terça-feira, 25 de junho de 2013

História: Portugal antes de D. Afonso Henriques - 1ª Parte

História: Portugal antes de D. Afonso Henriques - 1ª Parte


Por Alexandre Herculano




By Anonymous [Public domain or Public domain], via Wikimedia Commons

Os limites dos estados de Fernando Magno (Fernando I de Leão, nasceu por volta do ano 1016 e faleceu a 27 de Dezembro de 1065) haviam-se dilatado para o ocidente da Península, conquistadas sucessivamente Lamego, Viseu, Seia e Coimbra (1064). A província da Galiza, cuja fronteira variava continuamente segundo os cristãos estendiam os seus domínios por esta parte mais para o sul ou tinham de retroceder diante das armas dos sarracenos, muitas vezes vitoriosas, dilatou-se, enfim, permanentemente até o Mondego. Coimbra, que, não só pela sua antiguidade e grandeza relativa, mas ainda mais por ser militarmente como a chave do território encerrado entre este último rio e o Douro, era uma povoação importante, foi feita capital de um novo condado ou distrito, cujo governo o guerreiro príncipe confiou àquele que o incitara a prosseguir por este lado as suas brilhantes conquistas.

Antes desta época, bem como as outras províncias da antiga monarquia leonesa, a Galiza era regida por diversos condes cujos territórios variavam em extensão. Às vezes, estes condes tinham debaixo da sua autoridade mais de um distrito; outras, eram sujeitos a um conde superior ou vice-rei da província. Entre estes governos, desde o meado do século IX, aparece o distrito ou condado portucalense. Assim como Coimbra era a povoação mais notável sobre o Mondego, Portucale, situado junto ao Douro, era no século XI, pela sua situação vizinha da foz do rio, pela sua antiguidade, que não só remontava à época dos visigodos mas ainda ao tempo do domínio romano, e pela fortaleza do sítio, cabeça e principal povoação de um território que abrangia ao norte uma parte do litoral da moderna província do Minho e ao sul as terras que até o Vouga se tinham sucessivamente conquistado.

Sesnando ou Sisenando (falecido em 1091), filho de David, rico moçárabe da que hoje denominamos província da Beira, senhor de Tentúgal e de outras terras no território de Coimbra, tinha sido introduzido na corte de Sevilha no tempo de Abbad II al-Mu'tadid e, pelos seus talentos e importantes serviços feitos ao príncipe sarraceno, chegara a ocupar o cargo de vizir no divã, isto é, de ministro ou membro do supremo conselho do emir, que o distinguia particularmente entre os seus conselheiros. Sesnando tornou-se temido nas guerras com os inimigos de Abbad II al-Mu'tadid; porque nas empresas que dirigia obtinha sempre prósperos sucessos. O motivo por que abandonou o emir de Sevilha para entrar no serviço de Fernando Magno ignora-se; mas o seu procedimento posterior persuade que alguma ofensa recebida dos sarracenos a isso o instigara. Admitido na corte do rei de Leão e Castela, conseguiu convencê-lo das vantagens que obteria invadindo o Ocidente da antiga Lusitânia. O resultado da invasão justificou as previsões de Sesnando, e o rei de Leão retribuiu o bom serviço que o moçárabe lhe fizera dando-lhe o governo de um distrito constituído com as novas conquistas e com a terra portucalense ao sul do Douro, ao qual servia de limites, pelo oriente, a linha de Lamego, Viseu e Seia, e de fronteira, pelo sueste, o pendor setentrional da serra da Estrela. Deste modo, a parte do moderno Portugal ao norte do Mondego e do Alva estava possuída pelos cristãos quando Fernando I faleceu (1065). O distrito de Coimbra, como dissemos, estendia-se do Douro ao Mondego, e o do Porto, desmembrada dele a terra de Santa Maria (Feira), dilatava-se para o norte e nascente, abrangendo talvez o Alto Minho e para o oriente ainda parte da província de Trás-os-Montes. Incluído até aí na Galiza, o território denominado nos documentos e crónicas dos séculos XI e XII Portucale, Terra portucalensis, começa então a figurar como província distinta, posto que outras vezes pareça continuar a ser considerado como porção da Galiza e, até, tornar-se mais circunscrito, o que tudo provinha da falta de limites permanentes nos diversos condados ou  governos em que se dividia o reino de Leão e Castela, e da diversa importância que os respectivos condes tinham na hierarquia administrativa, sendo umas vezes dependentes imediatamente do rei, outras, como já observamos, de um conde superior, espécie de vice-rei preposto ao regimento de uma província inteira.

