By Anonymous [Public domain or Public domain], via Wikimedia Commons
Os
limites dos estados de Fernando Magno (Fernando I de Leão, nasceu por volta do ano 1016 e faleceu a 27 de Dezembro de 1065) haviam-se dilatado para o
ocidente da Península,
conquistadas sucessivamente Lamego, Viseu, Seia e Coimbra (1064). A
província da
Galiza, cuja fronteira variava continuamente segundo os cristãos
estendiam os seus domínios
por esta parte mais para o sul ou tinham de retroceder diante das
armas dos sarracenos,
muitas vezes vitoriosas, dilatou-se, enfim, permanentemente até o
Mondego. Coimbra,
que, não só pela sua antiguidade e grandeza relativa, mas ainda
mais por ser militarmente
como a chave do território encerrado entre este último rio e o
Douro, era uma
povoação importante, foi feita capital de um novo condado ou
distrito, cujo governo
o guerreiro príncipe confiou àquele que o incitara a prosseguir por
este lado as suas
brilhantes conquistas.
Antes
desta época, bem como as outras províncias da antiga monarquia
leonesa, a Galiza
era regida por diversos condes cujos territórios variavam em
extensão. Às vezes, estes
condes tinham debaixo da sua autoridade mais de um distrito; outras, eram sujeitos
a um conde superior ou vice-rei da província. Entre estes governos,
desde o meado
do século IX, aparece o distrito ou condado portucalense. Assim como
Coimbra era
a povoação mais notável sobre o Mondego, Portucale, situado junto
ao Douro, era no
século XI, pela sua situação vizinha da foz do rio, pela sua
antiguidade, que não só remontava
à época dos visigodos mas ainda ao tempo do domínio romano, e pela fortaleza
do sítio, cabeça e principal povoação de um território que
abrangia ao norte uma
parte do litoral da moderna província do Minho e ao sul as terras
que até o Vouga se
tinham sucessivamente conquistado.
Sesnando
ou Sisenando (falecido em 1091), filho de David, rico moçárabe da que hoje denominamos província
da Beira, senhor de Tentúgal e de outras terras no território de Coimbra, tinha sido
introduzido na corte de Sevilha no tempo de Abbad II al-Mu'tadid e, pelos seus talentos e importantes
serviços feitos ao príncipe sarraceno, chegara a ocupar o cargo de vizir no divã,
isto é, de ministro ou membro do supremo conselho do emir, que o
distinguia particularmente
entre os seus conselheiros. Sesnando tornou-se temido nas guerras com os
inimigos de Abbad II al-Mu'tadid; porque nas empresas que dirigia obtinha sempre
prósperos sucessos.
O motivo por que abandonou o emir de Sevilha para entrar no serviço
de Fernando
Magno ignora-se; mas o seu procedimento posterior persuade que alguma ofensa
recebida dos sarracenos a isso o instigara. Admitido na corte do rei
de Leão e Castela,
conseguiu convencê-lo das vantagens que obteria invadindo
o Ocidente
da antiga Lusitânia. O resultado da invasão justificou as previsões
de Sesnando,
e o rei de Leão retribuiu o bom serviço que o moçárabe lhe fizera
dando-lhe o
governo de um distrito constituído com as novas conquistas e com a
terra portucalense ao
sul do Douro, ao qual servia de limites, pelo oriente, a linha de
Lamego, Viseu e Seia,
e de fronteira, pelo sueste, o pendor setentrional da serra da
Estrela. Deste modo,
a parte do moderno Portugal ao norte do Mondego e do Alva estava
possuída pelos
cristãos quando Fernando I faleceu (1065). O distrito de Coimbra,
como dissemos, estendia-se do Douro ao Mondego, e o do Porto, desmembrada dele a terra de Santa
Maria (Feira),
dilatava-se para o norte e nascente, abrangendo talvez o Alto Minho e
para o oriente
ainda parte da província de Trás-os-Montes. Incluído até aí na
Galiza, o território
denominado nos documentos e crónicas dos séculos XI e XII
Portucale, Terra portucalensis,
começa então a figurar como província distinta, posto que outras
vezes pareça
continuar a ser considerado como porção da Galiza e, até,
tornar-se mais circunscrito,
o que tudo provinha da falta de limites permanentes nos diversos
condados ou governos em que se dividia o reino de Leão e Castela, e da diversa
importância que os
respectivos condes tinham na hierarquia administrativa, sendo umas vezes dependentes imediatamente do rei, outras, como já observamos,
de um conde superior, espécie
de vice-rei preposto ao regimento de uma província inteira.
Repartida
entre os três filhos de Fernando Magno a monarquia que ele tanto dilatara,
coube a Garcia a Galiza, abrangendo Portugal e as novas conquistas
até o Mondego.
