segunda-feira, 17 de junho de 2013

História - Reconquista: De Afonso V de Leão a Afonso VI de Leão e Castela, por Alexandre Herculano

História - Reconquista: De Afonso V de Leão a Afonso VI de Leão e Castela, por Alexandre Herculano

O astro brilhante que alumiara os passos de Pelágio, dos três primeiros Afonsos e de Ramiro II quase que se imergira nas mais espessas trevas durante esse longo reinado. Apenas nos desvios selváticos das Astúrias evitaram os cristãos a última ruína. O século XI começava com uma triste perspectiva; porque à pobreza, despovoação e desalento geral se ajuntava o ir caindo em desuso o direito electivo dos godos, sucedendo na coroa um rei menino, qual era Afonso, filho de Bermudo, então de cinco anos de idade, quando para salvar a monarquia leonesa era necessário um príncipe ao mesmo tempo político e guerreiro, que pudesse conter as discórdias civis, primeira fonte do mal, e pôr de algum modo termo à invariável fortuna do terrível hájibe de Córdova.


Com péssimos auspícios foi, pois, aclamado o moço Afonso V em Leão, que os cristãos tinham começado a reedificar. Tomaram felizmente o leme dos negócios públicos Menendo Gonçalves, conde da Galiza, e Sancho Garcez, conde de Castela e tio do rei, ambos cavaleiros ilustres. A viúva de Bermudo, Geloira ou Elvira, mulher de altos espíritos, obteve também grande influência na administração do país, à qual presidia juntamente com os dois condes. Guerras em Africa tinham entretido por algum tempo o implacável Almançor, e os cristãos puderam por breve intervalo despir as armas. Mas ainda no ano 1000 ele fizera uma correria em Castela, na qual desbaratara Sancho Garcez, e depois, passando àquela parte da antiga Lusitânia que já se achava unida à Galiza, tomara os castelos de Aguiar e Montemor. Foi todavia só em 1002 que o hájibe se empenhou em reduzir definitivamente Castela ao domínio muçulmano, consumindo o ano anterior nas disposições necessárias para essa conquista. A nova dos imensos aprestos dos sarracenos derramou o susto entre os cristãos.

Os tutores e conselheiros de Afonso V preparavam-se activamente para a luta. Sancho, rei de Navarra, que por seu muito esforço e energia adquirira o apelido de Quadrimano, veio com as forças de Navarra, com algumas do Meio-Dia da França e, até, com os bascos independentes ajuntar-se às tropas de Leão, Galiza e Castela. Nos campos de Lorca viram-se pela primeira vez sinceramente unidos esses homens irmãos em crença, que, havia tantos anos, as paixões políticas tinham feito adversários ou pelo menos estranhos. Entretanto os sarracenos avançavam seguindo a corrente do Douro para o nascente e assolando tudo na sua passagem. Junto a um lugar que os historiadores árabes indicam pelo nome de Kalat Al-Nosor (píncaro dos abutres) deram de rosto com o campo dos cristãos, cujo número encheu de espanto os corredores muçulmanos. Entre estes e os inimigos travou-se logo uma pequena escaramuça, que a noite veio interromper, começando a batalha ao alvorecer do dia seguinte. 

Foi terrível o recontro, pelejando uns e outros como quem não ignorava a importância daquela jornada. Durou o combate enquanto durou a luz do Sol, e ao anoitecer nem cristãos nem sarracenos haviam recuado um só passo. As trevas vieram pôr termo à carnificina, sem que a vitória se inclinasse claramente para nenhuma parte. Quando, porém, durante a noite, Almançor soube que a maior e melhor porção dos seus cabos de guerra e cavaleiros perecera, fraquejando-lhe o ânimo feroz, ordenou passar o Douro com o que restava do exército. Os cristãos, não menos destroçados que os inimigos, nem sequer ousaram segui-lo. O hájibe não pôde sobreviver à desonra. A mágoa, a idade e algumas feridas que recebera o fizeram expirar apenas transpostas as fronteiras de Casteia. 

Abd al-Malik al-Muzaffar, filho de Almançorr, foi nomeado hájibe em lugar de seu pai, como já vimos. Em 1003 o novo hájibe abriu a campanha acometendo na Primavera a Catalunha e no Outono a monarquia leonesa, onde tomou a cidade de Leão, que principiava a erguer-se das suas ruínas e que foi de novo destruída. Durante o ano de 1005 as mútuas correrias cessaram com uma trégua que durou até 1007, época em que Abd al-Malikpenetrando na Castela e dali passando à Galiza, pôs tudo a ferro e fogo. A terra ficou destruída, e foram arrasados os castelos de Osma e Gormaz. Seguindo as margens do Douro, o hájibe voltou a Córdova, senão coberto de glória por batalhas vencidas, ao menos rico de despojos.

Mas estas vantagens dos sarracenos breve deviam ter desconto. No ano seguinte Abd al-Malik avançou pela Galiza com poderoso exército, cujo principal nervo era um corpo numeroso de cavalaria escolhida. Saíram-lhe os cristãos ao encontro; onde e quando, coisa é que se ignora. Foi brava e disputada a peleja e, se acreditarmos os historiadores árabes, os soldados do rei de Leão recuaram a princípio; porém melhorando-se logo, posto que o hájibe sustivesse até à noite o peso da batalha, foi por fim vencido, não sem grande perda dos seus adversários. Voltou então a Córdova, onde faleceu nesse mesmo ano.

A morte de Abd al-Malik produziu as graves perturbações. As guerras civis de cada uma das duas raças inimigas que disputavam o domínio da Península eram naturalmente ocasião de engrandecimento ou, pelo menos, de repouso para a outra. Foi o que desta vez sucedeu. Nos combates que então alagaram de sangue as praças da orgulhosa Córdova, as tropas africanas que formavam a guarda do califa Hisham, adversa a Mohammed Ibn Hisham, o qual soubera apossar-se do califado, foram obrigadas, conforme dissemos, a sair da cidade perseguidas pelos muçulmanos espanhóis e a retirar-se para as fronteiras de Castela. Suleiman Ibn Al-Hakem capitaneava-as então por morte do seu antigo general Hisham Al-Rashid. Propôs ele ao conde castelhano ceder-lhe certos castelos que tinha de sua mão nas fronteiras, se o quisesse ajudar contra Mohammed. Aceitou o conde.

Não só as revoltas entre os sarracenos deixavam repousar das passadas angústias a monarquia leonesa, mas também as diversas parcialidades que mutuamente se dilaceravam restituíam aos cristãos as povoações e castelos conquistados pelo célebre Almançor para obterem deles auxílio. Assim o conde Sancho Garcez, que houvera de Suleiman alguns lugares como retribuição de serviços prestados, alcançou daí a pouco recuperar Santo Estêvão, Osma e Clunia, servindo os adversários do africano.

Aproveitando habilmente as circunstâncias, o incansável conde de Castela chegou por este modo a ver ainda durante á sua vida restaurada a integridade do território castelhano. O apreço que os sarracenos faziam da aliança de Sancho, a influência que tinha em toda a monarquia como tio do moço Afonso V e a quase independência de que já os seus antecessores tinham gozado incitavam o conde a converter a Castela num estado de todo independente. Favoreciam a tentativa assim os poucos anos do rei de Leão, como a supremacia que Sancho Garcez tinha na realidade sobre os outros condes daquela província, posto que só o distrito de Burgos, a principal cidade de Castela, constituísse em rigor o condado de Sancho, em cuja família se tornara hereditário um cargo que, pelas antigas instituições visigóticas era, quando muito, vitalício.

Foi no período decorrido de 1012 a 1016 que rebentaram as discórdias entre Afonso V, que ainda não contava vinte anos, e seu tio Sancho Garcez. Estas discórdias parece haverem-se prolongado até 1021, época da morte do conde de Castela. Se acreditarmos vários documentos desse tempo (de cuja autenticidade alguns duvidam), o próprio Afonso V taxava então o tio de infidelíssimo e de seu adversário. O que é certo é que o moço rei de Leão acolheu com honras e mercês a poderosa família dos Velas ou Vigilas, que haviam abandonado a Castela por inimizades com Sancho Garcez, e não menos o é que este fazia ligas com os muçulmanos ou os guerreava, sem curar dos interesses ou da vontade do governo leonês, o que prova proceder ele como se fosse um soberano independente.

