanguarda remeteu
contra os almorávidas,
enviando ao mesmo tempo o outro corpo, capitaneado por Sancho de Aragão
e por um general a que os escritores árabes chamam Albar Hanax
(porventura Álvaro
Eanes), contra os muçulmanos espanhóis, cujo campo estava separado
dos arraiais
africanos por um outeiro. Acaudilhava os sarracenos espanhóis o amir
Ibn Abbad,
homem cujo esforço era provado, mas brevemente se viu só com os
seus guerreiros
sevilhanos, porque todos os outros amires fugiram desordenados pelo impetuoso
embate dos cristãos. Por outro lado, a vanguarda dos africanos
começava a recuar
diante do valoroso rei leonês. Yusuf conheceu então a necessidade
de dar um golpe
decisivo: enviou as tribos berberes e as cabildas almorávidas de
Zeneta, Mossameda
e Ghomera em socorro da sua vanguarda e do emir de Sevilha, que, abandonado
dos outros emires, continuava a sustentar por aquele lado o peso da
batalha.
Depois
o hábil Yusuf, rodeando o campo da peleja, precipitou-se à frente
dos lantunitas, os
mais célebres entre os guerreiros almorávidas. e a cuja raça ele
pertencia, sobre os mal
guardados arraiais dos cristãos. Era impossível a resistência. No
momento em que o desbarato
dos muçulmanos parecia certo, Afonso foi avisado da destruição do
seu acampamento,
não só pelos fugitivos que chegavam, mas também pelo clarão do incêndio.
O desejo da vingança perdeu-o. Abandonando o combate, que tinha
quase vencido,
marchou contra Yusuf, que o recebeu valorosamente. Os sarracenos, que recuavam
diante dele, cobraram ânimo, percebendo que os cristãos voltavam
rosto, e vieram
acometê-los pelas costas quando mais aceso andava o recontro com os lamtunitas.
As tropas muçulmanas que haviam fugido para Badajoz, vendo
melhorar-se a
fortuna dos seus, tornaram à batalha. Revolvendo-se como um leão no
meio dos infiéis,
Afonso não cedeu enquanto lhe restaram alguns soldados em estado de
pelejar, mas
por fim, ferido ele próprio, viu-se constrangido a fugir acompanhado
apenas de quinhentos
homens de armas e perseguido pelos almorávidas que ainda lhe
derrubaram uma
boa parte destes. A noite que descia salvou os restantes e o próprio
rei de Leão, que sem
essa circunstância teria perecido.
Se
acreditássemos os escritores árabes, a perda dos cristãos teria
sido imensa. Segundo
um deles, Yusuf, fazendo decepar as cabeças dos mortos (costume
trivialíssimo entre
os sarracenos), enviou cinquenta mil às diferentes capitais dos
emirados do
Andaluz e quarenta mil para serem distribuídas pelas cidades
marítimas da Berberia como
documento da vitória. De todo o exército dos nazarenos, dizem eles,
apenas escapou
Afonso com cem homens. Semelhantes encarecimentos, juntos à
confissão dos antigos
cronicons sobre o grande estrago dos cristãos, provam que esta foi
uma das mais terríveis
batalhas que se pelejaram em Espanha. Se o hábil e esforçado Yusuf
Abu Yacub
tivesse ficado na Península à frente dos sarracenos vitoriosos, a
monarquia leonesa
não tardaria, talvez, em chegar ao ponto da última ruína.
Felizmente para o cristianismo,
na mesma noite da batalha um mensageiro chegou ao campo dos almorávidas
com a notícia de ser falecido, em Ceuta, Abi Bekr, filho mais velho
de Yusuf,
que ele amava com extraordinário afecto. Esta nova obrigou Yusuf a
partir imediatamente para
Algeciras e a passar à África, deixando por general das tropas almorávidas
o caide Seir Ibn Abi Bekr.