Sesnando continuava a dominar o território de Coimbra, enquanto o
conde NunoMendes (Nuno II Mendes, sétimo e derradeiro conde de Portucale descendente da família de Vímara Peres) parece governava o do Porto. Ele pelo menos foi o cabeça de
uma rebelião
dos povos daquele distrito, os portucalenses, contra Garcia, que,
encontrando-se com
os levantados entre Braga e o rio Cávado, os destroçou, como noutra
parte se disse,
ficando morto o conde no campo da batalha (batalha de Pedroso a 18 de Janeiro de 1071, junto do Mosteiro de Tibães).
As
discórdias dos três irmãos fizeram passar sucessivamente a coroa
da Galiza da cabeça
de Garcia para a de Sancho, rei de Castela, e, afinal, para a de
Afonso de Leão, que
juntou outra vez todos os estados de seu pai. Entretido com guerras
nas províncias centrais
da Península até se apossar de Toledo, ele deixou tranquilos por
alguns anos os sarracenos
que estanciavam ao sul de Coimbra, aplicando-se depois da conquista
da antiga
capital da Espanha, a restaurar as povoações das fronteiras vizinhas
do Douro.
Porventura
entre Sesnando e os muçulmanos limítrofes alguns recontros haveria, segundo
parece indicá-lo o foral dado a Coimbra por Afonso VI, mas as
correrias e entradas
dos cristãos no Ocidente da Espanha só prosseguiram depois da morte
do conde
moçárabe, sucedida nos fins de 1091.
Os
filhos de Fernando I tinham respeitado o homem a quem este príncipe
confiara o
regimento e defesa do território chamado então conimbricense.
Sesnando serviu lealmente
até o seu último dia a causa da monarquia cristã, que ele
abraçara, e ainda, segundo
parece, acompanhou Afonso VI em 1086 à infeliz batalha de Zalaca (próximo de Badajoz). Sua filha Elvira [Unisco Sisnandes casa com Gonçalo Trastamires pai de Mendo Gonçalves da Maia, senhor de Coimbra] casara com Martim Moniz, cavaleiro ilustre, a quem por morte do conde
foi dado o
governo de Coimbra. Afonso, entretanto, reparadas as forças da
monarquia, quase destruídas
na jornada de Zalaca, resolveu, inimigo sempre incansável dos
sarracenos, acometê-los
pelo Ocidente, passando com o seu exército na Primavera de 1093 para
o sul do Mondego e indo pôr sítio a Santarém. Esta povoação
importante, cuja expugnação
se julgava quase impossível, não tardou a cair-lhe nas mãos, e
dentro de poucos
dias igual sorte coube a Lisboa e a Sintra dilatando-se as fronteiras
até à foz do Tejo
com essas novas conquistas, cujo governo foi dado a Soeiro Mendes (1060 - 1108),
irmão de Gonçalo Mendes da Maia (1079 — Batalha de Ourique, 1155) , tão célebre depois com o nome de Lidador.
A
Galiza, incluindo debaixo desta denominação a extensa província
portugalense a
que naturalmente se devia considerar como incorporado o território
novamente adquirido
no Gharb muçulmano, constituía já um vasto estado remoto do centro
da monarquia
leonesa. Os condes que dominavam os distritos em que se dividia essa larga
extensão de terra ficavam assaz afastados da acção imediata do rei e eram
assaz poderosos para facilmente se possuírem das ideias de
independência e rebelião comuns naquele tempo, tanto entre os sarracenos como entre os cristãos. Afonso VI pôde evitar esse risco
convertendo toda a Galiza, na mais extensa significação desta
palavra, num grande
senhorio, cujo governo entregou a um membro da sua família, ao qual
dera o governo
de Coimbra e Santarém logo depois da conquista desta, removendo para
o distrito
de Arouca Martim Moniz e sujeitando ao novo conde o governador de Santarém,
Soeiro Mendes.
O
príncipe a quem Afonso deu o governo desta importante parte da
monarquia era
um estrangeiro, mas estrangeiro, ilustre por sangue, que viera
naturalizar-se na Espanha,
arriscando a vida pelo Cristianismo e pela monarquia leonesa na
terrível luta que
durava havia séculos sobre o solo ensanguentado da Península.
Raymond, Reimondo
ou Raimundo, filho de Guilherme, conde da Borgonha, tinha vindo a Espanha
tempos antes, porventura nos fins de 1079 ou princípios de 1080, em companhia
da rainha Constância, segunda mulher de Afonso VI, ou no ano de
1086, em que,
segundo o testemunho da Crónica Lusitana ou dos Godos, muitos
franceses passaram
os Pirenéus para a batalha de Zalaca, ou, finalmente, ainda depois,
como outros
pretendem. O rei de Leão desposou a única filha legítima que
tinha, Urraca, havida
da rainha Constância, com o conde borgonhês, posto que ela apenas
saísse da infância,
e encarregou-o do governo de toda a parte ocidental da monarquia e da defesa
daquelas fronteiras. A infanta, cuja idade nessa época (1094) não
podia exceder
a treze ou catorze anos, foi entregue a Raimundo, mas, segundo
parece, debaixo da tutela e guarda do presbítero Pedro, mestre ou
aio da jovem princesa.