Repartida entre os três filhos de Fernando Magno a monarquia que ele tanto dilatara, coube a Garcia a Galiza, abrangendo Portugal e as novas conquistas até o Mondego. Sesnando continuava a dominar o território de Coimbra, enquanto o conde NunoMendes (Nuno II Mendes, sétimo e derradeiro conde de Portucale descendente da família de Vímara Peres) parece governava o do Porto. Ele pelo menos foi o cabeça de uma rebelião dos povos daquele distrito, os portucalenses, contra Garcia, que, encontrando-se com os levantados entre Braga e o rio Cávado, os destroçou, como noutra parte se disse, ficando morto o conde no campo da batalha (batalha de Pedroso a 18 de Janeiro de 1071, junto do Mosteiro de Tibães).



As discórdias dos três irmãos fizeram passar sucessivamente a coroa da Galiza da cabeça de Garcia para a de Sancho, rei de Castela, e, afinal, para a de Afonso de Leãoque juntou outra vez todos os estados de seu pai. Entretido com guerras nas províncias centrais da Península até se apossar de Toledo, ele deixou tranquilos por alguns anos os sarracenos que estanciavam ao sul de Coimbra, aplicando-se depois da conquista da antiga capital da Espanha, a restaurar as povoações das fronteiras vizinhas do Douro.

Porventura entre Sesnando e os muçulmanos limítrofes alguns recontros haveria, segundo parece indicá-lo o foral dado a Coimbra por Afonso VI, mas as correrias e entradas dos cristãos no Ocidente da Espanha só prosseguiram depois da morte do conde moçárabe, sucedida nos fins de 1091.

Os filhos de Fernando I tinham respeitado o homem a quem este príncipe confiara o regimento e defesa do território chamado então conimbricense. Sesnando serviu lealmente até o seu último dia a causa da monarquia cristã, que ele abraçara, e ainda, segundo parece, acompanhou Afonso VI em 1086 à infeliz batalha de Zalaca (próximo de Badajoz). Sua filha Elvira [Unisco Sisnandes casa com Gonçalo Trastamires pai de Mendo Gonçalves da Maia, senhor de Coimbra] casara com Martim Moniz, cavaleiro ilustre, a quem por morte do conde foi dado o governo de Coimbra. Afonso, entretanto, reparadas as forças da monarquia, quase destruídas na jornada de Zalaca, resolveu, inimigo sempre incansável dos sarracenos, acometê-los pelo Ocidente, passando com o seu exército na Primavera de 1093 para o sul do Mondego e indo pôr sítio a Santarém. Esta povoação importante, cuja expugnação se julgava quase impossível, não tardou a cair-lhe nas mãos, e dentro de poucos dias igual sorte coube a Lisboa e a Sintra dilatando-se as fronteiras até à foz do Tejo com essas novas conquistas, cujo governo foi dado a Soeiro Mendes (1060 - 1108), irmão de Gonçalo Mendes da Maia (1079 — Batalha de Ourique, 1155) , tão célebre depois com o nome de Lidador.


A Galiza, incluindo debaixo desta denominação a extensa província portugalense a que naturalmente se devia considerar como incorporado o território novamente adquirido no Gharb muçulmano, constituía já um vasto estado remoto do centro da monarquia leonesa. Os condes que dominavam os distritos em que se dividia essa larga extensão de terra ficavam assaz afastados da acção imediata do rei e eram assaz poderosos para facilmente se possuírem das ideias de independência e rebelião comuns naquele tempo, tanto entre os sarracenos como entre os cristãos. Afonso VI pôde evitar esse risco convertendo toda a Galiza, na mais extensa significação desta palavra, num grande senhorio, cujo governo entregou a um membro da sua família, ao qual dera o governo de Coimbra e Santarém logo depois da conquista desta, removendo para o distrito de Arouca Martim Moniz e sujeitando ao novo conde o governador de Santarém, Soeiro Mendes.