Enquanto
este e o emir de Badajoz corriam as fronteiras da Galiza, talando os lugares
abertos e submetendo vários castelos e povoações fortes que Afonso anteriormente
conquistara, Ibn Abbad entrava pelo território de Toledo e sucessivamente
ia expulsando os cristãos das cidades principais daquela província, como
Cuenca, Huete e Consuegra. Perto de Lorca, porém, alguns alcaides
castelhanos vieram
ao seu encontro e destroçaram-no. Desde este sucesso a fortuna
começou a sorrir de
novo a Afonso VI. A poucas milhas de Lorca, aonde o emir de Sevilha
se fora refugiar
depois do seu desbarato, tinham-se os cristãos apossado, talvez
nessa mesma conjuntura,
de um castelo roqueiro e bem fortificado, a que os historiadores
árabes dão o
nome de Alid. Acredita-se que o caide desse castelo era o famoso Rui
Dias, mais conhecido
pelo nome de Cid, de quem já fizemos menção. Situada num monte
quase inacessível
no meio dos estados de Ibn Abbad, aquela fortaleza era como um ninho
de águias
donde o terrível Rui Dias se arrojava sobre os campos de Múrcia e
de Sevilha, e punha
tudo a ferro e fogo. Sabendo das suas façanhas, o rei de Leão
apressou-se a mandar-lhe
socorros. Não passava dia em que as correrias dos cavaleiros de Alid
não deixassem
tristes vestígios nas terras vizinhas, e às vezes estas correrias
alongavam-se até
o território de Valência. O emir sevilhano, cansado de tantos
estragos e não tendo forças
para os impedir, recorreu a Yusuf, que, havendo ordenado as coisas do
Moghreb, tornou
a passar à Espanha no Verão de 1088. Provavelmente Abu Yacub,
confiado nas tropas
que deixara e nas da Andaluzia, dirigiu-se com poucas forças a
Lorca, onde chamou
para a ghaswat (guerra santa) os emires espanhóis, os quais pela
maior parte não
vieram. Assim, com o seu pequeno exército cercou Alid debalde: os
cristãos resistiram
durante quatro meses. Algumas dissensões graves começaram
entretanto a alevantar-se
no campo dos sitadores, enquanto Afonso VI, sabendo da vinda de Yusuf
e do
cerco de Alid, marchava a encontrá-lo. Yusuf não ousou esperar o
exército leonês e, irritado
contra a maior parte dos amires que o tinham abandonado, embarcou
para a Mauritânia.
O rei de Leão chegava no entanto às imediações de Lorca e,
fazendo sair do castelo
de Alid o resto dos seus defensores, desmantelou-o e regressou a
Toledo.
Os
sarracenos de Espanha começavam já a recear que o seu poderoso
aliado de
África
lhes viesse a ser mais fatal que o próprio Afonso, e que, não
contente com o
vasto
império do Moghreb, quisesse também assenhorear-se dos amirados
aquém do
Estreito.
Mostrou o tempo que estes receios não eram vãos. Pela terceira vez
Abu Yacub
voltou
à Península, mas com um grosso exército de almorávidas (1090).
Dirigiu-se
rapidamente
para Toledo, cujos arredores devastou, sem que Afonso, encerrado
dentro
dos
muros, se atrevesse a opor-se-lhe. Todavia nem um só dos amires de
Espanha veio
ajuntar
as suas tropas às de Abu Yacub, e o próprio Ibn Abbad, que na
antecedente
campanha
não seguira o exemplo comum, desta vez ficou tranquilo em Sevilha,
enquanto
Yusuf guerreava os nazarenos. Folgou com este procedimento o
dissimulado
almorávida,
cujos intentos eram na realidade os que se lhe atribuíam. Saindo
repentinamente
dos territórios cristãos, marchou para Granada, onde não tardou a
depor
o
amir Abdullah Ibn Balldn, que já, segundo parece, tratava
secreta-mente de
confederar-se
com o rei de Leão contra os africanos. Depois Yusuf regressou de
novo a
Marrocos,
deixando para o substituir o caide Seir, como executor dos seus
ambiciosos
desígnios.
Ibn
Abbad entretanto fortificava-se em Sevilha e, solicitando o
esquecimento do passado,
buscava a aliança de Afonso, que, vendo nestas lutas dos muçulmanos
ocasião de
engrandecimento próprio, lha concedeu facilmente. Infatigável
sempre, Abu Yacub chegando
à África enviou imediatamente para a Espanha grande número de
soldados. Seir
pôde em breve assenhorear-se de Jaen e de Córdova, e, passado
apenas um mês, de todas
as cidades dependentes do emirado de Sevilha não restava a Ibn Abbad
senão a sua
capital. Afonso fez então marchar algumas forças contra os
almorávidas, mas depois de
vários recontros elas foram constrangidas a retirar-se, e daí a
pouco Sevilha caiu nas mãos
de Seir. Sem nos fazermos cargo das resistências parciais, e na
maior parte obscuras,
que os árabes espanhóis opuseram ao triunfo completo dos
almorávidas, resistências
que só tiveram alguma importância quando certo número de emires e
vális se
uniram debaixo do mando de um cristão, o célebre Rui Dias, basta
dizer que doze anos
consumidos em contínuas guerras entre o africano Seir e os
muçulmanos do Andaluz
deram a Yusuf o domínio da parte não cristã da Península, à
excepção do território
de Saragoça, cujo amir desde o princípio firmara uma sólida
aliança com os almorávidas.
Quando em 1103 o emir al-mumenin, ou príncipe dos muçulmanos,
título que
Yusuf tomara, voltou pela quarta vez à Espanha, achou-se pacífico
senhor de todos os
países maometanos desde os limites de Saragoça até à margem
esquerda do Tejo, que pelo
lado do Gharb era a barreira que os dividia do império leonês.