Além
de Raimundo, outro nobre cavaleiro francês passara à Espanha
naquela época.
Era Henrique, seu primo, de ascendência não menos ilustre que ele.
Roberto, chamado
o Idoso, filho de Roberto II e irmão de Henrique II rei de França,
recebera a investidura
do ducado de Borgonha e, casando com Helie ou Alice, filha do senhor
de Semur,
tivera dela quatro filhos varões, Hugo, Henrique, Roberto e Simão.
Hugo, o mais
velho, foi morto numa batalha sem deixar filhos. O segundo-génito,
Henrique, teve de
Sibila, sua mulher (filha de Reinaldo, senhor da Borgonha condado, e
irmã do conde Guilherme
I, pai de Raimundo) quatro filhos, Hugo, Eudo, Roberto e Henrique.
Era este último
que também se achava por esse tempo na Espanha e que provavelmente
veio com
Raimundo, seu primo co-irmão. Buscavam, porventura, fortuna na
Península, onde
no meio de contínuas guerras e conquistas se oferecia amplo teatro
para a ambição e
para o desejo de adquirir glória. Do mesmo modo que as acções de
seu primo, as de Henrique,
nos primeiros tempos em que residiu aquém dos Pirenéus, jazem
sepultadas em
profundas trevas, se é que não foi o principal motivo da sua vinda,
como há quem o pretenda
acerca de Raimundo, procurar um consórcio ilustre por intervenção
da rainha Constância,
sua tia. Em tal caso essa vinda seria pouco anterior à época em que
o obteve.
É certo, porém, que no princípio de 1095 Henrique estava casado
com Tarasia ou
Tareja (Teresa), filha bastarda de Afonso VI, que, além de Elvira ou
Geloira, aquele príncipe
houvera de uma nobre dama chamada Ximena Nunes, ou Muniones. A escasseza
de memórias e documentos divulgados sobre a história do nosso país
na última
década do século XI apenas consente uma luz frouxa e duvidosa, que
mal deixa descobrir
o fio que prende os sucessos daquela época. O que parece resultar da comparação
atenta dos diversos monumentos que nos restam é que Henrique começou
a governar
o território portucalense ainda, talvez, nos fins de 1094, ou
princípios de 1095, e
com certeza, pelo menos o distrito de Braga, nos primeiros meses
deste último ano, como
conde dependente de seu primo. Por mais curto que suponhamos esse
período de sujeição;
por mais raros que sejam os vestígios de tal sujeição, ela é
indubitável.
Todavia,
em breve a porção dos domínios de Raimundo, desde as margens do
Minho até ao
Tejo, foi desmembrada definitivamente da Galiza para constituir um
vasto distrito à parte
regido pelo conde Henrique. Os sucessos militares ocorridos na
Primavera de 1095
moveram, talvez, Afonso VI a estabelecer esta divisão, sem a qual
era dificultoso fazer
a guerra na fronteira com energia, estando o centro do governo da
província ocidental
a mais de cem léguas das raias muçulmanas, muito além do rio
Minho.
Vimos
como Afonso VI dilatou as suas conquistas para o sul de Portugal no
ano de
1093, tomando em poucas semanas Santarém, Lisboa e Sintra, lugares
então os mais importantes
da que hoje chamamos província da Estremadura. No ano, porém, de
1095 as
coisas haviam, até certo ponto, mudado. O célebre Seir (o rex Cir
das crónicas cristãs),
general de Yusuf, tinha nos fins de 93 invadido os estados de Omar
Ibn Alafttas,
emir de Badajoz, cujos domínios compreendiam todo o Gharb ou
Ocidente da Espanha
muçulmana até à fronteira cristã. Iaborah (Évora), Chelb
(Silves) e os outros lugares
principais haviam aberto as portas aos almorávidas. Um historiador
árabe diz que
do mesmo modo Santarém e Lisboa lhes caíram nas mãos. Quanto a
Santarém, o foral
dado a esta povoação por Afonso VI em 1095 não indica de modo
algum que ela houvesse
sido perdida depois de 1093 e retomada de novo. Quanto, porém, a
Lisboa, não
só a falta de um diploma análogo, passado a favor dela, torna
provável a tradição árabe,
mas também os sucessos posteriores parece confirmarem-na.