O príncipe a quem Afonso deu o governo desta importante parte da monarquia era um estrangeiro, mas estrangeiro, ilustre por sangue, que viera naturalizar-se na Espanha, arriscando a vida pelo Cristianismo e pela monarquia leonesa na terrível luta que durava havia séculos sobre o solo ensanguentado da Península. Raymond, Reimondo ou Raimundo, filho de Guilherme, conde da Borgonha, tinha vindo a Espanha tempos antes, porventura nos fins de 1079 ou princípios de 1080, em companhia da rainha Constância, segunda mulher de Afonso VI, ou no ano de 1086, em que, segundo o testemunho da Crónica Lusitana ou dos Godos, muitos franceses passaram os Pirenéus para a batalha de Zalaca, ou, finalmente, ainda depois, como outros pretendem. O rei de Leão desposou a única filha legítima que tinha, Urraca, havida da rainha Constância, com o conde borgonhês, posto que ela apenas saísse da infância, e encarregou-o do governo de toda a parte ocidental da monarquia e da defesa daquelas fronteiras. A infanta, cuja idade nessa época (1094) não podia exceder a treze ou catorze anos, foi entregue a Raimundo, mas, segundo parece, debaixo da tutela e guarda do presbítero Pedro, mestre ou aio da jovem princesa.


Além de Raimundo, outro nobre cavaleiro francês passara à Espanha naquela época. Era Henrique, seu primo, de ascendência não menos ilustre que ele. Roberto, chamado o Idoso, filho de Roberto II e irmão de Henrique II rei de França, recebera a investidura do ducado de Borgonha e, casando com Helie ou Alice, filha do senhor de Semur, tivera dela quatro filhos varões, Hugo, Henrique, Roberto e Simão. Hugo, o mais velho, foi morto numa batalha sem deixar filhos. O segundo-génito, Henrique, teve de Sibila, sua mulher (filha de Reinaldo, senhor da Borgonha condado, e irmã do conde Guilherme I, pai de Raimundo) quatro filhos, Hugo, Eudo, Roberto e Henrique. Era este último que também se achava por esse tempo na Espanha e que provavelmente veio com Raimundo, seu primo co-irmão. Buscavam, porventura, fortuna na Península, onde no meio de contínuas guerras e conquistas se oferecia amplo teatro para a ambição e para o desejo de adquirir glória. Do mesmo modo que as acções de seu primo, as de Henrique, nos primeiros tempos em que residiu aquém dos Pirenéus, jazem sepultadas em profundas trevas, se é que não foi o principal motivo da sua vinda, como há quem o pretenda acerca de Raimundo, procurar um consórcio ilustre por intervenção da rainha Constância, sua tia. Em tal caso essa vinda seria pouco anterior à época em que o obteve. É certo, porém, que no princípio de 1095 Henrique estava casado com Tarasia ou Tareja (Teresa), filha bastarda de Afonso VI, que, além de Elvira ou Geloira, aquele príncipe houvera de uma nobre dama chamada Ximena Nunes, ou Muniones. A escasseza de memórias e documentos divulgados sobre a história do nosso país na última década do século XI apenas consente uma luz frouxa e duvidosa, que mal deixa descobrir o fio que prende os sucessos daquela época. O que parece resultar da comparação atenta dos diversos monumentos que nos restam é que Henrique começou a governar o território portucalense ainda, talvez, nos fins de 1094, ou princípios de 1095, e com certeza, pelo menos o distrito de Braga, nos primeiros meses deste último ano, como conde dependente de seu primo. Por mais curto que suponhamos esse período de sujeição; por mais raros que sejam os vestígios de tal sujeição, ela é indubitável.


Todavia, em breve a porção dos domínios de Raimundo, desde as margens do Minho até ao Tejo, foi desmembrada definitivamente da Galiza para constituir um vasto distrito à parte regido pelo conde Henrique. Os sucessos militares ocorridos na Primavera de 1095 moveram, talvez, Afonso VI a estabelecer esta divisão, sem a qual era dificultoso fazer a guerra na fronteira com energia, estando o centro do governo da província ocidental a mais de cem léguas das raias muçulmanas, muito além do rio Minho.

Vimos como Afonso VI dilatou as suas conquistas para o sul de Portugal no ano de 1093, tomando em poucas semanas Santarém, Lisboa e Sintra, lugares então os mais importantes da que hoje chamamos província da Estremadura. No ano, porém, de 1095 as coisas haviam, até certo ponto, mudado. O célebre Seir (o rex Cir das crónicas cristãs), general de Yusuf, tinha nos fins de 93 invadido os estados de Omar Ibn Alafttas, emir de Badajoz, cujos domínios compreendiam todo o Gharb ou Ocidente da Espanha muçulmana até à fronteira cristã. Iaborah (Évora), Chelb (Silves) e os outros lugares principais haviam aberto as portas aos almorávidas. Um historiador árabe diz que do mesmo modo Santarém e Lisboa lhes caíram nas mãos. Quanto a Santarém, o foral dado a esta povoação por Afonso VI em 1095 não indica de modo algum que ela houvesse sido perdida depois de 1093 e retomada de novo. Quanto, porém, a Lisboa, não só a falta de um diploma análogo, passado a favor dela, torna provável a tradição árabe, mas também os sucessos posteriores parece confirmarem-na. 