Todavia, se este acontecimento gerou uma guerra civil, ela não foi nem violenta nem duradoura. O conde de Castela faleceu em 1021 deixando por sucessor seu filho Garcia Sanches ainda na infância, e não consta que Afonso V tentasse aproveitar este ensejo para anular a importância dos condes castelhanos, antes, segundo alguns historiadores, foi ainda em vida deste rei que Bermudo, seu único filho, se desposou com Urraca, irmã mais moça do novo conde, e se contratou o casamento deste com Sancha, irmã de Bermudo. Pretendem outros, talvez com melhor fundamento, que os esponsais do conde de Castela só se contraíssem no reinado de Bermudo, no qual sucedeu indubitavelmente o assassínio de Garcia Sanches, assassínio que, como logo veremos, deu azo a grandes alterações políticas na Espanha cristã.

Os antigos monumentos falam vagamente das guerras de Afonso V com os sarracenos e das grandes vitórias deste príncipe: o que sabemos, porém, com certeza é que em 1027 ele passara o Douro e, discorrendo pelo Norte do Gharb, viera pôr cerco a Viseu, que provavelmente ficara em poder dos muçulmanos desde o tempo de Almançor.

Foi durante o assédio que a morte o salteou no vigor da idade. Era no estio; intensa a calma. Despidas as armas e trajando apenas uma túnica de linho, o rei discorria em volta dos muros inimigos: um virote partiu das ameias e, ferindo-o mortalmente, derrubou-o do cavalo. Levado à sua tenda, Afonso V expirou brevemente, contando pouco mais de trinta anos e quase outros tantos de reinado.

Bermudo III de Leão


Subindo ao trono Bermudo III, filho do rei defunto, os nobres de Castela, provavelmente os tutores de Garcia, enviaram-lhe mensageiros propondo o casamento do moço conde com a infanta Sancha, e pedindo para ele a concessão do título de rei. Não recusou Bermudo, segundo parece, a pretensão, porque dentro em pouco os nobres de Burgos se dirigiram a Leão levando consigo o seu pupilo, a fim de concluírem aquele casamento que devia pôr termo às discórdias entre o rei e o seu já em demasia poderoso súbdito. Tinha entretanto Bermudo partido para Oviedo. 

Chegados os castelhanos a Leão, resolveram prosseguir até aquela cidade para se verem com o rei: mas atalhou-lhes os passos inopinado sucesso. Os irmãos Vigilas ou Velas, que guardavam profundo rancor contra a família do conde Sancho Garcez, ajuntando um grosso corpo de soldadesca nas Astúrias e caminhando uma noite inteira, entraram em Leão ao alvorecer e, encontrando o jovem Garcia, assassinaram-no juntamente com muitos castelhanos e leoneses que haviam tentado ampará-lo. Saindo depois a seu salvo da cidade, dirigiram-se para a fronteira de Castela e acolheram-se a Monzón, lugar forte situado num monte sobranceiro ao rio Carrión.

O idoso Sancho, rei de Navarra, era casado com a irmã mais velha de Garcia. Por este motivo julgou que devia suceder ao conde e vingá-lo. Entrou com um exercito por Castela, veio sitiar Monzón, tomou-a, meteu a cutelo os seus defensores e mandou queimar vivos os Velas, que aí cativara. Depois, dirigindo-se a Burgos, fez-se aclamar sucessor de Garcia Sanches, unindo a Castela à Navarra, e fazendo-se assim o mais poderoso potentado da Espanha cristã.

Nem a ambição de Sancho, excitada pelo aumento de domínios, nem o ressentimento de Bermudo ou dos seus tutores pela diminuição deles consentiram durasse muito a paz entre Leão e Navarra. A reedificação de Palência fez rebentar o incêndio. Intentara o navarro alevantá-la das ruínas como situada nos limites do con-dado de Castela. Bermudo opôs-se pretendendo que estava incluída dentro do distrito leonês. Daqui as hostilidades. Sancho, velho enérgico e guerreiro, penetrou logo nos domínios do seu adversário e apossou-se de todo o território que se dilata entre os rios Cea e Pisuerga. Andava então na Galiza Bermudo, empenhado em atalhar tumultos naquela sempre inquieta província, e o inimigo pôde atravessar o Cea e correr os campos de Leão. Mas os leoneses começaram a tomar as armas, e Bermudo, ajuntando um exército de galegos, veio em seu auxílio. 

Esta guerra iminente evitou-se, todavia, conforme alguns, por intervenção dos bispos de um e de outro país. Os dois reis firmaram a paz com a condição de que Fernando, filho segundo do de Navarra, casaria com Sancha, a prometida esposa do assassinado Garcia, cedendo-lhe Bermudo o território conquistado pelo navarro entre o Cea e o Pisuerga. Estes sucessos, que tornavam Sancho o mais poderoso entre os príncipes cristãos da Espanha, passavam pelos anos de 1032: a ambição, porém, não o deixava repousar. Ignora-se com que pretexto, mas é certo que em 1034 entrou por Leão em som de guerra e subjugou todo aquele país até às fronteiras da Galiza e, porventura, ainda numa parte desta, conquistas que conservou até à época do seu falecimento nos princípios do ano seguinte, em que contava setenta de idade e de reinado sessenta e cinco.

A morte de Sancho gerou a guerra civil. Dividira ele entre os filhos os seus vastos estados, que abrangiam as modernas Navarras, francesa e espanhola, o condado de Aragão, muito mais limitado que a actual província deste nome, a Castela e Leão propriamente dito; isto é, abrangiam mais de dois terços do território da Espanha libertada do jugo dos sarracenos. A Navarra ficou ao mais velho, Garcia, que então se achava em Itália, Aragão a Ramiro e a Fernando o novo reino de Castela com a parte de Leão entre Cea e Pisuerga, tendo Bermudo ocupado imediatamente a outra parte.

Ramiro, porém, cujo quinhão fora o mais diminuto, talvez porque, como se crê, era bastardo, aproveitando a ausência de Garcia e aliando-se com os vális de Saragoça, Huesca e Tudela, entrou pelos estados do irmão com intento de os conquistar. Entretanto, Garcia, que, recebida a nova da morte de seu pai, voltara a Espanha, sabendo da tentativa do irmão, saiu-lhe ao encontro com as forças que à pressa pôde ajuntar. A sorte das armas foi inteiramente adversa a Ramiro, que escapou a custo perseguido por Garcia, ficando no campo muitos aragoneses e ainda mais sarracenos. Vencido, Ramiro pediu e obteve a paz, contentando-se de salvar a pequena porção que lhe coubera na rica herança paterna.

Bermudo, como dissemos, logo que Sancho de Navarra morrera, havia dentro em poucos dias recuperado a província de Leão, segundo parece, por acto espontâneo dos condes e governadores de castelos, sem que lhe fosse necessário reconquistá-la. Tinha Bermudo chegado então à idade viril. Pintam-no como mancebo de altos espíritos, esforçado e amigo da justiça. O largo período da sua menoridade devia ter gerado muitos abusos. O primeiro ano de governo gastou-o em remediar os males passados; mas no imediato (1037) resolveu restabelecer os anteriores limites do território leonês, invadindo o distrito entre Cea e Pisuerga, que fora constrangido a ceder. Com um exército de galegos e leoneses, entrou por aquela parte: Fernando, rei de Castela e seu cunhado, achando-se inferior em forças, invocou o socorro de Garcia, que desceu imediatamente de Navarra a ajudá-lo. Saíram os dois irmãos a receber o invasor e, encontrando-o junto do rio Carrión, travou-se a batalha. 

