terça-feira, 25 de junho de 2013

História: Portugal antes de D. Afonso Henriques - 2ª Parte

História: Portugal antes de D. Afonso Henriques - 2ª Parte

Por Alexandre Herculano



Afonso I, rei de Aragão, estava nesse tempo na flor da idade e pelo seu génio guerreiro adquirira o apelido de Lidador (Batalhador). A nobreza castelhana, considerando a necessidade de confiar a defensa da pátria comum a um príncipe cujo nome e cuja espada pudessem conter os sarracenos, constrangeu a rainha a que o recebesse por marido, e assim o rei aragonês obteve a coroa de Leão e Castela. Uma classe, porém, poderosíssima, o clero, recebeu mal este consórcio, e boa parte dos prelados espanhóis declararam-se abertamente contra ele. Era a causa desse procedimento o parentesco dos dois esposos em grau proibido, procedimento aprovado pelo papa, que decretou o divórcio. Em consequência disto, Afonso, que já se achava em Castela com tropas de Aragão e cujo carácter violento mal poderia sofrer que o clero pretendesse despojá-lo de uma coroa que tão facilmente alcançara, começou a perseguir os prelados que lhe eram adversos. O arcebispo de Toledo, que promulgara a bula do divórcio, ficou por quase dois anos expulso da sua sé. Igual sorte coube aos bispos de Leão e de Burgos, e os de Palência, Osma e Orense foram postos a ferros. Estes factos deviam alienar-lhe os ânimos dos leoneses e castelhanos, quando para isso não bastasse o ser ele até certo ponto estrangeiro. Desconfiado, portanto, da lealdade dos ricos-homens e alcaides de Castela, o novo rei de Leão começou a substituí-los nas tenências dos lugares importantes por aragoneses, o que forçosamente contribuía para aumentar o desgosto e preparar a guerra civil.



Entregue ao conde Pedro Froilaz de Trava, fidalgo poderoso da Galiza, o infante Afonso Raimundes vivia nesta província esquecido no meio dos graves negócios que agitavam a nação. Logo, porém, que aí constou o casamento de sua mãe, o conde de Trava tratou de realizar as últimas disposições de Afonso VI acerca do neto e com esse fundamento fez alevantar a Galiza, receosa do domínio aragonês. Fora celebrado o consórcio de D. Urraca durante o Outono de 1109, e no princípio do estio do ano seguinte a revolução tinha tomado tal incremento que o rei de Aragão resolveu invadir aquela província. O primeiro castelo que tomou foi o de Monteroso. Entrado este, um cavaleiro ilustre chamado Pedro, que aí se achava, lançou-se aos pés de D. Urraca pedindo a vida. Conhecia-o ela e quis salvá-lo; mas o feroz Afonso matou-o com um venábulo (antiga arma com cabo, formada por uma longa vara provida de ferro, e empregada para caçar) naquele mesmo lugar. Este exemplo de crueldade encheu de indignação os nobres leoneses e ainda mais a rainha, que, obrigada ao novo consórcio, se via em poder de um déspota. Desde este momento ela tomou a resolução de divorciar-se, confiada na indignação dos nobres, na reprovação dos prelados ao matrimónio que contraíra e na resistência da Galiza ao domínio aragonês. Não dissimulando o seu descontentamento, partiu para Leão, e Afonso I continuou a guerra na Galiza; mas, sendo-lhe desfavorável a sorte das armas, dentro de três meses foi obrigado a recuar para o distrito de Astorga. A revolução tinha também rebentado aí; porque ao chegar a esta cidade saíram-lhe ao encontro os barões daquela província com forças tais que não ousou resistir-lhes. Intimado por eles para não entrar em castelo algum dos estados de Leão, viu-se constrangido a ceder e, acompanhado por dois nobres que ficaram por fiadores da sua segurança, recolheu-se às fronteiras dos próprios estados.