Em Fevereiro de 1094, Badajoz tinha-se rendido aos almorávidas. Submetido o Gharb, Seir dirigira as suas armas vitoriosas contra o Cid Rui Dias, que os árabes andaluzes tinham tomado por capitão e que cercara Valência. Entretanto o conde Raimundo descera da Galiza e viera a Coimbra acompanhado dos seus cabos de guerra e de uma lustrosa companha de cavaleiros. Pouco depois de acabar no Gharb a dinastia dos Benu Alafttas, o conde residia naquela cidade, convocando, segundo parece, os homens de armas e peões para a presúria, como então se chamavam as entradas que tinham por objecto, não só invadir o território inimigo, mas também estabelecer-se definitivamente aí. De Coimbra a hoste cristã marchou, provavelmente na Primavera seguinte, para as imediações de Lisboa, perto da qual assentou os seus arraiais. Os sarracenos, unindo forças de todos os lados e, porventura, ajudados por algumas tropas almorávidas, que lhes houvesse enviado Seir, cercaram o conde e, rompendo-lhe o campo, o desbarataram, ficando uma grande parte dos seus soldados mortos ou cativos. Resulta deste sucesso que os cristãos tinham já perdido o distrito de Lisboa, aliás seria incompreensível a vinda do conde com um exército a esta espécie de península fechada entre a ampla baía do Tejo e o oceano, da qual não podia fazer entradas e correrias nas províncias muçulmanas ao sul do rio.

Este desbarato de Raimundo concorreu talvez em parte para que todo o território desde a margem esquerda do Minho até Santarém se desmembrasse inteiramente da Galiza. Se não supusermos devido exclusivamente o consórcio de Henrique à influência da rainha Constância, a concessão de uma filha própria, bem que ilegítima, feita por Afonso VI a um simples cavaleiro, posto que ilustre, parece provar que ele merecera tal distinção pelos seus méritos pessoais e por serviços feitos na guerra, serviços que vagamente lhe atribui um seu contemporâneo. Fossem, porém, estes ou outros os motivos que guiaram o rei de Leão e Castela, é certo que no ano de 1097 Henrique dominava todo o território do Minho ao Tejo, e os estados de Raimundo tinham recuado por esta parte para as fronteiras meridionais da moderna Galiza.

Casando sua filha Teresa com Henrique, Afonso VI não se limitou a entregar a este o governo da província portucalense, com a qual já frequentemente se confunde nos monumentos dessa época o distrito conimbriense e o de Santarém, debaixo do nome comum de Portugal. As propriedades regalengas, isto é, do património do rei e da coroa, passaram a ser possuídas como bens próprios e hereditários pelos dois consortes. Assim, o cavaleiro francês, que viera buscar na Espanha uma fortuna mais brilhante do que poderia esperar na pátria, viu realizadas as suas esperanças, porventura além daquilo que imaginara.

Os príncipes árabes da Andaluzia tinham-se ligado contra os almorávidas depois que, pelas conquistas de Badajoz, estes se achavam senhores de toda a Espanha muçulmana, à excepção do amirado de Saragoça, cujo emir, Ahmed Abu Jafar, soubera a tempo buscar a aliança de Yusuf. O célebre Cid capitaneava, como dissemos, os andaluzes coligados. Valência, cercada por eles, rendeu-se e por intervenção de Rui Dias veio, enfim, a reconhecer o senhorio de Afonso VI. Seir não estava entretanto ocioso: equipando uma poderosa frota, sujeitara aos almorávidas as ilhas Baleares, dependentes até então dos emires de Valência e de Denia. Avisado pelo váli de Almeria da sorte de Valência, o general berbere dirigiu para ali a sua armada com muitas tropas de desembarque e cercou-a por mar e terra.


O Cid era já falecido, e os cristãos aliados dos árabes andaluzes, depois de um prolongado cerco, em que a perda de ambas as partes parece ter sido avultada, abandonaram finalmente Valência aos almorávidas (1102). A tomada desta importante cidade acabou com as resistências dos muçulmanos espanhóis ao domínio de Yusuf, e este, voltando a Espanha em 1103, só tratou de associar ao governo seu filho Ali sem intentar nenhuma campanha importante contra os cristãos, contentando-se com ordenar se deixasse a cargo dos naturais a guarda das fronteiras e com tomar diversas providências para a defensa e bom governo do território da Península sujeito ao seu império.