Em
Fevereiro de 1094,
Badajoz tinha-se rendido aos almorávidas. Submetido o Gharb, Seir
dirigira as suas
armas vitoriosas contra o Cid Rui Dias, que os árabes andaluzes
tinham tomado por capitão
e que cercara Valência. Entretanto o conde Raimundo descera da
Galiza e viera a
Coimbra acompanhado dos seus cabos de guerra e de uma lustrosa
companha de cavaleiros.
Pouco depois de acabar no Gharb a dinastia dos Benu Alafttas, o conde residia
naquela cidade, convocando, segundo parece, os homens de armas e
peões para a presúria,
como então se chamavam as entradas que tinham por objecto, não só
invadir o território
inimigo, mas também estabelecer-se definitivamente aí. De Coimbra a
hoste cristã
marchou, provavelmente na Primavera seguinte, para as imediações de
Lisboa, perto
da qual assentou os seus arraiais. Os sarracenos, unindo forças de
todos os lados e, porventura,
ajudados por algumas tropas almorávidas, que lhes houvesse enviado
Seir, cercaram
o conde e, rompendo-lhe o campo, o desbarataram, ficando uma grande
parte dos
seus soldados mortos ou cativos. Resulta deste sucesso que os
cristãos tinham já perdido
o distrito de Lisboa, aliás seria incompreensível a vinda do conde
com um exército
a esta espécie de península fechada entre a ampla baía do Tejo e o
oceano, da qual
não podia fazer entradas e correrias nas províncias muçulmanas ao
sul do rio.
Este
desbarato de Raimundo concorreu talvez em parte para que todo o
território desde
a margem esquerda do Minho até Santarém se desmembrasse
inteiramente da Galiza.
Se não supusermos devido exclusivamente o consórcio de Henrique à
influência da
rainha Constância, a concessão de uma filha própria, bem que
ilegítima, feita por Afonso
VI a um simples cavaleiro, posto que ilustre, parece provar que ele
merecera tal distinção
pelos seus méritos pessoais e por serviços feitos na guerra,
serviços que vagamente
lhe atribui um seu contemporâneo. Fossem, porém, estes ou
outros os motivos
que guiaram o rei de Leão e Castela, é certo que no ano de 1097
Henrique dominava
todo o território do Minho ao Tejo, e os estados de Raimundo tinham
recuado por
esta parte para as fronteiras meridionais da moderna Galiza.
Casando
sua filha Teresa com Henrique, Afonso VI não se limitou a entregar a este
o governo da província portucalense, com a qual já frequentemente
se confunde nos monumentos
dessa época o distrito conimbriense e o de Santarém, debaixo do
nome comum
de Portugal. As propriedades regalengas, isto é, do património do
rei e da coroa, passaram
a ser possuídas como bens próprios e hereditários pelos dois
consortes. Assim, o
cavaleiro francês, que viera buscar na Espanha uma fortuna mais
brilhante do que poderia
esperar na pátria, viu realizadas as suas esperanças, porventura
além daquilo que
imaginara.
Os
príncipes árabes da Andaluzia tinham-se ligado contra os
almorávidas depois que,
pelas conquistas de Badajoz, estes se achavam senhores de toda a
Espanha muçulmana,
à excepção do amirado de Saragoça, cujo emir, Ahmed Abu Jafar,
soubera a
tempo buscar a aliança de Yusuf. O célebre Cid capitaneava, como
dissemos, os andaluzes
coligados. Valência, cercada por eles, rendeu-se e por intervenção
de Rui Dias
veio, enfim, a reconhecer o senhorio de Afonso VI. Seir não estava
entretanto ocioso:
equipando uma poderosa frota, sujeitara aos almorávidas as ilhas
Baleares, dependentes
até então dos emires de Valência e de Denia. Avisado pelo váli de
Almeria da
sorte de Valência, o general berbere dirigiu para ali a sua
armada com muitas tropas
de desembarque e cercou-a por mar e terra.
O
Cid era já falecido, e os cristãos aliados dos árabes andaluzes,
depois de um prolongado cerco, em que a perda de ambas as partes parece ter sido avultada,
abandonaram finalmente
Valência aos almorávidas (1102). A tomada desta importante cidade acabou
com as resistências dos muçulmanos espanhóis ao domínio de Yusuf,
e este, voltando
a Espanha em 1103, só tratou de associar ao governo seu filho Ali
sem intentar nenhuma
campanha importante contra os cristãos, contentando-se com ordenar
se deixasse
a cargo dos naturais a guarda das fronteiras e com tomar diversas
providências para
a defensa e bom governo do território da Península sujeito ao
seu império.