No meio destas revoltas e guerras conservava-se acaso tranquilo o conde de Portugal, satisfeito com ter reduzido à obediência os sarracenos de Sintra? Não, por certo. Ambicioso, irado pela sucessão de D. Urraca ao trono leonês, determinara vingar-se. Mais do que isso. As suas pretensões em vida de Afonso VI ainda se limitavam a herdar uma porção da monarquia: agora intentava dominar tudo. Abandonando os estados que governava às invasões dos sarracenos, atravessou a Espanha e, passando os Pirenéus, foi alistar gente de guerra em França, visto que a do condado de Portugal não bastava a levantar a máquina de tamanha ambição. Dedicava-se a esse negócio quando (ignora-se porquê) foi preso naquele pais; talvez por algum receio que houvesse de que a sua volta à França tivesse fins diversos dos que aparentava. Não menos se ignora como pôde fugir da prisão, mas é certo que obteve escapar e, passando de novo as montanhas, internar-se em Aragão.

Estes sucessos deviam passar-se nos oito meses que decorreram dos fins de Agosto de 1110 aos fins de Abril de 1111, em que nenhuma memória conhecida do conde Henrique existe em Portugal, antes parece regia o condado D. Teresa na ausência do marido. Chegando aos estados de Afonso I, Henrique achou aí o rei aragonês. Temendo que este príncipe, que se julgava com direito à coroa leonesa, sabendo os seus intentos lhe atalhasse os passos, procurou e alcançou aliar-se com ele. Foi a condição da liga marcharem as suas forças contra D. Urraca, procurando unidos conquistar as terras de Leão e Castela e reparti-las depois igualmente entre ambos. Depois deste pacto vemos, todavia, Henrique voltar para Portugal, onde se demorou durante uma parte do Verão de 1111.

Para se conhecer a causa provável desta vinda e da volta subsequente do conde a unir-se ao rei de Aragão, é necessário que atemos o fio dos sucessos acontecidos durante a sua breve residência em França e nas províncias orientais da Espanha.conde Gomes Gonçalves era um dos mais ilustres senhores daquele tempo. Se acreditarmos o cronista Rodrigo de Toledo, ainda em vida de Afonso VI ele pretendera, favorecido por uma parte da nobreza, a mão de D. Urraca. O velho monarca rejeitara com indignação a proposta, e os parciais do conde viram-se obrigados a abandoná-lo neste intento. Suscitada pelos prelados a questão do divórcio, ele sentiu renascer as suas amortecidas esperanças. Ou fosse que entre Gomes Gonçalves e D. Urraca existisse afeição secreta ou que ele soubesse então acendê-la no coração da rainha, que os escritores contemporâneos nos pintam como pouco severa em costumes, o que parece certo é que entre Afonso I e a sua mulher rebentaram graves dissensões. Depois de a espancar brutalmente, o rei de Aragão conduziu-a a Castelar, onde a conservou como presa, e resolveu-se a aceitar o divórcio. Temendo as consequências desta separação, tanto mais que Afonso tinha nas mãos de capitães seus as principais fortalezas de Castela, os nobres que seguiam a corte buscaram e obtiveram congraçar os dois esposos e afastar por algum tempo a procela. Mas o ressentimento contra o marido havia despertado o amor pelo filho no coração de D. Urraca retida em Castelar, e ela tinha enviado mensageiros incumbidos de recordar aos nobres de Galiza o que Afonso VI lhes fizera jurar acerca de seu neto, convidando-os a proclamarem-no rei nos estados que o avô lhe legara no caso de sua mãe passar a segundas núpcias. Recebida esta mensagem, os fidalgos galegos encaminharam-se a Leão para cumprir os desejos da rainha, quando souberam que ela se congraçara com o marido . A situação dos parciais de Afonso Raimundes tornava-se assaz melindrosa com este inopinado sucesso. Unidos de novo D. Urraca e Afonso I, eles temiam tornarem-se único alvo da vingança do impetuoso aragonês, muito mais que este não devia ter esquecido o desastre da sua primeira tentativa contra a Galiza.