O conde de Portugal, tendo feito no Inverno de 1097 a 1098 uma viagem à Galiza para visitar o célebre templo de Santiago, achava-se em 1100 e ainda em 1101 na corte de Afonso VI. Posto que a história das empresas do rei de Leão contra os sarracenos e das represálias destes contra ele nos dois últimos anos do século XI seja assaz obscura, todavia consta que em 1097 ele entrou em Consuegra e que os sarracenos, fazendo uma entrada para o lado de Toledo, a recuperaram na ocasião em que regressavam. Daqui se vê que o rei cristão aproveitava a ausência de Seir, entretido com a conquista das Baleares, para assolar o território inimigo, e que os muçulmanos não cessavam de fazer entradas pelas fronteiras dos cristãos. Os chefes sarracenos Ali Ibnul-Haj e Ibn Sakun tinham avançado com um corpo de tropas para Castela e, segundo todas as probabilidades, o conde foi enviado a repeli-los. Atravessando, pois, as serras chamadas Montes de Toledo, Henrique encontrou os inimigos nas imediações de Ciudad Real, perto da qual está assentada a povoação de Malagón. Travaram peleja. Foi esta, como se colhe das palavras de um historiador árabe, disputada e sanguinolenta. «Pelejaram-se aí», diz ele na sua linguagem enfática, «as batalhas do extermínio.» Mas por fim o conde teve de abandonar o campo aos seus adversários.

Um grande acontecimento, cujas consequências foram imensas para o progresso da civilização, preocupava por este tempo os ânimos em toda a Europa e em grande parte da Ásia. A primeira cruzada, promovida pelo eremita Pedro e pelas eloquentes palavras de Urbano II no Concílio de Clermont, tinha arrojado para a Síria cem mil homens de armas seguidos de uma turba inumerável de indivíduos de todas as condições e de ambos os sexos. Depois de longa viagem em que a miséria, os vícios, as doenças e a guerra reduziram a bem pequeno número essa multidão desordenada, Jerusalém caíra nas mãos dos cruzados, e os guerreiros que não se tinham armado para a conquista dos lugares santos puderam ir ainda, após os mais fervorosos, ajudar a defender a monarquia cristã fundada na Palestina e ganhar aí a glória e a opulência ou a remissão de passados crimes, remissão que a Igreja concedia com mão larga aos que, pondo sobre o ombro esquerdo a cruz vermelha, se votavam à trabalhosa e arriscada peregrinação do ultramar. Seis anos depois da primeira invasão, em 1101, uma segunda cruzada partiu para o Oriente, cujos sucessos desastrados não impediram que novos peregrinos se fossem precipitar naquele vasto sorvedouro de quantos homens de fé viva tinha a Europa e também de quantas fezes de corrupção, cobiça e ferocidade havia nela. Para as almas crentes ou devoradas de remorsos, a Síria era a piscina da reabilitação moral: para os ambiciosos e devassos, fonte inesgotável de fortuna e de deleites. As paixões boas e más ligavam-se num pensamento único - o demandar o Oriente; porque tanto a vida como a morte ofereciam ao que partia uma perspectiva de felicidade.

Os espíritos receberam na Espanha o impulso geral da Europa; mas as circunstâncias peculiares deste país opunham-se a que esse impulso produzisse os mesmos resultados. Envolvidos na luta com os sarracenos, contra os quais mal bastavam todas as forças cristãs da Península, os espanhóis não puderam associar-se a nenhuma das duas primeiras cruzadas, salvo um ou outro cavaleiro, de cujos nomes às vezes se encontram vestígios nas memórias daquelas longínquas expedições. Todavia, depois da segunda cruzada o entusiasmo pela peregrinação da Terra Santa adquiriu maior força. O exemplo dos bispos, alguns dos quais a empreenderam por aquele tempo, além de muitos outros membros do clero, contribuíra em grande parte para excitar esse aumento de mal entendida piedade. Roma, que então era, por assim nos exprimirmos, o foco da inteligência humana no meio de nações ainda semi-bárbaras e que vigiava pela segurança da cristandade, mostrou-se esclarecida e prudente, como ela o sabia ser quando o próprio interesse não a deslumbrava, proibindo essas viagens aos espanhóis. O papa Pascoal II por duas vezes ordenou expressamente que ninguém destas partes as intentasse, e àqueles que seguiam caminho por terra para Jerusalém ou iam embarcar na Itália constrangia-os a retrocederem, impondo nas suas bulas silêncio aos que na pátria ousassem caluniá-los ou infamá-los por não haverem cumprido o começado propósito.