O
conde de Portugal, tendo feito no Inverno de 1097 a 1098 uma viagem à
Galiza para visitar
o célebre templo de Santiago, achava-se em 1100 e ainda em 1101 na
corte de Afonso
VI. Posto que a história das empresas do rei de Leão contra os
sarracenos e das represálias
destes contra ele nos dois últimos anos do século XI seja assaz
obscura, todavia
consta que em 1097 ele entrou em Consuegra e que os sarracenos,
fazendo uma entrada
para o lado de Toledo, a recuperaram na ocasião em que regressavam.
Daqui se vê
que o rei cristão aproveitava a ausência de Seir, entretido com a
conquista das Baleares,
para assolar o território inimigo, e que os muçulmanos não
cessavam de fazer entradas
pelas fronteiras dos cristãos. Os chefes sarracenos Ali Ibnul-Haj e
Ibn Sakun tinham
avançado com um corpo de tropas para Castela e, segundo todas as probabilidades,
o conde foi enviado a repeli-los. Atravessando, pois, as serras
chamadas Montes
de Toledo, Henrique encontrou os inimigos nas imediações de Ciudad
Real, perto
da qual está assentada a povoação de Malagón. Travaram peleja.
Foi esta, como se colhe
das palavras de um historiador árabe, disputada e sanguinolenta.
«Pelejaram-se aí»,
diz ele na sua linguagem enfática, «as batalhas do extermínio.»
Mas por fim o conde
teve de abandonar o campo aos seus adversários.
Um
grande acontecimento, cujas consequências foram imensas para o
progresso da
civilização, preocupava por este tempo os ânimos em toda a Europa
e em grande parte
da Ásia. A primeira cruzada, promovida pelo eremita Pedro e pelas
eloquentes palavras
de Urbano II no Concílio de Clermont, tinha arrojado para a Síria
cem mil homens
de armas seguidos de uma turba inumerável de indivíduos de todas as condições
e de ambos os sexos. Depois de longa viagem em que a miséria, os
vícios, as doenças
e a guerra reduziram a bem pequeno número essa multidão
desordenada, Jerusalém caíra
nas mãos dos cruzados, e os guerreiros que não se tinham armado
para a conquista
dos lugares santos puderam ir ainda, após os mais fervorosos, ajudar
a defender
a monarquia cristã fundada na Palestina e ganhar aí a glória e a
opulência ou a remissão
de passados crimes, remissão que a Igreja concedia com mão larga
aos que, pondo
sobre o ombro esquerdo a cruz vermelha, se votavam à trabalhosa e
arriscada peregrinação
do ultramar. Seis anos depois da primeira invasão, em 1101, uma
segunda cruzada
partiu para o Oriente, cujos sucessos desastrados não impediram que
novos peregrinos
se fossem precipitar naquele vasto sorvedouro de quantos homens de fé
viva tinha
a Europa e também de quantas fezes de corrupção, cobiça e
ferocidade havia nela. Para
as almas crentes ou devoradas de remorsos, a Síria era a piscina da
reabilitação moral:
para os ambiciosos e devassos, fonte inesgotável de fortuna e de
deleites. As paixões
boas e más ligavam-se num pensamento único - o demandar o Oriente;
porque tanto
a vida como a morte ofereciam ao que partia uma perspectiva de
felicidade.
Os
espíritos receberam na Espanha o impulso geral da Europa; mas as circunstâncias
peculiares deste país opunham-se a que esse impulso produzisse os mesmos
resultados. Envolvidos na luta com os sarracenos, contra os quais mal
bastavam todas
as forças cristãs da Península, os espanhóis não puderam
associar-se a nenhuma das
duas primeiras cruzadas, salvo um ou outro cavaleiro, de cujos nomes
às vezes se encontram
vestígios nas memórias daquelas longínquas expedições. Todavia,
depois da segunda
cruzada o entusiasmo pela peregrinação da Terra Santa adquiriu
maior força. O exemplo
dos bispos, alguns dos quais a empreenderam por aquele tempo, além
de muitos
outros membros do clero, contribuíra em grande parte para excitar
esse aumento de
mal entendida piedade. Roma, que então era, por assim nos
exprimirmos, o foco da inteligência
humana no meio de nações ainda semi-bárbaras e que vigiava pela
segurança da
cristandade, mostrou-se esclarecida e prudente, como ela o sabia ser
quando o próprio interesse
não a deslumbrava, proibindo essas viagens aos espanhóis. O papa
Pascoal II por
duas vezes ordenou expressamente que ninguém destas partes as
intentasse, e àqueles
que seguiam caminho por terra para Jerusalém ou iam embarcar na
Itália constrangia-os
a retrocederem, impondo nas suas bulas silêncio aos que na pátria ousassem
caluniá-los ou infamá-los por não haverem cumprido o começado
propósito.
O
conde Henrique não se esquivou à influência da grande ideia que
agitava a Europa.