Como já advertimos, a ida do conde Henrique a França e a sua volta a Aragão não se podem colocar noutro período que não seja o decorrido de Agosto de 1110 a Maio de 1111. Foi por este tempo que as dissensões de Afonso I e de sua mulher chegaram ao último auge e vieram a declarada inimizade. O pacto do príncipe aragonês com o conde de Portugal devia ser feito por essa ocasião; mas enquanto os dois pensavam em dividir entre si o império de Afonso VI, D. Urraca buscava aliar-se com os fidalgos da Galiza, aprovando os desígnios deles acerca da elevação ao trono do infante Afonso Raimundes. Reconciliada, porém, a rainha com o marido por intervenção dos barões castelhanos, a situação dos personagens mais importantes deste grande drama mudava inteiramente. Os interesses do rei de Aragão tornavam a vincular-se aos de D. Urraca e, pelo contrário, os do conde ligavam-se naturalmente à causa do infante seu sobrinho e dos barões da Galiza. Estes, sabedores da inopinada reconciliação e conhecendo, talvez, que ela era contrária aos intentos de Henrique, dirigiram-se a este para que os aconselhasse sobre o modo de saírem do passo dificultoso em que se achavam, vítimas do carácter mudável de D. Urraca. Não devia ser menor o despeito do conde que o dos barões da Galiza. Aproveitou, pois, o ensejo que se lhe oferecia e excitou fortemente o conde Pedro Froilaz a que prosseguisse na revolução a favor do infante, porventura com promessas de socorro. De feito, continuando no encetado empenho, Pedro Froilaz, ao voltar para Galiza com os outros fidalgos, prendeu junto de Castro Xerix (perto de Burgos) alguns daqueles que, esquecidos das obrigações contraídas pela promessa feita a Afonso VI, não só se haviam bandeado com o príncipe aragonês, mas até de acordo com ele maquinavam a morte do conde de Trava e do seu real pupilo. O procedimento, porém, de Pedro Froilaz fez rebentar uma guerra civil na Galiza. Os fidalgos partidários de Afonso de Aragão trabalharam por vingar-se. Alcançando aprisionar a condessa de Trava em Santa Maria de Castrelo, aonde se acolhera com o infante, souberam também prender artificiosamente o depois tão célebre bispo de Compostela, que, havendo até aí seguido uma política vacilante, se declarara afinal protector de Afonso Raimundes; mas o activo prelado achou meio de obter a liberdade e de pacificar temporariamente a Galiza, atraindo de novo à parcialidade do infante os principais fidalgos que se lhe tornavam a mostrar adversos.

Henrique havia-se retirado neste meio tempo para Portugal, visto que a paz entre os dois consortes anulava, ao menos temporariamente, as esperanças que havia fundado na concórdia que, voltando de França, fizera com o rei de Aragão. Se ele tinha calculado com a guerra civil na Galiza para divertir a atenção da rainha e de seu marido, enquanto ganhava forças, não só para constituir um estado capaz de sustentar a própria independência, mas também para realizar as miras ambiciosas de mais vasto domínio, os seus cálculos foram bem depressa baralhados por novas e violentas desinteligências que em breve rebentaram entre Afonso e Urraca. O ânimo altivo, ou antes o procedimento leviano da rainha, trouxe por fim uma ruptura decisiva. Proferiu-se o divórcio, e D. Urraca, chamando a si o seu velho aio Pedro Ansures, o conde Gomes Gonçalves, o conde Pedro de Lara e muitos outros senhores castelhanos e leoneses, começou com o rei de Aragão uma luta que, com poucas interrupções e vária fortuna, durou muitos anos. As relações que tentara já estreitar com os parciais de seu filho na Galiza renovaram-se então com mais próspero resultado, e ao passo que Leão e Castela se declaravam geralmente favoráveis à rainha, Afonso, o Lidador, via as suas forças quase reduzidas às de Aragão e às dos fidalgos e cavaleiros aragoneses que puderam conservar-lhe fiéis alguns lugares fortes, cujos alcaides eram.