O conde Henrique não se esquivou à influência da grande ideia que agitava a Europa. Como já dissemos, depois da morte do Cid e da perda de Valência a guerra com os sarracenos tornou-se menos violenta. Yusuf, voltando à Mauritânia depois da sua última vinda à Península, pouco sobreviveu (1106), e seu filho Abul-Hassan Ali, entretido em firmar o próprio domínio na África, deixou a Espanha num estado, senão de repouso, porque algumas memórias há de acontecimentos militares por estes tempos, ao menos comparativamente pacífica. Por todo o período decorrido de 1102 até 1106, foi o maior fervor de peregrinações à Palestina, e o exemplo do próprio primaz da Igreja espanhola, o arcebispo de Toledo, Bernardo, dirigindo-se a Jerusalém na Primavera de 1104, prova quão vulgar se tornara então esta romagem. Tinha-o precedido o conde de Portugal; porque a sua partida para o Oriente nos primeiros meses de 1103 é hoje incontestável. Nessa viagem provavelmente o acompanhou Maurício, bispo de Coimbra, depois tão célebre pelas suas pretensões à tiara papal e que por esta época consta ter partido para a Síria. Presume, e parece-nos que com razão, um dos nossos mais judiciosos historiadores que o conde aproveitaria para a sua passagem a armada genovesa que em 1104 ajudou Balduíno I à conquista de Acre.

As acções do conde no Oriente são obscuras, e todas as conjecturas a este respeito seriam infundadas. Unicamente há certeza de que ele tinha voltado a Portugal em 1105 e vivia na corte de Afonso VI em 1106. Nos anos seguintes, até à morte deste príncipe, Henrique aparece residindo, ora junto dele, ora em Coimbra, onde se ocupava em administrar o país e em restaurar, segundo o rei lhe ordenava, as povoações ermas ou destruídas pelas invasões sucessivas de cristãos e muçulmanos.

Até este tempo o génio e o carácter do conde de Portugal ainda se não revelaram aos olhos dos que estudam os sucessos daquela época: é um vulto de guerreiro que se confunde com os de tantos outros que então sabiam elevar-se pela sua actividade e valor no meio de uma existência de contínuos combates. Os dotes que o distinguem são os que nele deviam imprimir a educação própria daquelas eras semi-bárbaras e o hábito da guerra, isto é, o esforço e a perícia militar: e ainda estes mais os podemos deduzir da alta situação a que o vemos remontado que dessas poucas acções de certa importância que dele nos conserva a história. Nos últimos seis anos, porém, da sua vida os lineamentos do carácter do conde tendem a desenhar-se um pouco melhor, e o pensamento de fugir à sujeição real, pensamento aliás muito comum entre os senhores mais poderosos da Península, é prosseguido pelo conde de tal arte que descobre nele, ainda melhor que as de bom soldado, as qualidades de político.

O conde Raimundo, casado com uma filha primogénita e legítima de Afonso VI, possuidor de mais importantes domínios que outro qualquer conde da monarquia leonesa, muitos dos quais lhe eram sujeitos, considerava necessariamente a coroa como herança que a morte do sogro lhe devia trazer e que, até, lhe fora prometida. Os grandes pensavam por certo do mesmo modo; ao menos os actos praticados por eles depois do falecimento de Raimundo provam que a crença recebida, e com razão, era que, fosse quem fosse o marido de D. Urraca, esse teria de ser o verdadeiro rei de Leão e Castela. Uma circunstância, porém, viera turbar ultimamente as ambiciosas esperanças do conde da Galiza. Afonso tivera de Zaida, filha de Ibn Abbad, rei de Sevilha, a qual uns pretendem considerar como sua concubina, outros como sua mulher legítima, um filho varão, o infante Sancho. Os sentimentos da natureza e as considerações da política persuadem o que, segundo o testemunho de Rodrigo de Toledo, o próprio rei confessara depois da morte do infante, isto é, que o tinha na conta de seu único herdeiro. Afonso começara a manifestar estas intenções ainda na meninice de Sancho, fazendo-o confirmar os diplomas juntamente com D. Urraca e dando-lhe desde logo o principado de Toledo. Por esse motivo se tornam prováveis as desinteligências de Raimundo com o sogro, de que aparece a tradição nas crónicas desses tempos.