Como já dissemos, depois da morte do Cid e da perda de Valência a
guerra com os
sarracenos tornou-se menos violenta. Yusuf, voltando à Mauritânia
depois da sua última
vinda à Península, pouco sobreviveu (1106), e seu filho Abul-Hassan
Ali, entretido
em firmar o próprio domínio na África, deixou a Espanha num
estado, senão de
repouso, porque algumas memórias há de acontecimentos militares por
estes tempos, ao
menos comparativamente pacífica. Por todo o período decorrido de
1102 até 1106, foi
o maior fervor de peregrinações à Palestina, e o exemplo do
próprio primaz da Igreja espanhola,
o arcebispo de Toledo, Bernardo, dirigindo-se a Jerusalém na
Primavera de 1104,
prova quão vulgar se tornara então esta romagem. Tinha-o precedido
o conde de Portugal;
porque a sua partida para o Oriente nos primeiros meses de 1103 é
hoje incontestável.
Nessa viagem provavelmente o acompanhou Maurício, bispo de Coimbra, depois
tão célebre pelas suas pretensões à tiara papal e que por esta
época consta ter partido
para a Síria. Presume, e parece-nos que com razão, um dos nossos
mais judiciosos
historiadores que o conde aproveitaria para a sua passagem a armada genovesa
que em 1104 ajudou Balduíno I à conquista de Acre.
As
acções do conde no Oriente são obscuras, e todas
as conjecturas
a este respeito seriam infundadas. Unicamente há certeza de que ele
tinha voltado
a Portugal em 1105 e vivia na corte de Afonso VI em 1106. Nos anos
seguintes, até
à morte deste príncipe, Henrique aparece residindo, ora junto dele,
ora em Coimbra, onde
se ocupava em administrar o país e em restaurar, segundo o rei lhe
ordenava, as povoações
ermas ou destruídas pelas invasões sucessivas de cristãos e
muçulmanos.
Até
este tempo o génio e o carácter do conde de Portugal ainda se não
revelaram aos
olhos dos que estudam os sucessos daquela época: é um vulto de
guerreiro que se confunde
com os de tantos outros que então sabiam elevar-se pela sua
actividade e valor no
meio de uma existência de contínuos combates. Os dotes que o
distinguem são os que
nele deviam imprimir a educação própria daquelas eras semi-bárbaras
e o hábito da guerra,
isto é, o esforço e a perícia militar: e ainda estes mais os
podemos deduzir da alta
situação a que o vemos remontado que dessas poucas acções de
certa importância que
dele nos conserva a história. Nos últimos seis anos, porém, da sua
vida os lineamentos
do carácter do conde tendem a desenhar-se um pouco melhor, e o pensamento
de fugir à sujeição real, pensamento aliás muito comum entre os
senhores mais
poderosos da Península, é prosseguido pelo conde de tal arte que
descobre nele, ainda
melhor que as de bom soldado, as qualidades de político.
O
conde Raimundo, casado com uma filha primogénita e legítima de
Afonso VI, possuidor
de mais importantes domínios que outro qualquer conde da monarquia leonesa,
muitos dos quais lhe eram sujeitos, considerava necessariamente a
coroa como herança
que a morte do sogro lhe devia trazer e que, até, lhe fora prometida. Os grandes
pensavam por certo do mesmo modo; ao menos os actos praticados por
eles depois
do falecimento de Raimundo provam que a crença recebida, e com
razão, era que,
fosse quem fosse o marido de D. Urraca, esse teria de ser o
verdadeiro rei de Leão e
Castela. Uma circunstância, porém, viera turbar ultimamente as
ambiciosas esperanças do
conde da Galiza. Afonso tivera de Zaida, filha de Ibn Abbad, rei de
Sevilha, a qual uns
pretendem considerar como sua concubina, outros como sua mulher
legítima, um filho
varão, o infante Sancho. Os sentimentos da natureza e as
considerações da política persuadem
o que, segundo o testemunho de Rodrigo de Toledo, o próprio rei
confessara depois
da morte do infante, isto é, que o tinha na conta de seu único
herdeiro. Afonso começara
a manifestar estas intenções ainda na meninice de Sancho, fazendo-o confirmar
os diplomas juntamente com D. Urraca e dando-lhe desde logo o
principado de
Toledo. Por esse motivo se tornam prováveis as desinteligências
de Raimundo com o
sogro, de que aparece a tradição nas crónicas desses tempos.
Da
solidão de um mosteiro situado na Borgonha um velho monge influía
então nos
assuntos mais importantes da Europa. Cluny era esse mosteiro; Hugo esse
monge. Durante
sessenta anos, Hugo regera aquele célebre cenóbio, cujos chefes
chegaram na sua
soberba a considerarem-se como papas do monaquismo, intitulando-se
«abades dos abades».