É evidente que o estado político da Espanha mudava completamente em relação ao conde de Portugal. A concórdia de D. Urraca e dos defensores de Afonso Raimundes ligava outra vez o vasto corpo do império de Afonso VI que ameaçara despedaçar-se. Por outra parte, convertida a guerra civil em guerra estrangeira, visto que pelo facto do divórcio o príncipe aragonês tinha de a sustentar, não como legítimo senhor de Leão, Castela e Galiza contra súbditos rebeldes, mas como rei de Aragão contra um país alheio, pouco era de esperar, atenta a desigualdade dos recursos, lhe coubesse a vitória, apesar da sua actividade e esforço. Nesta conjuntura é mais de crer que ele tentasse realizar o pacto celebrado com o conde de Portugal e que este esquecesse facilmente o passado para de novo correr após as suas ambiciosas esperanças. Daqui nasceu, em nosso entender, a pronta união de Afonso e de Henrique para guerrearem D. Urraca. Mas, antes que falemos dos resultados dessa liga, cumpre-nos narrar sucessos que interessam especialmente, não só o conde de Portugal, mas ainda mais de perto o país que ele regia.

Abul-Hassan Ali sucedera, como já dissemos, a seu pai Yusuf no vasto império da Mauritânia e da Espanha muçulmana em 1106. Depois de aquietada a rebelião de Yahya, váli de Fez, ele passara o Estreito (1107) mais para ordenar as coisas do governo nas províncias da Europa que para prosseguir na guerra santa. No ano seguinte, porém, tornou a passar da África resolvido a acometer Afonso VI. Seu irmão Temin ganhou a célebre batalha de Uclés e muitos lugares fortes lhe caíram nas mãos; mas esses triunfos custaram rios de sangue aos sarracenos. Ali, pouco depois, voltou à África, e as suas conquistas não se dilataram para o interior dos territórios de Leão e Castela. Todavia, o emir almorávida, seguindo o exemplo de Yusuf seu pai, incansável em combater os inimigos da sua crença, passou de novo o mar, dizem que com cem mil cavaleiros, no Verão de 1109, e começando a guerra no Outono desse mesmo ano prosseguiu-a por todo o seguinte até o princípio de 1111, em que voltou à África, por Junho ou Julho. Foi esta uma das campanhas mais fatais para os cristãos. 

Ao passo que Ali invadia os território centrais e, tomando sucessivamente Talavera, Madrid, Guadalajara e mais vinte e sete castelos, vinha sitiar Toledo, o emir de Saragoça marchava contra o rei de Aragão, que havia posto cerco a Tudela, e o célebre Seir Ibn Abi Bekr marchava para o ocidente. As narrativas dos historiadores árabes revelam-nos neste ponto sucessos anteriores, cujas circunstâncias aliás não especificam. Seir, dizem eles, apoderou-se de Badajoz, Évora, Santarém, Lisboa, Sintra, e de todas as povoações ocupadas pelos cristãos ou que não tinham tomado a voz dos almorávidas. E certo, porém, como vimos, que já em 1093 o emirado de Badajoz havia sido submètido pelo próprio Seir ao império almorávida, e a esse emirado pertenciam todas as povoações aqui mencionadas, de parte das quais Afonso VI se assenhoreara naquela conjuntura. Resulta dali que uma revolução se fizera entretanto no Gharb, onde os árabes, como por toda a Espanha muçulmana, mal sofriam o jugo dos lantunitas, e que Seir se viu obrigado a conquistar de novo as duas províncias modernas do Alentejo e Algarve, que já uma vez subjugara.

É assim que nos parece explicar-se naturalmente a ordem dos sucessos daquele obscuro período. A revolução dos árabes ocidentais propagou-se pelas terras situadas na margem direita do Tejo perto da sua foz, que o destroço do conde Raimundo em 1095 nos persuade estarem já perdidas para os cristãos. O temor de serem de novo submetidos pelos almorávidas induziu, talvez, os levantados de Lisboa e Sintra a fazerem-se tributários do conde Henrique, sucessor de Raimundo, para não ficarem ao mesmo tempo ameaçados ao norte por ele e ao sul pelas forças lantunenses. As palavras da Crónica dos Godos, dizendo que por morte de Afonso VI começaram a «rebelar-se» os sarracenos e que por isso o conde Henrique acometeu e tomou Sintra, dão o máximo grau de probabilidade à nossa conjectura. 