Da solidão de um mosteiro situado na Borgonha um velho monge influía então nos assuntos mais importantes da Europa. Cluny era esse mosteiro; Hugo esse monge. Durante sessenta anos, Hugo regera aquele célebre cenóbio, cujos chefes chegaram na sua soberba a considerarem-se como papas do monaquismo, intitulando-se «abades dos abades». Foi Hugo quem lançou os fundamentos deste poder e grandeza. Ele era o homem em cujo seio Gregório VII, pontífice a quem, fosse qual fosse a sua índole, se não pode negar o título de grande, ia depositar as próprias mágoas e esperanças. Urbano II foi seu monge e discípulo. Os reis e senhores solicitavam-lhe a amizade e buscavam-no para juiz das suas contendas. De todos os príncipes que mostravam maior veneração e afecto a Cluny e ao seu poderoso abade nenhum, talvez, igualou Afonso VI; e porventura, o acolhimento que Raimundo e Henrique encontraram no rei espanhol viria em parte de serem ambos parentes de Hugo, a quem Afonso dava o título de pai e a cujo mosteiro desde o tempo de Fernando Magno a monarquia leonesa pagava um tributo voluntário a título de censo. Hugo, que, afora esses meios de influência na Península, via vários membros da sua congregação regendo boa parte das sés episcopais destas províncias, e entre eles Bernardo, o primaz de Toledo, desejaria por certo que Raimundo e Henrique, borgonheses como ele, seus parentes e afiliados ao Mosteiro de Cluny, viessem a herdar os vastos estados de Afonso VI. A resolução, pois, deste príncipe acerca da sucessão devia desagradar altamente ao velho beneditino, e é provável que ele empregasse a sua influência no ânimo do rei para o demover do formado propósito. Se assim, porém, passou na realidade, o afecto que esse príncipe consagrava ao único filho varão que a Providência lhe concedera foi mais forte que as insinuações de Hugo.

Então, segundo todas as probabilidades, se urdiu uma trama oculta debaixo da direcção do abade de Cluny para anular depois da morte do monarca a pretendida sucessão do infante Sancho. Pelos fins de 1106 ou princípios de 1107 um tratado secreto se jurava entre Raimundo e Henrique nas mãos de Dalmácio Gevet, emissário de Hugo, que ditara as condições desse pacto. Eram estas que os dois condes lealmente respeitariam e defenderiam a vida e a liberdade um do outro; que Henrique, depois da morte do sogro, sustentaria fielmente o domínio de Raimundo como seu único senhor sobre todos os estados do mesmo rei contra quem quer que fosse, correndo pronto a ajudá-lo a adquiri-los; que, no caso de lhe caírem primeiramente nas mãos os tesouros de Toledo, ficaria com um terço e ceder-lhe-ia dois: que Raimundo, pela sua parte, depois de falecer o rei, daria a Henrique a cidade de Toledo com o seu distrito, sob condição que por esse território que assim lhe concedia ficasse sujeito a ele, Raimundo, e o tivesse como dependente dele, e que depois de o receber lhe entregasse todas as terras de Leão e de Castela; que, se alguém lhes quisesse resistir ou fazer-lhes injúria, lhe fizessem ambos guerra ou a começasse logo qualquer deles, até que o território fosse entregue a um ou a outro, e Raimundo desse a Henrique o que lhe prometera; que, se Raimundo obtivesse primeiramente o tesouro de Toledo, guardaria para si duas partes, dando a outra a Henrique. Tal era a substância do tratado. Parece, porém, que o conde de Portugal receava lhes fosse demasiado dificultoso assenhorearem-se da nova capital da monarquia ou que esta tornasse a cair em poder dos sarracenos; porque se acrescentou ao pacto um como artigo adicional, em que Raimundo afiançava nas mãos do enviado de Cluny que, no caso de não poder dar Toledo a seu primo, lhe daria a Galiza, não faltando ele em ajudá-lo a apoderar-se de Leão e Castela, efectuando-se a nova condição logo que Raimundo estivesse pacífico senhor de tudo, e entregando-lhe Henrique as terras de Leão e Castela que estivessem em seu poder, tanto que fosse metido de posse da Galiza.

Ainda que a letra deste pacto sobre a sucessão da coroa indique bem claramente a menor importância que o conde de Portugal se atribuía em relação ao da Galiza, é evidente que, se tal tratado chegasse a execução, a perspectiva do novo estado que Henrique intentava fundar era mais lisonjeira no futuro que a dos que Raimundo ambicionava para si. Enquanto Leão e Castela ficavam limitados ao oriente por Aragão ou pelos territórios muçulmanos que esta monarquia devorava pouco a pouco, o conde de Portugal dominaria ao sul quase toda a fronteira dos sarracenos e achar-se-ia como colocado na vanguarda da reacção cristã. Era sem dúvida esta uma situação mais arriscada; mas a conquista do Meio-Dia da Espanha facilitava-se-lhe grandemente; porque, senhor dos distritos contíguos à margem direita do Tejo, desde quase a foz do rio até quase a sua origem, e acrescentados os próprios recursos com esse novo senhorio que devia receber de Raimundo e com uma porção dos tesouros de Afonso VI, poderia dilatar as invasões pelo Gharb e pela Andaluzia, que exclusivamente confrontariam com os seus antigos e novos domínios.