Foi Hugo quem lançou os fundamentos deste poder e grandeza. Ele era
o homem
em cujo seio Gregório VII, pontífice a quem, fosse qual fosse a sua
índole, se não
pode negar o título de grande, ia depositar as próprias mágoas e
esperanças. Urbano II
foi seu monge e discípulo. Os reis e senhores solicitavam-lhe a
amizade e buscavam-no para
juiz das suas contendas. De todos os príncipes que mostravam maior
veneração e
afecto a Cluny e ao seu poderoso abade nenhum, talvez, igualou Afonso
VI; e porventura,
o acolhimento que Raimundo e Henrique encontraram no rei espanhol
viria em
parte de serem ambos parentes de Hugo, a quem Afonso dava o título
de pai e a cujo mosteiro
desde o tempo de Fernando Magno a monarquia leonesa pagava um tributo voluntário
a título de censo. Hugo, que, afora esses meios de influência na
Península, via
vários membros da sua congregação regendo boa parte das sés
episcopais destas províncias,
e entre eles Bernardo, o primaz de Toledo, desejaria por certo que
Raimundo e
Henrique, borgonheses como ele, seus parentes e afiliados ao Mosteiro
de Cluny, viessem
a herdar os vastos estados de Afonso VI. A resolução, pois, deste
príncipe acerca
da sucessão devia desagradar altamente ao velho beneditino, e é
provável que ele empregasse
a sua influência no ânimo do rei para o demover do formado
propósito. Se assim,
porém, passou na realidade, o afecto que esse príncipe consagrava
ao único filho varão
que a Providência lhe concedera foi mais forte que as insinuações
de Hugo.
Então,
segundo todas as probabilidades, se urdiu uma trama oculta debaixo da
direcção do
abade de Cluny para anular depois da morte do monarca a pretendida
sucessão do infante
Sancho. Pelos fins de 1106 ou princípios de 1107 um tratado secreto
se jurava entre
Raimundo e Henrique nas mãos de Dalmácio Gevet, emissário de Hugo,
que ditara
as condições desse pacto. Eram estas que os dois condes lealmente
respeitariam e defenderiam
a vida e a liberdade um do outro; que Henrique, depois da morte do
sogro, sustentaria
fielmente o domínio de Raimundo como seu único senhor sobre todos
os estados
do mesmo rei contra quem quer que fosse, correndo pronto a ajudá-lo
a adquiri-los; que,
no caso de lhe caírem primeiramente nas mãos os tesouros de Toledo,
ficaria com
um terço e ceder-lhe-ia dois: que Raimundo, pela sua parte, depois
de falecer o rei, daria
a Henrique a cidade de Toledo com o seu distrito, sob condição que
por esse território
que assim lhe concedia ficasse sujeito a ele, Raimundo, e o tivesse
como dependente
dele, e que depois de o receber lhe entregasse todas as terras de
Leão e de Castela;
que, se alguém lhes quisesse resistir ou fazer-lhes injúria, lhe
fizessem ambos guerra
ou a começasse logo qualquer deles, até que o território fosse
entregue a um ou a outro,
e Raimundo desse a Henrique o que lhe prometera; que, se Raimundo
obtivesse primeiramente
o tesouro de Toledo, guardaria para si duas partes, dando a outra a Henrique.
Tal era a substância do tratado. Parece, porém, que o conde de
Portugal receava
lhes fosse demasiado dificultoso assenhorearem-se da nova capital da monarquia
ou que esta tornasse a cair em poder dos sarracenos; porque se
acrescentou ao
pacto um como artigo adicional, em que Raimundo afiançava nas mãos
do enviado de
Cluny que, no caso de não poder dar Toledo a seu primo, lhe daria a
Galiza, não faltando
ele em ajudá-lo a apoderar-se de Leão e Castela, efectuando-se a
nova condição logo
que Raimundo estivesse pacífico senhor de tudo, e entregando-lhe
Henrique as terras
de Leão e Castela que estivessem em seu poder, tanto que fosse
metido de posse da
Galiza.
Ainda
que a letra deste pacto sobre a sucessão da coroa indique bem
claramente a menor
importância que o conde de Portugal se atribuía em relação ao da
Galiza, é evidente
que, se tal tratado chegasse a execução, a perspectiva do novo
estado que Henrique
intentava fundar era mais lisonjeira no futuro que a dos que Raimundo ambicionava
para si. Enquanto Leão e Castela ficavam limitados ao oriente por Aragão ou
pelos territórios muçulmanos que esta monarquia devorava pouco a
pouco, o conde de
Portugal dominaria ao sul quase toda a fronteira dos sarracenos e
achar-se-ia como colocado
na vanguarda da reacção cristã. Era sem dúvida esta uma situação
mais arriscada;
mas a conquista do Meio-Dia da Espanha facilitava-se-lhe grandemente; porque,
senhor dos distritos contíguos à margem direita do Tejo, desde
quase a foz do rio
até quase a sua origem, e acrescentados os próprios recursos com
esse novo senhorio que
devia receber de Raimundo e com uma porção dos tesouros de Afonso
VI, poderia dilatar
as invasões pelo Gharb e pela Andaluzia, que exclusivamente confrontariam com os seus antigos e novos domínios.