Começada a guerra nos fins de 1109, Seir devia gastar o ano seguinte em reduzir de novo o Gharb muçulmano e, assim, só veio a encetá-la verdadeiramente na fronteira em 1111. Já, porém, no ano antecedente algumas forças almorávidas tinham passado o Tejo, fazendo uma entrada na moderna Estremadura. O conde de Portugal, vendo o activo general lantunense combater e reduzir as principais povoações do antigo amirado de Badajoz, enviara tropas que reforçassem a guarnição de Santarém. Marchavam descuidados os homens de armas do conde; acamparam num sítio denominado Vatalandi e começavam a levantar as tendas para repousar quando de improviso um grosso corpo de sarracenos, sabendo que era pouco avultado o número dos cristãos, os atacou, passando provavelmente o Tejo.

Salteados assim repentinamente, estes foram destroçados com grande mortandade, ficando no campo Suário Fromarigues, que os capitaneava, e outro cavaleiro notável chamado Mido Crescones. Na Primavera do ano seguinte, Seir, submetidas as cidades mais importantes do Gharb, pôs cerco a Santarém, a qual se rendeu em Maio ou Junho desse mesmo ano, e nada induz a crer que o conde socorresse este ponto extremo dos seus domínios ou que ao menos tentasse inquietar os sarracenos. Foi, todavia, durante estes dois meses que Henrique residiu em Portugal, depois da sua volta de França e de Aragão e antes de se ligar de novo com Afonso I para a guerra contra D. Urraca. Um diploma exarado no mesmo dia em que, segundo a Crónica dos GodosSantarém caía em poder dos muçulmanos alguma luz derrama para se descortinarem as causas que tolhiam ao conde o socorrer as suas fronteiras meridionais. É ele o foral de Coimbra. Sesnando, atraindo para ali a população cristã, não organizara o município, contentando-se os novos habitadores com lhes ser assegurada por um título geral a posse hereditária das propriedades rústicas ou urbanas que se lhes distribuíam. Depois, por quase meio século, Coimbra fora a capital de um distrito, e ainda no tempo de Henrique se podia considerar como a principal cidade do condado ou província de Portugal; mas uma tradição, que os documentos contemporâneos parece confirmarem, nos assegura que o genro de Afonso VI estabelecera em Guimarães a sua corte, se tal se pode dizer de uma residência incerta e quase anualmente interrompida. Coimbra, posto que, como vimos, fosse frequentada do conde, o qual por vezes fez aí larga assistência, tinha, como todos os lugares principais, governadores próprios sujeitos a ele, segundo o sistema hierárquico da monarquia leonesa. Estes governadores, com os seus oficiais, provavelmente vexavam os habitantes, que não possuíam ainda os largos privilégios municipais atribuídos já nessa época a povoações menos importantes. Segundo parece poder concluir-se das alusões obscuras do diploma a que nos referimos, os moradores de Coimbra, oprimidos por uns certos Munio Barroso e Ebraldo ou Ebrardo, talvez chefes militares, talvez exactores de fazenda, amotinaram-se, expulsando-os da cidade. Devia suceder isto durante a ausência do conde. Voltando, ele se dirigiu a Coimbra; mas os habitantes resistiram-lhe, e Henrique teve de pactuar com eles. O resultado destes sucessos foi obter a povoação uma carta de foral com amplos privilégios, especificando-se as contribuições e declarando-se expressamente que nem Múnio Barroso nem Ebraldo tornariam a ser admitidos dentro dos seus muros, e que o conde, satisfeito de o haverem enfim recebido, poria em esquecimento tudo o que contra ele tinham até àquele dia praticado.