Ou o segredo sobre o pacto dos dois condes não foi perfeitamente guardado, ou por algum acto externo eles deram indícios dos seus desígnios pouco ajustados pelos de Afonso VI. A acusação de se haver mostrado algum tanto rebelde ao sogro pesa sobre a memória de Henrique, e Raimundo decaiu por esse tempo da graça do rei, ainda que na ocasião da sua morte Afonso estava, segundo parece, congraçado com ele. A morte, com efeito, salteando o conde da Galiza no Outono de 1107, inutilizava a aliança dos dois primos e destruiu as esperanças que Henrique concebera de obter o domínio de Toledo. Não abandonou, todavia, o conde as suas ideias de engrandecimento e independência; os sucessos posteriores no-lo revelam; mas nos dois anos que decorreram entre o falecimento de Raimundo e o de Afonso VI (1107 a 1109) ele residiu quase sempre em Portugal na obediência do sogro, empenhado, talvez, nas correrias contra os sarracenos que era costume fazer todas as primaveras, a que estavam obrigados os homens de armas ou cavaleiros vilãos e que se conheciam pela denominação de fossado.

A enfermidade que conduziu Afonso VI à sepultura foi longa e agravada nos últimos meses pela desgraçada sorte de seu filho. Henrique havia concebido, como o pacto feito com Raimundo e os sucessos posteriores o provam, a atrevida ideia de ficar senhor por morte do monarca de uma parte dos seus estados. Falecido o conde da Galiza, a ambição dele, longe de enfraquecer, punha, talvez, ainda mais longe a mira. Poucos dias antes de expirar o monarca, Henrique foi persegui-lo no seu leito de morte. Ignoram-se até onde chegavam as pretensões do conde; mas sabe-se que ele saíra de Toledo furioso contra o sogro moribundo. Antes de morrer, Afonso declarou única herdeira da coroa sua filha Urraca, e tal foi por certo a causa da cólera de Henrique e a origem do audaz projecto que desde então formou de se apossar, não de uma parte, mas de toda a monarquia de Leão e Castela.


Apenas, porém, constou que o príncipe terror dos sarracenos não existia, estes cobraram novos brios. Os de Sintra, que reconheciam o senhorio do conde, quebraram imediatamente o jugo. Semelhante sucesso suscita a ideia de que os muçulmanos do distrito ao sul de Santarém, última povoação que provavelmente ficou por este lado em poder do rei de Leão e Castela desde o desbarato de Raimundo em 1065, inquietados pelas algaras ou entradas do conde, e por outro lado não tendo reconhecido o domínio dos almorávidas, como adiante veremos, se lhe fariam tributários para viverem em paz. Isto não passa, todavia, de uma conjectura deduzida principalmente dos sucessos posteriores; porque os monumentos relativos a estes dois anos do governo de Henrique só nos provam que residiu uma ou outra vez em Portugal. Rebelada Sintra, Henrique marchou contra esse castelo, que naquela época parece tinha uma importância pouco inferior à de Lisboa, e de novo o reduziu à sua obediência.

A morte de Afonso VI (Junho de 1109), pelas circunstâncias de que vinha acompanhada, tornou-se um sucesso gravíssimo para a Espanha cristã e foi, com razão, sentida como origem de largos males. O ceptro leonês, que deveria cair em mãos capazes de assegurarem as conquistas feitas por aquele célebre príncipe, ficava pertencendo à viúva do conde Raimundo. Da vasta herança que legava a sua filha, o rei falecido separara de certo modo a Galiza, declarando em sua vida que, no caso de D. Urraca passar a segundas núpcias, Afonso Raimundes, filho dela e seu neto, ficaria reinando nesta província. Contava o infante pouco mais de três anos quando Afonso VI expirou, e por isso à Galiza, como ao resto da monarquia, faltava um sucessor capaz de defender a integridade do território contra os cometimentos dos sarracenos e de conter a ousadia dos senhores poderosos, cujas antigas ideias de ambição, ou pelo menos de independência, a fraqueza do trono forçosamente havia de despertar.

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