Foi esta a das mais bem feridas que se viram em Espanha; fizeram-se muitas gentilezas de armas, e Bermudo distinguiu-se entre todos pelo seu valor. A Providência tinha, porém, marcado o termo à dinastia leonesa. Rompendo por entre as alas castelhanas e navarras, o audaz filho de Afonso V foi topar em cheio com o rei de Castela, a cujas mãos acabou, se acreditarmos o letreiro que ainda se lê sobre o túmulo de Bermudo na catedral de Leão, ou antes às de Garcia de Navarra, como parece indicarem-no os antigos cronistas. Fernando, vitorioso, marchou imediatamente contra a capital, cujos moradores tentaram resistir-lhe. Mas por uma espécie de direito consuetudinário de sucessão, que na prática ia substituindo pouco a pouco o direito electivo dos visigodos, morto Bermudo sem filhos a coroa pertencia a Fernando de Castela por sua mulher Sancha, irmã e herdeira de Bermudo.

Assim os habitantes de Leão, conhecendo talvez que o último resultado da luta seria reconhecerem como rei o príncipe castelhano, cederam à fortuna do vencedor, e Fernando I foi aclamado rei de Leão e Castela.

Fernando I de Leão, o Magno

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O novo monarca era, de feito, digno das duas coroas: o seu génio e vasta capacidade, tanto na paz como na guerra, granjearam-lhe na sucessão dos tempos o título de Magno ou Grande. Nos primeiros anos de reinado aplicou-se a reprimir as rebeliões que para os fidalgos de Espanha eram hábito inveterado, a estabelecer o sossego e a dar vigor às leis do país, confirmando as antigas e promulgando outras novas. Até 1050 a monarquia de Leão e Castela desfrutou debaixo do seu governo a paz externa, não só com os príncipes. cristãos da Espanha oriental, mas também com os sarracenos, cujo império, devorado pelas discórdias, caíra em completa anarquia.

A ambição de Garcia veio então interromper este estado próspero e tranquilo. Garcia, que estabelecera a corte em Naxera, achava-se aí enfermo: obrigado do afecto fraterno, Fernando I correu a vê-lo. Apenas chegou, o irmão tramou prendê-lo, mas, avisado da traição, o rei castelhano pôde ainda salvar-se. Daí a pouco Fernando adoeceu igualmente, e Garcia, talvez para arredar as suspeitas que, segundo se persuadia, apenas seu irmão concebera, veio visitá-lo. Não perdeu Fernando o ensejo para a vingança. O rei de Navarra foi preso e metido no castelo de Cea. Pouco lhe durou, porém, o cativeiro; porque, peitando os que o guardavam, alcançou escapar e recolher-se aos seus estados.

Depois disto a guerra era inevitável: Garcia começou-a fazendo correrias furiosas por Castela e pondo tudo a ferro e fogo. Seu irmão ajuntou logo numeroso exército; mas antes de marchar contra ele enviou-lhe mensageiros propondo-lhe a paz e o esquecimento do passado. Cerrou os ouvidos o rei de Navarra a todas as proposições e, depois de maltratar os enviados, despediu-os com terríveis ameaças e encaminhou-se imediatamente para Burgos.

A poucas léguas desta cidade saiu-lhe ao encontro o rei de Leão e Castela, que ainda tentou evitar o combate. Todavia o navarro, fiado na bondade dos seus homens de armas, no grande número de sarracenos que tomara a soldo e no próprio esforço e destreza militar, pela qual era na verdade afamado, recusou toda a conciliação. Ao romper do dia os dois exércitos acometeram-se com igual furor; mas um troço de cavaleiros escolhidos, que o rei leonês pusera em cilada num bosque vizinho, arrojaram-se, lança em riste, quando mais revolto andava o combate, contra a ala onde pelejava Garcia e, rompendo por entre os que o rodeavam, feriram a um tempo no rei de Navarra e deram com ele em terra, quase ou inteiramente morto. Sabida esta nova, os navarros desampararam o campo perseguidos pelos seus contrários, a quem Fernando ordenou respeitassem a vida e a liberdade dos cristãos e aprisionassem ou matassem sem piedade os sarracenos aliados de Garcia. Depois, buscando o cadáver do irmão, levou-o consigo para Naxera, onde entrou vitorioso, e deu-lhe honrada sepultura na catedral desta cidade.

A moderação de Fernando I após a vitória, moderação que ainda hoje fora admirável, é muito mais digna de louvor atendendo à rudeza e ambições desregradas daqueles tempos. Estava a seus pés a coroa de Navarra: não a pôs sobre a cabeça; porque vemos Sancho, filho mais velho de Garcia, suceder a seu pai no trono, que ocupou por muitos anos.

Estes acontecimentos sucediam por fins de 1054. No ano seguinte Fernando I, senhor da maior e melhor porção da Espanha cristã, ao passo que o império de Córdova, dilacerado, como vimos, por atrozes e longas guerras civis, se desmembrara em quase tantos estados quantas eram as suas províncias ou distritos, resolveu aproveitar a conjuntura para dilatar os próprios domínios à custa dos sectários do Corão. Assim, atravessando o Douro pelo lado de Zamora e encaminhando-se para o ocidente, entrou pela nossa moderna província da Beira, cujos castelos tantas vezes tinham sido já tomados e perdidos por cristãos e sarracenos. O de Seia (Sena) foi o primeiro que ele tomou, talando os seus arredores e reduzindo outros castelos menos importantes. Desde então a guerra continuou por todas as primaveras seguintes, sendo conquistados sucessivamente (1057) Viseu, Lamego, Tarouca e outros lugares fortes. Transportando depois o teatro da guerra para as fronteiras de Castela, prosseguiu durante anos a série de suas conquistas e triunfos até vir pôr cerco a Alcalá de Henares, situada no interior da Espanha árabe, não longe de Toledo. Requerido pelos habitantes de Alcalá para que os salvasse, o emir toledano Al-Mamon preferiu sair com esse intento à custa de súplicas e avultadíssimas dádivas a comprá-lo por preço de sangue. Satisfeito com os presentes e humilhação de Al-Mamon, Fernando I deixou respirar os sarracenos por algum tempo e voltou a Zamora, entretendo-se no ano imediato em restaurá-la completamente das antigas ruínas.

Mas o seu génio inquieto e guerreiro não lhe consentia despir por muito tempo as armas. Fazendo nova entrada para o ocidente, veio pôr cerco à cidade de Coimbra, a mais importante povoação deste lado das fronteiras muçulmanas. Era o lugar forte e bem defendido, e o sítio durou seis meses. Por fim os sarracenos renderam-se ou por fome ou porque o estado dos muros, de contínuo combatidos, não consentia mais dilatada defensa. Assim, finalmente, Coimbra caiu em poder dos cristãos, para nunca mais sair dele.

Passava este sucesso em 1064/65 . No ano seguinte Fernando I levou as suas armas até a extremidade meridional da Espanha muçulmana, onde nunca havia penetrado nenhum dos seus predecessores, isto é, até Valência. Esta remota correria, de que falam os cronistas cristãos e que seria árdua de crer pelo extraordinário da empresa, explica-se pelo que referem as histórias árabes. Al-Mamon, amir de Toledo, desde que obtivera a paz com o rei de Leão e Castela no cerco de Alcalá, soubera conservar sempre a sua poderosa aliança. Levado, no meio das lutas civis em que ardia a Espanha maometana, a declarar guerra a seu genro o emir de Valência, pediu socorros a Fernando, o Magno. A invasão do território de Valência por Al-Mamon cai, segundo o testemunho dos escritores árabes, neste ano. São eles que nos certificam de que o socorro pedido se verificara, e as conquistas de Al-Mamon, que chegou a expulsar o genro dos seus domínios, vem a ser a mesma coisa que as vitórias do rei leonês narradas pelos cronistas cristãos.

Antes de acabarem as guerras do emir de Toledo, Fernando I, achando-se bastante enfermo, voltou a Leão, onde, agravando-se a doença, faleceu nos fins de Dezembro do ano 1065. 