Fora,
de feito, até à foz do Tejo que as conquistas de Afonso VI haviam
chegado. Enquanto
os sarracenos combatiam entre si, ele, refazendo-se das passadas
perdas, marchara
para o sul e apossara-se de Santarém, Lisboa e Sintra no Verão de
1093. Satisfeito
com ter dilatado os seus domínios, apesar do terrível revés de
Zalaca, até o extremo
ocidente, o rei de Leão, que em vários documentos atribui já a si
o título de imperador,
tomado constantemente depois por Afonso VII, recolheu-se a Toledo, dedicando-se
ao governo dos seus estados, sem fazer guerra aos sarracenos, salvo
as pequenas escaramuças
e correrias das fronteiras, que eram de costume, ao menos todas as primaveras.
Um
dos golpes mais dolorosos para o coração humano cobriu de tristeza
os últimos
dias de Afonso VI e, porventura, abreviou-lhe a existência. Das
mulheres com que
foi casado e de duas concubinas, apenas Zaida, a filha de Ibn Abbad,
que ele veio, segundo
parece, a desposar legitimamente depois de convertida ao
cristianismo, lhe deu um
filho varão, o infante Sancho. Entrado apenas na juventude, era este
mancebo, por nos
servirmos das expressões atribuídas ao próprio rei de Leão, que
ele considerava como
seu herdeiro e que amava como a luz dos seus olhos, alegria do seu
coração e consolo
da sua velhice. Aquele filho tão querido acabou desafortunadamente
às mãos dos
sarracenos na flor da mocidade esperançosa, no penúltimo ano de
reinado e da vida do
velho Afonso VI, que, morrendo, houve de deixar a gloriosa mas pesada
coroa de Leão
e Castela à única filha legítima que tivera de Constância, sua
segunda esposa. Abu Yacub
Yusuf Ibn Taxfin falecera em Marrocos no Outono de 1106, e seu filho
Ali Ibn Yusuf,
já anteriormente declarado e jurado sucessor, tomara as rédeas do
governo do vasto
império muçulmano da África e da Espanha. O novo amir al-mumenin,
sopitada a revolta
de um seu sobrinho, váli de Fez, resolveu prosseguir na guerra santa
contra os cristãos.
Com este propósito, no Verão de 1108 fez passar o Estreito a novas
tropas almorávidas
da tribo de Lamtuna e deu o mando delas a seu irmão Abu Taher Temin, váli
de Valência e depois de Granada. Romperam as hostilidades pelo cerco
de Uclés, forte
povoação da fronteira cristã. Apesar de bem guarnecida, a cidade
foi entrada à escala
vista e os seus defensores tiveram de acolher-se ao castelo. Afonso
VI enviou imediatamente
um exército em auxílio dos cercados. Capitaneava-o o infante
Sancho, antes
em nome que na realidade, porque apenas saía da infância. O velho
rei de Leão confiava
na vigilância e afecto do conde Gomes de Cabra, aio do infante,
sendo por isso o
conde o verdadeiro cabeça da expedição. Quando Temin soube das
forças que vinham contra
ele quis retirar-se, mas os caides de Lamtuna insistiram em esperar
os cristãos.
Chegados
estes, travou-se a batalha. Foi terrível o recontro, e o campo
disputado com igual
esforço; mas por fim a vitória declarou-se a favor dos muçulmanos.
Sancho, provavelmente
já quando os seus começavam a retroceder, sentiu fraquear o ginete
em que
montava. Assustado, bradou ao conde Gomes: «Oh pai!, oh pai!, o meu
cavalo está ferido!»
Correu o aio e chegou no momento em que Sancho caía. Estavam
cercados de sarracenos.
O conde apeou-se e, metendo o infante entre si e o escudo,
defendia-se e defendia-o
como um leão dos golpes que choviam por todos os lados, até que uma cutilada
lhe decepou um pé. Não podendo mais suster-se, deitou-se em cima de
Sancho, para
morrer antes dele, e assim acabaram ambos. Os cristãos fugiam
entretanto perseguidos
pelos africanos: alcançados a breve distância, sete condes aí
foram mortos, e
apenas as relíquias do exército voltaram a Toledo. Temin redobrou
então os assaltos contra
o castelo de Uclés, que, apesar de brava resistência, houve por fim
de render-se. Foram,
todavia, segundo é de crer, grandes as perdas dos almorávidas,
tanto na batalha como
no sítio, porque não prosseguiram na conquista, tirando assim quase
nenhum fruto da
vitória.
Enfraquecido
por dilatada enfermidade, o rei de Leão, sabida a morte do filho, caiu
em profunda tristeza, a qual lhe agravou o mal. Em Junho de 1109,
Afonso expirou em
Toledo, tendo governado depois da morte de seu irmão Sancho trinta e
seis anos como
rei de Leão e Castela. A falta deste célebre príncipe trouxe à
Espanha graves perturbações,
das quais só faremos menção no que importar à história de
Portugal, nascido,
por assim dizer, desse acontecimento e favorecido na sua débil
infância pelos calamitosos
sucessos ocorridos na Espanha cristã em consequência da morte de
Afonso VI.
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