Ou
o segredo sobre o pacto dos dois condes não foi perfeitamente
guardado, ou por
algum acto externo eles deram indícios dos seus desígnios pouco
ajustados pelos de Afonso
VI. A acusação de se haver mostrado algum tanto rebelde ao sogro
pesa sobre a memória
de Henrique, e Raimundo decaiu por esse tempo da graça do rei, ainda
que na ocasião
da sua morte Afonso estava, segundo parece, congraçado com ele. A
morte, com
efeito, salteando o conde da Galiza no Outono de 1107, inutilizava a
aliança dos dois
primos e destruiu as esperanças que Henrique concebera de obter o
domínio de Toledo. Não abandonou, todavia, o conde as suas ideias de
engrandecimento e independência;
os sucessos posteriores no-lo revelam; mas nos dois anos que decorreram
entre o falecimento de Raimundo e o de Afonso VI (1107 a 1109) ele residiu
quase sempre em Portugal na obediência do sogro, empenhado, talvez,
nas correrias
contra os sarracenos que era costume fazer todas as primaveras, a que
estavam obrigados
os homens de armas ou cavaleiros vilãos e que se conheciam pela denominação
de fossado.
A
enfermidade que conduziu Afonso VI à sepultura foi longa e agravada
nos últimos
meses pela desgraçada sorte de seu filho. Henrique havia
concebido, como o pacto
feito com Raimundo e os sucessos posteriores o provam, a atrevida
ideia de ficar senhor
por morte do monarca de uma parte dos seus estados. Falecido o conde
da Galiza,
a ambição dele, longe de enfraquecer, punha, talvez, ainda mais
longe a mira. Poucos
dias antes de expirar o monarca, Henrique foi persegui-lo no seu
leito de morte. Ignoram-se
até onde chegavam as pretensões do conde; mas sabe-se que ele saíra
de Toledo
furioso contra o sogro moribundo. Antes de morrer, Afonso
declarou única herdeira
da coroa sua filha Urraca, e tal foi por certo a causa da cólera de
Henrique e a origem
do audaz projecto que desde então formou de se apossar, não de uma
parte, mas de
toda a monarquia de Leão e Castela.
Apenas,
porém, constou que o príncipe terror dos sarracenos não existia,
estes cobraram
novos brios. Os de Sintra, que reconheciam o senhorio do conde,
quebraram imediatamente
o jugo. Semelhante sucesso suscita a ideia de que os muçulmanos do distrito
ao sul de Santarém, última povoação que provavelmente ficou por
este lado em poder
do rei de Leão e Castela desde o desbarato de Raimundo em 1065,
inquietados pelas
algaras ou entradas do conde, e por outro lado não tendo reconhecido
o domínio dos
almorávidas, como adiante veremos, se lhe fariam tributários para
viverem em paz. Isto
não passa, todavia, de uma conjectura deduzida principalmente dos
sucessos posteriores;
porque os monumentos relativos a estes dois anos do governo de
Henrique só
nos provam que residiu uma ou outra vez em Portugal. Rebelada Sintra,
Henrique marchou
contra esse castelo, que naquela época parece tinha uma importância
pouco inferior
à de Lisboa, e de novo o reduziu à sua obediência.
A
morte de Afonso VI (Junho de 1109), pelas circunstâncias de que
vinha acompanhada,
tornou-se um sucesso gravíssimo para a Espanha cristã e foi, com
razão, sentida
como origem de largos males. O ceptro leonês, que deveria cair em
mãos capazes
de assegurarem as conquistas feitas por aquele célebre príncipe,
ficava pertencendo
à viúva do conde Raimundo. Da vasta herança que legava a sua
filha, o rei falecido
separara de certo modo a Galiza, declarando em sua vida que, no caso
de D. Urraca
passar a segundas núpcias, Afonso Raimundes, filho dela e seu neto,
ficaria reinando nesta
província. Contava o infante pouco mais de três anos quando Afonso
VI expirou,
e por isso à Galiza, como ao resto da monarquia, faltava um sucessor
capaz de defender
a integridade do território contra os cometimentos dos sarracenos e
de conter a ousadia
dos senhores poderosos, cujas antigas ideias de ambição, ou pelo
menos de independência,
a fraqueza do trono forçosamente havia de despertar.
Sem comentários:
Enviar um comentário