Já anteriormente, seguindo as pisadas de Sancho, o Maior, o rei leonês tinha determinado num concílio ou cortes a forma por que todos os seus filhos deviam herdar cada qual uma porção dos vastos estados que lhes legava. Estas divisões, contrárias ao disposto no Código Visigótico, o qual, no mais, se conservava geralmente em vigor, tinham origem, quanto a nós, não tanto no amor excessivo dos príncipes para com seus filhos, como nas circunstâncias que haviam acompanhado o crescimento da monarquia fundada por Pelágio. A rápida narração que temos feito basta para se conhecer que essa monarquia, depois de se dilatar por certa extensão de território, tendia constantemente a desmembrar-se em pequenos principados. Cada conde ou governador de distrito, tendo necessariamente, em virtude do estado de guerra contínua, juntos em suas mãos todos os poderes militares, judiciais, administrativos, era quase um verdadeiro rei, e nada mais fácil do que esquecer-se de que lá ao longe, para o lado das montanhas das Astúrias, havia um homem superior a ele. Sem existir o feudalismo, causas análogas às que o tinham gerado no Norte da Europa actuavam na Espanha, e a estas causas, mais fortes nos distritos da fronteira árabe, onde a energia dos respectivos condes devia ser maior e o seu poder mais ilimitado, faziam com que aí as rebeliões fossem mais frequentes e algumas coroadas de bom sucesso, como sucedeu, primeiro com a Navarra ao oriente, depois com Castela no centro e, por último, com Portugal ao ocidente. Palpando, por assim dizer, este espírito de desmembração, que nascia da força das coisas depois que os estados cristãos adquiriram pela conquista mais remotos limites, Fernando Magno procurou que as tendências de separação, em vez de aproveitarem a estranhos, revertessem em proveito dos membros da sua família, e que assim se evitassem as lutas civis, cedendo a essas tendências em vez de tentar inutilmente, reprimi-las.

Os Herdeiros de Fernando Magno

Fossem estes motivos racionais ou outros quaisquer os do procedimento de Fernando I, é certo que não deixou sem quinhão nenhum dos três filhos e duas filhas que tinha quando faleceu. Sancho, o primogénito, herdou a Castela com o título de rei; Afonso, o reino de Leão e Astúrias; Garcia, a Galiza, também constituída então em reino independente. Urraca ficou soberana em Zamora, e Geloira ou Elvira em Touro, com muitos outros bens nos domínios dos irmãos e, o que era mais importante, com o senhorio de todos aqueles mosteiros cujo padroado pertencia à coroa. O título de rainhas, com que parece ficarem também, deu provavelmente origem ao costume de atribuir essa denominação a todas as infantas ou filhas de reis, costume que veremos seguido ainda entre nós nos princípios da monarquia.

Durante algum tempo os três filhos de Fernando, posto que descontentes todos mais ou menos da partilha, viveram em paz, provavelmente porque o respeito a sua mãe D. Sancha, que os historiadores pintam como um modelo de virtude, de lhaneza e de bom juízo, os refreava. Falecendo, porém, D. Sancha nos fins de 1067, logo no ano seguinte o fogo que ardia debaixo das cinzas se ateou em chama violenta. Ignora-se o pretexto que para isso houve; mas é certo que a luta começou entre Afonso de Leão e Sancho de Castela. Os dois irmãos marcharam um contra o outro e vieram encontrar-se junto do rio Pisuerga. Foi brava a batalha com grande e mútuo estrago; mas por fim Afonso foi desbaratado. Como os fundamentos da guerra, ignoram-se igualmente as circunstâncias que embargaram os passos do vencedor; vê-se, todavia, que o rei de Leão voltou à sua capital sem ser perseguido e que as hostilidades se não renovaram durante os três anos seguintes.

No Verão, porém, de 1071 a paz quebrou-se de novo, e os dois irmãos tornaram a acometer-se. Tratando desta batalha, os antigos cronistas falam do exército de Afonso como composto não só de leoneses, mas também de galegos, o que, juntamente com os sucessos posteriores, nos persuade de que o rei da Galiza, Garcia, se inclinou à parcialidade do de Leão enviando-lhe socorros. Encontraram-se os dois exércitos nas fronteiras de Leão e Castela, nas margens do Carrión. Mais ferida e tenaz foi esta batalha que a primeira. No fim do dia os castelhanos desordenaram-se e fugiram. Sancho, mau grado seu, seguiu-os arrastado por eles. Afonso ficou senhor dos arraiais do rei de Castela e, contente com a vitória, proibiu aos seus que perseguissem os fugitivos.

Um guerreiro, porém, havia entre os soldados de Sancho, que, célebre já por extraordinário esforço, conservara desafogado ânimo no meio daquela triste rota. Chamava-se Roderico Didacide ou Rui Dias, mais conhecido depois pelo nome de Cid, de quem tantas patranhas se contam. Persuadido de que um cometimento repentino contra os descuidados vencedores poderia mudar a fortuna daquela fatal jornada, convenceu o rei de Castela de que, voltando de noite e dando inesperadamente nos inimigos ao romper da alva, fácil seria desbaratá-los. Assim se fez, e o resultado provou a bondade do estratagema. Colhidos de improviso e meio desarmados, os leoneses e galegos cederam facilmente, e tão completo foi o destroço que o próprio Afonso caiu em poder de seu irmão, o qual o mandou conduzir cativo para Burgos e, avançando com o exército vitorioso, se apossou de Leão sem encontrar resistência. O rei prisioneiro foi obrigado, para evitar pior sorte, a vestir a cógula monástica no célebre Mosteiro de São Facundo ou Sahagún, donde passados tempos pôde evadir-se para Toledo, pondo-se debaixo da protecção do antigo aliado de seu pai, o amir Al-Mamon.

Enquanto estas coisas se passavam entre castelhanos e leoneses, os estados que Fernando Magno herdara a seu terceiro filho não gozavam de mais tranquilidade. Garcia reinava na Galiza e no território já denominado Portugal, que abrangia não só toda a porção daquela província ao sul do Minho e ao norte do Douro, mas também o distrito que, ao sul deste último rio até o Mondego, tinha sido conquistado aos sarracenos. Era Garcia de ânimo feroz, querendo mais governar pelo terror que pelo afecto. Alguns barões de Entre Douro e Minho, mal-sofridos do jugo e capitaneados pelo conde Nuno Menendes, rebelaram-se; mas foram desbaratados entre Brachara (Braga) e o Cávado.

Um historiador do século XIII, Rodrigo Ximenes, pretende que com a vitória a tirania do rei da Galiza se tornara mais dura; que Vérnula, valido daquele príncipe, fora assassinado pelos nobres na presença do próprio Garcia, porque os delatava, e que por esse acto as vinganças e opressões redobraram; que, irritados os ânimos dos galegos e portucalenses, não perdera Sancho a conjuntura favorável para despojar da coroa o irmão mais moço, o qual, quase sem resistência, ele expulsara do reino, seguindo o rei fugitivo apenas trezentos homens de armas; que este buscara abrigo entre os sarracenos e favorecido por eles voltara ao distrito de Portugal, onde se assenhoreara de vários castelos, mas que num recontro com Sancho fora vencido, cativo e posto em ferros no castelo de Luna. A relação, porém, destes sucessos repetida pelo comum dos historiadores modernos, falta nas memórias mais seguras e envolve algumas dificuldades. Seja como for, é certo que, se Garcia continuou a governar a Galiza e Portugal depois da conquista de Leão por Sancho, foi reconhecendo uma espécie de supremacia em seu irmão mais velho; nem é de crer que este se mostrasse indiferente ao socorro que parece indubitável ele dera a Afonso na guerra precedente.

Urraca tinha-se mostrado constantemente parcial do rei de Leão nas dissensões anteriores, e fora ela quem favorecera a sua fuga para Toledo. Com este ou outro pretexto, Sancho pretendeu privá-la do senhorio de Zamora, pondo cerco a esta cidade. Não obstante o imenso poder do rei de Castela, os zamorenses ousaram defender-se, e com tal perseverança o fizeram que, apesar de repetidos assaltos, Sancho não pôde submetê-los. Durava todavia o cerco, e o ambicioso príncipe mostrava estar resolvido a levar a todo o custo a cidade quando um caso estranho pôs termo à contenda. Velito Adaulfiz ou Belido Arnulfes, cavaleiro esforçado de Zamora, vendo certo dia que Sancho passeava só e descuidado em frente dos muros, saindo das barreiras à rédea solta foi topar em cheio com o rei castelhano, derrubou-o de uma lançada e acolheu-se aos muros com tal rapidez que ninguém o pôde alcançar. Era mortal a ferida, e no dia seguinte Sancho expirou. Com a sua morte o exército sitiador, corpo heterogéneo formado de companhias de castelhanos, leoneses e, até, de navarros e galegos, dispersou-se em completa desordem. Apenas as tropas de Castela conservaram alguma disciplina e, resistindo aos sitiados que saíram a persegui-las, levaram com pompa militar o cadáver de Sancho ao Mosteiro de Onha, onde foi sepultado.