Entretanto Seir, fortificada e guarnecida Santarém e as outras praças tanto de cristãos como de muçulmanos submetidas por ele ao império almorávida, voltara para Sevilha. Entrado em avançada idade, este célebre capitão aí faleceu pouco depois, sem poder continuar no Ocidente da Península a guerra que por este lado parece lhe estava particularmente incumbida. Com a sua morte, Portugal respirou, e as correrias dos sarracenos dirigiram-se principalmente contra a província de Toledo, cujas cercanias, tendo debalde tentado tomar aquela cidade, deixou taladas o váli de Córdova, Mezdeli.

A Espanha cristã oferecia então o triste espectáculo de que tantas vezes foi teatro antes e depois destes sucessos. Enquanto os infiéis invadiam as fronteiras, a guerra civil encruecia cada vez mais no seio dela. Era no mesmo tempo em que os almorávidas faziam recuar as fronteiras de Portugal que os condes Gomes Gonçalves e Pedro de Lara, lisonjeados com o valimento da rainha e esperançados ambos de que o divórcio de D. Urraca lhes abrisse o caminho do trono, ajuntavam os partidários desta para acometerem o rei aragonês, que durante a sua passageira reconciliação com a rainha se apoderara de Toledo. Como já observámos, a liga entre o conde de Portugal e Afonso I renovou-se naturalmente por estes meses, e Henrique, apaziguada a rebelião de Coimbra, apressou-se a ir ajuntar-se com o seu aliado. Unidos ambos, pouco tardou que chegassem a um encontro decisivo com os leoneses e castelhanos. Os condes Gomes Gonçalves e Pedro de Lara vieram esperá-los em Campo de Espina, poucas léguas ao nordeste de Sepúlveda, no distrito de Segóvia. Lara, apenas começada a peleja, fugiu, deixando o conde Gomes lutar sozinho com as forças de Afonso I e do seu aliado, que o venceram e mataram. Obtida esta vitória (Novembro de 1111), o rei de Aragão passou o Douro e invadiu o território leonês.  Entretanto o bispo de Compostela, Gelmires, com os principais fidalgos e cavaleiros da Galiza, dirigiram-se à cidade de Leão para aí aclamarem Afonso Raimundes. Soube-o o rei de Aragão, e, marchando ao encontro deles, acometeu-os de improviso entre Astorga e Leão no lugar chamado Fonte de Angos ou Viadangos. Depois de tenaz resistência, os galegos foram destroçados, e Gelmires, enviando o moço príncipe para a fortaleza de Orsillón, em Castela, onde então se achava D. Urraca, retirou-se com as relíquias das tropas galegas para Astorga e, demorando-se aí apenas três dias, voltou a Compostela, fazendo um largo rodeio, a fim de evitar o encontro dos vencedores.

Nesta facção, porém, interviera só o rei aragonês abandonado já pelo conde de Portugal. Imediatamente depois da batalha de Campo de Espina o exército dos dois aliados entrara em Sepúlveda. Os fidalgos castelhanos recorreram então aos meneios ocultos para os dividir. Mandaram afeiar a Henrique o haver-se unido ao inimigo comum da monarquia contra os outros barões de Leão e Castela. Pediam-lhe que se apartasse do aragonês e que viesse ajuntar as suas forças às deles, prometendo fazerem-no seu chefe nestas guerras e induzirem a rainha a repartir fraternalmente com ele uma parte dos estados de Afonso VI. Alguns fidalgos, aos quais o prendiam laços da antiga amizade, invocavam, até, as recordações do passado para mais o moverem. Cedeu, enfim, o conde a estas sugestões, e para não despertar as suspeitas do rei de Aragão pretextou a ocorrência de negócios que o chamavam aos seus domínios.