Afonso VI de Leão e Castela


Corria o ano de 1072 quando sucederam estes acontecimentos. A morte inesperada de Sancho mudou inteiramente o aspecto dos negócios públicos. Urraca apressou-se a avisar Afonso de que viesse ocupar o trono que ninguém lhe disputava, não havendo o rei de Castela deixado filhos. Depois de jurar paz e aliança com o seu hóspede, o generoso Al-Mamon, Afonso dirigiu-se a Zamora, onde foi logo reconhecido pelos barões de Leão e também pelos de Galiza conforme alguns historiadores, o que parece confirmar a ideia de que no reinado antecedente os estados de Garcia tinham ficado numa espécie de sujeição a Sancho. Os castelhanos, se acreditarmos Lucas de Tuy e Rodrigo Ximenes, exigiram previamente dele o juramento de que não tinha entrado na trama da morte de seu irmão, mas não ousando ninguém pedir este juramento, Rui Dias de Bivar, o Cid, apresentou-se a exigi-lo em nome dos nobres de Castela. Todas estas particularidades, porém, foram talvez inventadas para dar fundamento histórico às novelas e poemas do Cid, que por largo tempo passaram e passam ainda para muitos como narrativas verdadeiras.

A data do segundo reinado de Afonso, VI do nome na série dos reis de Oviedo e Leão, é a dos primeiros dias do ano de 1073. Obtendo sem custo, não só a própria coroa que perdera, mas também a de Castela, parecia dever contentar-se deste favor da sorte; mas não sucedeu assim. Garcia reinava na Galiza, ou porque nunca dali saísse, ou porque voltasse de Sevilha, para onde, afirmam alguns, tinha fugido do castelo de Luna. Apenas seguro no trono, Afonso VI, dizem que por conselho de sua irmã Urraca, atraiu-o enganosamente à corte e meteu-o numa prisão, donde não tornou a sair enquanto viveu, posto que fosse aí tratado com toda a atenção e brandura. Nenhuma das duas províncias, Portugal e Galiza, recusou aceitar o novo senhor, e Afonso achou-se, enfim, na posse pacífica de toda a herança de Fernando Magno acrescentando a ela daí a três anos a Rioja e a Biscaia, que lhe cedeu Sancho I de Aragão para que ele lhe consentisse a posse pacífica de Navarra, de cuja maior parte o mesmo Sancho se havia apoderado.

Não tardou muito que ao poderoso rei de Leão, Castela e Galiza se oferecesse conjuntura de mostrar, não só a força do seu braço, mas ao mesmo tempo o seu agradecimento ao emir muçulmano que tão nobremente o acolhera no tempo da adversidade. A Espanha árabe continuava a despedaçar-se nas guerras intestinas que haviam nascido da queda do império dos Benu Umeyyas. O emir de Sevilha, que também obtivera o domínio da antiga capital dos califas, invadiu os estados de Al-Mamon. Sem esperar que este lhe mandasse pedir socorro, o rei cristão marchou em auxílio de Al-Mamon. Os dois exércitos, toledano e leonês, entraram então no território do emir inimigo, assolando e queimando tudo. Afinal Al-Mamon, que se apossara de Sevilha, despediu o seu aliado rico de despojos, e Afonso voltou a Leão. Daí a pouco faleceu o velho amir, recomendando seu filho e sucessor (outros dizem seu neto) à protecção de Afonso VI, que por esta época (1077) se assenhoreou de Coria, cidade provavelmente sujeita ao emir de Badajoz. Das suas outras vitórias e conquistas feitas no período que decorre desde a morte de Al-Mamon até a tomada de Toledo e das posteriores a esse importante sucesso falam tão confusa e resumidamente os historiadores cristãos, ao passo que as celebram com excessivo encarecimento, que pouco se alcança a este respeito, à vista do que eles dizem. É confrontando-os com os escritores árabes que se pode obter mais alguma luz sobre os primeiros doze ou quinze anos do dilatado governo de Afonso VI.

Mohammed Al-Mutamed Ibn Abbad (o Benabeth das crónicas cristãs) era o emir de Sevilha contra quem o rei de Leão guerreara como aliado de Al-Mamon. Apenas Afonso se retirara, Ibn Abbad viera pôr cerco a Sevilha, onde o amir de Toledo falecera estando cercado. Com a sua morte os toledanos viram-se obrigados a ceder, e não só a capital da Andaluzia mas também Córdova, conquistada igualmente por Al-Mamon, voltaram de novo ao domínio do seu antigo senhor. Só do rei leonês se temia Ibn Abbad; porque, como um dos tutores do emir toledano, podia marchar contra ele e atalhar o curso das suas recentes vitórias. Tinha Ibn Abbad por vizir (ministro) um dos homens mais célebres entre os árabes pela sua habilidade em enredos políticos.

Chamava-se Ibn Omar. Foi por intervenção dele que o emir de Sevilha tentou afastar Afonso VI da aliança do sucessor de Al-Mamon; mas o rei de Leão soube até certo ponto corresponder à confiança que nele pusera o emir falecido, senão defendendo activamente o pupilo, ao menos não se unindo por então aos seus inimigos.

Toledo era naquele tempo, depois de Córdova, talvez a mais famosa cidade da Espanha muçulmana. Além de ter sido a antiga capital do império visigótico, a sua situação central, a fortaleza do seu assento e o aumento que tinha tido desde que nela reinava independente a família dos Dhin-Nun tornavam-na de tal importância que Afonso VI desejava ardentemente possuí-la para fazer dela, como depois se viu, a capital do reino de Oviedo, Leão e Castela. Era a ocasião oportuna; mas a empresa devia ser levada com tal arte que o resultado fosse bem seguro. E, de feito, todos os passos de Afonso VI se encaminharam a alcançar este único fim durante os cinco anos que decorreram desde 1080 até à tomada de Toledo em 1085.

A história dos sucessos daquela época é obscura pelas narrativas várias e encontradas dos cronistas cristãos e árabes. De uns parece deduzir-se que um tio ou irmão do sucessor de Al-Mamon, chamado Yahya, obtivera o poder no meio das revoltas que dilaceraram os estados dos Dhin-Nun. Outros parece indicarem que Yahya fora o sucessor de Al-Mamon e que Afonso VI esquecera pela ambição os deveres que o ligavam àquela família. O que sabemos é que por fim Afonso VI estava aliado com Ibn Abbad e que já em 1081 invadia o território de Toledo com um numeroso exército em que se achavam, segundo parece, muitos cavaleiros franceses e, atravessando as serras que dividem a Castela Velha da Nova, apossava-se de vários lugares fortes. Nos anos seguintes renovou a guerra, sempre com tão próspera fortuna que Ibn Abbad, para mais apertar os recentes laços que o uniam ao seu antigo adversário, lhe deu por mulher sua filha Zaida, cedendo-lhe juntamente o senhorio das terras que pela sua parte ele conquistara ao emir de Toledo, como Cuenca, Huete, Ocanha e outras. Aquele casamento, se tal nome se lhe pode dar, entre um rei cristão e uma princesa muçulmana, posto que insólito (tanto mais que Afonso era casado havia já anos com sua segunda mulher, Constança de Borgonha, tendo perdido ou repudiado a primeira, Inês), não parece ter produzido grande admiração no ânimo dos escritores desses tempos, um dos quais, Lucas de Tuy, se contenta de chamar a Zaida «quase mulher» do rei. As ideias de então explicam esta singularidade aparente. Pelo que toca a Ibn Abbad, o dar sua filha a um homem casado nada tinha de extraordinário, por ser a poligamia permitida entre os sarracenos. Quanto a Afonso VI, andavam no seu tempo os costumes tão soltos e eram tão frequentes os matrimónios sem intervenção da Igreja que semelhante sucesso, hoje estranho, seria apenas digno de reparo naquela época.

Antes de assentar definitivamente o cerco de Toledo, o rei de Leão seguiu o sistema de enfraquecer a capital assolando-lhe duas vezes cada ano, conforme o testemunho dos árabes, os campos e povoações das circunvizinhanças e tomando os castelos donde os mouros o poderiam saltear durante o sítio. Depois de três anos de correrias e estragos, Afonso veio por fim acampar-se em volta dos muros de Toledo. Yahya nada tinha feito, segundo parece, para repelir as invasões dos cristãos. Era o moço emir mais dado aos passatempos e deleites que aos cuidados do governo e às fadigas da guerra. Vendo-se reduzido ao extremo aperto, enviou mensageiros ao amir de Badajoz, Ornar Ibn Moharnmed, pedindo-lhe socorro. Mandou este, de feito, seu filho Al-Fadl, váli de Mérida, com certo numero de tropas, mas debalde: Afonso não só o impediu de entrar na cidade, mas também o desbaratou e constrangeu a fugir. Encerrava Toledo nos seus muros um grande número de judeus e de moçárabes ou moçárabes.

Para estes o domínio dos leoneses, seus correligionários, se não era de desejar, pelo menos não era de temer: para aqueles, indiferentes a estas lutas de duas raças e de duas crenças alheias à sua, o único receio grave consistia na possibilidade de perderem os grossos cabedais que possuíam, se, tomada de assalto, a cidade fosse posta a saco. Aproveitando os incitamentos da fome, que se começava a sentir duramente, falavam já de se darem a partido. Alguns muçulmanos, que ainda conservavam as tradições do esforço de seus antepassados, pretendiam que se defendesse Toledo até o último transe; mas o comum dos habitantes sarracenos quebrados os ânimos pela escasseza de vitualhas e pela desesperança de socorro, inclinaram-se à opinião dos judeus e dos moçárabes. Constrangido pelos conselhos e clamores gerais, o amir dirigiu a Afonso VI embaixadores que lhe trouxessem à memória a sua aliança com a família dos Dhin-Nun e os benefícios recebidos de Al-Mamon, e que ao mesmo tempo lhe propusessem o reconhecer ele, Yahya, a supremacia da coroa leonesa, pagando-lhe tributo anual. 

Tudo rejeitou Afonso: o seu propósito inabalável era apoderar-se da cidade: tréguas aos mouros, só assim as daria. Sabida esta resposta, o povo amotinou-se, e não houve outro remédio senão ceder. As condições foram vantajosas para os habitantes: tolerância inteira para com o culto do Islão; nenhum aumento de tributos; liberdade plena para todos que quisessem seguir Yahya e a conservação dos juizes e leis civis dos muçulmanos, para por elas se regerem estes. O emir saiu com os principais sarracenos para Valência, e Afonso, ordenadas todas as coisas necessárias para assegurar a sua conquista, foi habitar o alcaçar dos príncipes muçulmanos, ou antes os paços transformados dos reis visigodos, que de Toledo tinham feito a capital do império, e donde Roderico saíra perto de quatro séculos antes para a batalha do Chrissus, na qual se perdeu a Espanha. Ou fosse por esta circunstância ou pela situação de Toledo, mais acomodada que Leão para poder facilmente prosseguir a guerra contra o islamismo e dilatar os domínios cristãos, Afonso VI estabeleceu aí a corte, deixando a de Leão, como por esta Garcia I abandonara a de Oviedo. Foi na Primavera de 1085 que a antiga capital da Espanha visigótica se libertou do jugo sarraceno. Aqueles castelos e povoações dependentes do emirado de Toledo que ainda não haviam sido tomados por Afonso VI seguiram em breve a sorte desta cidade. A balança pendia enfim a favor da reacção cristã; porque, com as muitas conquistas deste príncipe, em mais de metade do território espanhol a cruz triunfante dominava de novo. As fronteiras ou estremaduras do reino leonês-castelhano dilatavam-se agora por uma linha que corria de poente a nascente desde a foz do .Mondego, pela Beira Baixa, direita a Corja, Talavera, Toledo, Huete e Cuenca, até às serras de Albarracim. Então as povoações ao norte desta linha, antes tomadas e perdidas frequentes vezes ou destruídas e abandonadas, puderam afinal ser erguidas das suas ruínas e repovoadas, negócio que principalmente entretinha Afonso VI nos breves intervalos de trégua que dava aos sarracenos.

O emir de Sevilha, que tanto trabalhara por obter a aliança do rei de Leão e induzi-lo a destruir o poder dos Dhin-Nun, quando viu quão rápidas e importantes eram as conquistas de Afonso, começou a ter graves receios das consequências fatais que a sua política podia produzir para o islamismo. Enviou-lhe então mensageiros, dizendo que se devia contentar com a posse de Toledo e cessar de ulteriores conquistas, lembrando-lhe as condições dos tratados que haviam celebrado. O rei de Leão entendeu ou fingiu entender que o emir lhe recordava a obrigação de o ajudar contra os seus inimigos e, sem descontinuar da guerra, enviou-lhe quinhentos cavaleiros, que, demorando-se apenas três dias junto de Sevilha, se dirigiram a Medina Sidónia, onde a esse tempo se achava Ibn Abbad. Nunca tão longe haviam penetrado soldados cristãos. A cólera e o temor aumentaram no coração do emir com este inesperado e não pedido socorro, que Afonso ousava enviar até os limites meridionais da Espanha árabe. Desde esse momento Ibn Abbad não cogitou senão no modo de pôr termo ao engrandecimento do rei leonês. Uma paz geral entre os diversos amires muçulmanos, já talvez dantes preparada, se fez então. Numa assembleia celebrada em Sevilha, a que pessoalmente assistiram alguns deles ou a que enviaram os seus vizires e cádis, se deliberou sobre a maneira que se teria em obstar à ruína iminente do Islão. A resolução que tomaram, combatida energicamente pelo váli de Málaga, foi chamar à Espanha os almorávidas; resolução fatal para os cristãos, porém ainda muito mais fatal para a liberdade dos muçulmanos espanhóis.

Quem eram os almorávidas e o seu amir Yusuf já noutro lugar o dissemos. Ibn Abbad tinha sido aliado de Yusuf quando o rei de Leão favorecia os Dhin-Nun de Toledo, e as armadas do emir de Sevilha haviam ajudado por mar o príncipe africano a subjugar Tânger. Por mais de uma vez Ibn Abbad o havia excitado a passar o Estreito, na persuasão de que, ajudado pelo africano, poderia assenhorear-se de todos os estados maometanos da Espanha, embora houvesse de reconhecer uma espécie de sujeição ao chefe almorávida. Há quem diga que o próprio Afonso VI aprovava estes desígnios do emir sevilhano na época da estreita amizade que por algum tempo os uniu. Agora, porém, era contra o leonês que todos os potentados muçulmanos da Península invocavam o socorro do célebre Yusuf.

Este achava-se em Fez, que pouco antes conquistara, quando chegaram os mensageiros do país do Andaluz. Ouvida sua embaixada, respondeu aos emires que não passaria à Espanha sem que lhe cedessem o castelo de Algeciras, por onde pudesse entrar e sair da Península com a certeza de não lhe ser embargado o passo, acrescentando que, no caso de aceitarem a condição, atravessaria imediatamente o Estreito para os ajudar contra o rei infiel. Era extremo o trance: Ibn Abbad, senhor do castelo pedido, mandou-o entregar a Yusuf, e pouco tardou que um grosso exército capitaneado pelo próprio Abu Yacub passasse de África para Espanha e se dirigisse a Sevilha.

Afonso VI, depois de haver talado o território do amir de Badajoz, marchara para o oriente e pusera sítio a Saragoça. Foi ali que lhe chegou a notícia da vinda de Yusuf. Imediatamente, convocando em seu auxílio Sancho, rei de Aragão, fazendo levantar novas tropas por Galiza, Astúrias, Leão e Castela e chamando muitos cavaleiros do Sul da França, como já havia chamado outros antes de conquistar Toledo, dirigiu-se a esta cidade, onde todos esses elementos dispersos se deviam ajuntar para constituir um exército capaz de se opor à multidão dos sarracenos, que ameaçavam tirar crua vingança das afrontas recebidas pelos muçulmanos do Andaluz.

O desígnio de Yusuf, segundo parece, era marchar contra Leão e Galiza, levando a guerra ao centro dos estados cristãos: porque, em vez de se dirigir contra Toledo, partira de Sevilha para Badajoz. Foi perto desta cidade que Afonso VI, marchando da sua nova capital com todas as forças aí congregadas, veio sair ao encontro do príncipe almorávida.

Os dois exércitos avistaram-se sobre o rio de Badajoz (Nahar-Hagir): o dos muçulmanos ocupava na margem esquerda os campos e outeiros denominados pelos escritores árabes de Zalaca e pelos cronistas cristãos de Sagalias ou Sacralias: o de Afonso VI acampou na margem direita. A terribilidade da batalha, que era inevitável, fazia hesitar tanto uns como outros; porque alguns dias se passaram em embaixadas e ameaças. Os dois exércitos que se achavam frente a frente eram, talvez, os maiores que desde a entrada dos sarracenos a Espanha tinha visto. Ainda dando algum desconto à exageração ordinária dos antigos escritores árabes e cristãos, os quais, unânimes, afirmam que só Deus poderia contar o número de muçulmanos e que as tropas do rei de Leão e Castela subiam a oitenta mil cavaleiros e duzentos mil peões, é todavia certo que ali se encontravam todas as forças das duas raças que disputavam o solo da Espanha, ajudadas uma pelos guerreiros franceses e a outra pelos almorávidas, conquistadores da Mauritânia. Há, porém, uma circunstância narrada pelos árabes muito crível, a qual não devemos omitir; isto é, a existência de vários corpos de cavalaria cristã ao serviço de Yusuf e a de trinta mil muçulmanos ao de Afonso VI, o que prova serem, mais que o sentimento religioso, ódios ou ambições humanas quem não consentia um momento de paz e repouso na devastada Espanha.

Afonso resolveu-se, enfim, a acometer os sarracenos e passou o rio ao romper da manhã de 23 de Outubro de 1086. Os seus corredores toparam com um corpo de almogaures de África enviados contra eles e obrigaram-nos a recuar. Entretanto, parece que no romper das batalhas algumas tropas cristãs tinham fugido, aterradas provavelmente pelo grande número dos inimigos. Todavia o rei de Leão, dividindo o exército em dois troços, deu o sinal de combate. Ele com a vanguarda remeteu contra os almorávidas, enviando ao mesmo tempo o outro corpo, capitaneado por Sancho de Aragão e por um general a que os escritores árabes chamam Albar Hanax (porventura Álvaro Eanes), contra os muçulmanos espanhóis, cujo campo estava separado dos arraiais africanos por um outeiro. Acaudilhava os sarracenos espanhóis o amir Ibn Abbad, homem cujo esforço era provado, mas brevemente se viu só com os seus guerreiros sevilhanos, porque todos os outros amires fugiram desordenados pelo impetuoso embate dos cristãos. Por outro lado, a vanguarda dos africanos começava a recuar diante do valoroso rei leonês. Yusuf conheceu então a necessidade de dar um golpe decisivo: enviou as tribos berberes e as cabildas almorávidas de Zeneta, Mossameda e Ghomera em socorro da sua vanguarda e do emir de Sevilha, que, abandonado dos outros emires, continuava a sustentar por aquele lado o peso da batalha.

Depois o hábil Yusuf, rodeando o campo da peleja, precipitou-se à frente dos lantunitas, os mais célebres entre os guerreiros almorávidas. e a cuja raça ele pertencia, sobre os mal guardados arraiais dos cristãos. Era impossível a resistência. No momento em que o desbarato dos muçulmanos parecia certo, Afonso foi avisado da destruição do seu acampamento, não só pelos fugitivos que chegavam, mas também pelo clarão do incêndio. O desejo da vingança perdeu-o. Abandonando o combate, que tinha quase vencido, marchou contra Yusuf, que o recebeu valorosamente. Os sarracenos, que recuavam diante dele, cobraram ânimo, percebendo que os cristãos voltavam rosto, e vieram acometê-los pelas costas quando mais aceso andava o recontro com os lamtunitas. As tropas muçulmanas que haviam fugido para Badajoz, vendo melhorar-se a fortuna dos seus, tornaram à batalha. Revolvendo-se como um leão no meio dos infiéis, Afonso não cedeu enquanto lhe restaram alguns soldados em estado de pelejar, mas por fim, ferido ele próprio, viu-se constrangido a fugir acompanhado apenas de quinhentos homens de armas e perseguido pelos almorávidas que ainda lhe derrubaram uma boa parte destes. A noite que descia salvou os restantes e o próprio rei de Leão, que sem essa circunstância teria perecido.

Se acreditássemos os escritores árabes, a perda dos cristãos teria sido imensa. Segundo um deles, Yusuf, fazendo decepar as cabeças dos mortos (costume trivialíssimo entre os sarracenos), enviou cinquenta mil às diferentes capitais dos emirados do Andaluz e quarenta mil para serem distribuídas pelas cidades marítimas da Berberia como documento da vitória. De todo o exército dos nazarenos, dizem eles, apenas escapou Afonso com cem homens. Semelhantes encarecimentos, juntos à confissão dos antigos cronicons sobre o grande estrago dos cristãos, provam que esta foi uma das mais terríveis batalhas que se pelejaram em Espanha. Se o hábil e esforçado Yusuf Abu Yacub tivesse ficado na Península à frente dos sarracenos vitoriosos, a monarquia leonesa não tardaria, talvez, em chegar ao ponto da última ruína. Felizmente para o cristianismo, na mesma noite da batalha um mensageiro chegou ao campo dos almorávidas com a notícia de ser falecido, em Ceuta, Abi Bekr, filho mais velho de Yusuf, que ele amava com extraordinário afecto. Esta nova obrigou Yusuf a partir imediatamente para Algeciras e a passar à África, deixando por general das tropas almorávidas o caide Seir Ibn Abi Bekr.

Enquanto este e o emir de Badajoz corriam as fronteiras da Galiza, talando os lugares abertos e submetendo vários castelos e povoações fortes que Afonso anteriormente conquistara, Ibn Abbad entrava pelo território de Toledo e sucessivamente ia expulsando os cristãos das cidades principais daquela província, como Cuenca, Huete e Consuegra. Perto de Lorca, porém, alguns alcaides castelhanos vieram ao seu encontro e destroçaram-no. Desde este sucesso a fortuna começou a sorrir de novo a Afonso VI. A poucas milhas de Lorca, aonde o emir de Sevilha se fora refugiar depois do seu desbarato, tinham-se os cristãos apossado, talvez nessa mesma conjuntura, de um castelo roqueiro e bem fortificado, a que os historiadores árabes dão o nome de Alid. Acredita-se que o caide desse castelo era o famoso Rui Dias, mais conhecido pelo nome de Cid, de quem já fizemos menção. Situada num monte quase inacessível no meio dos estados de Ibn Abbad, aquela fortaleza era como um ninho de águias donde o terrível Rui Dias se arrojava sobre os campos de Múrcia e de Sevilha, e punha tudo a ferro e fogo. Sabendo das suas façanhas, o rei de Leão apressou-se a mandar-lhe socorros. Não passava dia em que as correrias dos cavaleiros de Alid não deixassem tristes vestígios nas terras vizinhas, e às vezes estas correrias alongavam-se até o território de Valência. O emir sevilhano, cansado de tantos estragos e não tendo forças para os impedir, recorreu a Yusuf, que, havendo ordenado as coisas do Moghreb, tornou a passar à Espanha no Verão de 1088. Provavelmente Abu Yacub, confiado nas tropas que deixara e nas da Andaluzia, dirigiu-se com poucas forças a Lorca, onde chamou para a ghaswat (guerra santa) os emires espanhóis, os quais pela maior parte não vieram. Assim, com o seu pequeno exército cercou Alid debalde: os cristãos resistiram durante quatro meses. Algumas dissensões graves começaram entretanto a alevantar-se no campo dos sitadores, enquanto Afonso VI, sabendo da vinda de Yusuf e do cerco de Alid, marchava a encontrá-lo. Yusuf não ousou esperar o exército leonês e, irritado contra a maior parte dos amires que o tinham abandonado, embarcou para a Mauritânia. O rei de Leão chegava no entanto às imediações de Lorca e, fazendo sair do castelo de Alid o resto dos seus defensores, desmantelou-o e regressou a Toledo.

Os sarracenos de Espanha começavam já a recear que o seu poderoso aliado de
África lhes viesse a ser mais fatal que o próprio Afonso, e que, não contente com o
vasto império do Moghreb, quisesse também assenhorear-se dos amirados aquém do
Estreito. Mostrou o tempo que estes receios não eram vãos. Pela terceira vez Abu Yacub
voltou à Península, mas com um grosso exército de almorávidas (1090). Dirigiu-se
rapidamente para Toledo, cujos arredores devastou, sem que Afonso, encerrado dentro
dos muros, se atrevesse a opor-se-lhe. Todavia nem um só dos amires de Espanha veio
ajuntar as suas tropas às de Abu Yacub, e o próprio Ibn Abbad, que na antecedente
campanha não seguira o exemplo comum, desta vez ficou tranquilo em Sevilha,
enquanto Yusuf guerreava os nazarenos. Folgou com este procedimento o dissimulado
almorávida, cujos intentos eram na realidade os que se lhe atribuíam. Saindo
repentinamente dos territórios cristãos, marchou para Granada, onde não tardou a depor
o amir Abdullah Ibn Balldn, que já, segundo parece, tratava secreta-mente de
confederar-se com o rei de Leão contra os africanos. Depois Yusuf regressou de novo a
Marrocos, deixando para o substituir o caide Seir, como executor dos seus ambiciosos
desígnios.

Ibn Abbad entretanto fortificava-se em Sevilha e, solicitando o esquecimento do passado, buscava a aliança de Afonso, que, vendo nestas lutas dos muçulmanos ocasião de engrandecimento próprio, lha concedeu facilmente. Infatigável sempre, Abu Yacub chegando à África enviou imediatamente para a Espanha grande número de soldados. Seir pôde em breve assenhorear-se de Jaen e de Córdova, e, passado apenas um mês, de todas as cidades dependentes do emirado de Sevilha não restava a Ibn Abbad senão a sua capital. Afonso fez então marchar algumas forças contra os almorávidas, mas depois de vários recontros elas foram constrangidas a retirar-se, e daí a pouco Sevilha caiu nas mãos de Seir. Sem nos fazermos cargo das resistências parciais, e na maior parte obscuras, que os árabes espanhóis opuseram ao triunfo completo dos almorávidas, resistências que só tiveram alguma importância quando certo número de emires e vális se uniram debaixo do mando de um cristão, o célebre Rui Dias, basta dizer que doze anos consumidos em contínuas guerras entre o africano Seir e os muçulmanos do Andaluz deram a Yusuf o domínio da parte não cristã da Península, à excepção do território de Saragoça, cujo amir desde o princípio firmara uma sólida aliança com os almorávidas. Quando em 1103 o emir al-mumenin, ou príncipe dos muçulmanos, título que Yusuf tomara, voltou pela quarta vez à Espanha, achou-se pacífico senhor de todos os países maometanos desde os limites de Saragoça até à margem esquerda do Tejo, que pelo lado do Gharb era a barreira que os dividia do império leonês.

Fora, de feito, até à foz do Tejo que as conquistas de Afonso VI haviam chegado. Enquanto os sarracenos combatiam entre si, ele, refazendo-se das passadas perdas, marchara para o sul e apossara-se de Santarém, Lisboa e Sintra no Verão de 1093. Satisfeito com ter dilatado os seus domínios, apesar do terrível revés de Zalaca, até o extremo ocidente, o rei de Leão, que em vários documentos atribui já a si o título de imperador, tomado constantemente depois por Afonso VII, recolheu-se a Toledo, dedicando-se ao governo dos seus estados, sem fazer guerra aos sarracenos, salvo as pequenas escaramuças e correrias das fronteiras, que eram de costume, ao menos todas as primaveras.

Um dos golpes mais dolorosos para o coração humano cobriu de tristeza os últimos dias de Afonso VI e, porventura, abreviou-lhe a existência. Das mulheres com que foi casado e de duas concubinas, apenas Zaida, a filha de Ibn Abbad, que ele veio, segundo parece, a desposar legitimamente depois de convertida ao cristianismo, lhe deu um filho varão, o infante Sancho. Entrado apenas na juventude, era este mancebo, por nos servirmos das expressões atribuídas ao próprio rei de Leão, que ele considerava como seu herdeiro e que amava como a luz dos seus olhos, alegria do seu coração e consolo da sua velhice. Aquele filho tão querido acabou desafortunadamente às mãos dos sarracenos na flor da mocidade esperançosa, no penúltimo ano de reinado e da vida do velho Afonso VI, que, morrendo, houve de deixar a gloriosa mas pesada coroa de Leão e Castela à única filha legítima que tivera de Constância, sua segunda esposa. Abu Yacub Yusuf Ibn Taxfin falecera em Marrocos no Outono de 1106, e seu filho Ali Ibn Yusuf, já anteriormente declarado e jurado sucessor, tomara as rédeas do governo do vasto império muçulmano da África e da Espanha. O novo amir al-mumenin, sopitada a revolta de um seu sobrinho, váli de Fez, resolveu prosseguir na guerra santa contra os cristãos. Com este propósito, no Verão de 1108 fez passar o Estreito a novas tropas almorávidas da tribo de Lamtuna e deu o mando delas a seu irmão Abu Taher Temin, váli de Valência e depois de Granada. Romperam as hostilidades pelo cerco de Uclés, forte povoação da fronteira cristã. Apesar de bem guarnecida, a cidade foi entrada à escala vista e os seus defensores tiveram de acolher-se ao castelo. Afonso VI enviou imediatamente um exército em auxílio dos cercados. Capitaneava-o o infante Sancho, antes em nome que na realidade, porque apenas saía da infância. O velho rei de Leão confiava na vigilância e afecto do conde Gomes de Cabra, aio do infante, sendo por isso o conde o verdadeiro cabeça da expedição. Quando Temin soube das forças que vinham contra ele quis retirar-se, mas os caides de Lamtuna insistiram em esperar os cristãos.

Chegados estes, travou-se a batalha. Foi terrível o recontro, e o campo disputado com igual esforço; mas por fim a vitória declarou-se a favor dos muçulmanos. Sancho, provavelmente já quando os seus começavam a retroceder, sentiu fraquear o ginete em que montava. Assustado, bradou ao conde Gomes: «Oh pai!, oh pai!, o meu cavalo está ferido!» Correu o aio e chegou no momento em que Sancho caía. Estavam cercados de sarracenos. O conde apeou-se e, metendo o infante entre si e o escudo, defendia-se e defendia-o como um leão dos golpes que choviam por todos os lados, até que uma cutilada lhe decepou um pé. Não podendo mais suster-se, deitou-se em cima de Sancho, para morrer antes dele, e assim acabaram ambos. Os cristãos fugiam entretanto perseguidos pelos africanos: alcançados a breve distância, sete condes aí foram mortos, e apenas as relíquias do exército voltaram a Toledo. Temin redobrou então os assaltos contra o castelo de Uclés, que, apesar de brava resistência, houve por fim de render-se. Foram, todavia, segundo é de crer, grandes as perdas dos almorávidas, tanto na batalha como no sítio, porque não prosseguiram na conquista, tirando assim quase nenhum fruto da vitória.

Enfraquecido por dilatada enfermidade, o rei de Leão, sabida a morte do filho, caiu em profunda tristeza, a qual lhe agravou o mal. Em Junho de 1109, Afonso expirou em Toledo, tendo governado depois da morte de seu irmão Sancho trinta e seis anos como rei de Leão e Castela. A falta deste célebre príncipe trouxe à Espanha graves perturbações, das quais só faremos menção no que importar à história de Portugal, nascido, por assim dizer, desse acontecimento e favorecido na sua débil infância pelos calamitosos sucessos ocorridos na Espanha cristã em consequência da morte de Afonso VI.






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