Então, partindo de Sepúlveda, veio ao castelo de Monzón, onde se achava a rainha, a qual confirmou as promessas feitas ao conde pelos barões seus parciais. Esperando assim ver realizados os desígnios de engrandecimento que concebera, Henrique não tardou a declarar-se pelo partido de D. Urraca. Esta, apenas seu filho chegou ao castelo de Orsillón ou de Monzón, deixando-o entregue a alguns cavaleiros em que mais confiava, partiu para a Galiza, atravessando as montanhas de Oviedo no coração do Inverno, posto que este fosse naquele ano rigorosíssimo. Dali encaminhou-se na Primavera de 1112 e aos distritos meridionais de Leão, ordenando marchassem para aquele ponto todos os que se lhe conservavam fiéis. Mas Afonso I, que entretanto tinha engrossado o seu exército com os socorros de várias partes, ao mesmo tempo que chamava novas tropas de Aragão, marchou a cercar Astorga. Sendo, todavia, destroçados pelos castelhanos os cavaleiros aragoneses que vinham ajudar os sitiadores, Afonso alevantou o sítio e retirou-se para o forte castelo de Penafiel.

Entretanto o conde de Portugal ajuntava os seus homens de armas enquanto as tropas da rainha convergiam das Astúrias, de Castela e das Estremaduras para se reunirem com ela. Estas forças capitaneadas por Henrique, ao qual acompanhava D. Urraca, avançaram para o lado do castelo de Penafiel nas vizinhanças de Valhadolid e puseram-lhe cerco. Era o lugar forte e bem defendido, e o assédio prolongou-se. Os sitiadores, no entretanto, ocupavam-se em assolar e roubar os territórios circunvizinhos que se dilatam pela margem esquerda do Douro e cujos habitantes se tinham mostrado parciais do príncipe aragonês.

D. Teresa, que durante a ausência do marido parece ter residido sempre em Portugal, partira nesse meio tempo de Coimbra para vir unir-se com ele. Chegada ao acampamento, poucos dias tardou em semear aí a discórdia, persuadindo ao conde que, antes de tudo, exigisse a divisão dos estados leoneses que lhe fora prometida, lembrando-lhe que era rematada loucura arriscar a própria vida e a dos seus soldados só em proveito alheio. Deu-lhe Henrique ouvidos e começou a apertar para que se realizassem as promessas feitas. A estas pretensões se ajuntavam outras circunstâncias que ajudavam a irritar D. Urraca. Os portugueses que se achavam no exército tratavam a irmã como rainha. Este título, que aliás fora vão, dado à mulher do mais poderoso dos seus barões, daquele que era o principal cabeça do exército, apontava-lhe o alvo em que a irmã e o cunhado punham a mira. A fraqueza do seu sexo incitou-a então a seguir a política tortuosa a que nesse tempo não duvidavam recorrer os mais fortes e nobres cavaleiros. Abrindo relações ocultas com o rei de Aragão, procurou de novo congraçar-se com ele e, aproveitando o pretexto de querer satisfazer às pretensões de Henrique e de D. Teresa, levantou o cerco e dirigiu-se com eles para Palência. Aí se escolheram árbitros, e a divisão do império de Afonso VI se fez, ao menos nominalmente. O castelo de Ceia sobre o rio do mesmo nome, que tocara ao conde, lhe foi logo entregue, e resolveu-se que ele, ajudado pelos homens de armas da rainha, marchasse a apoderar-se de Zamora, que era uma das terras mais importantes das que lhe tocavam e que provavelmente estava então pelos aragoneses. As duas irmãs deviam entretanto recolher-se à cidade de Leão.

Tais eram as intenções patentes de D. Urraca, mas bem diversas as ocultas. Aos cavaleiros que iam na companhia do conde ordenou em segredo que, tomada Zamora, não lha entregassem, e ao mesmo tempo mandou prevenir a guarnição de Palência de que, se Afonso I para ali se encaminhasse, lhe abrissem as portas. Depois disto dirigiu-se à vila de Sahagún, cujos habitantes eram fautores daquele príncipe e por isso facilmente os persuadiu a fazerem o mesmo. Daí, separando-se primeiro de D. Teresa, recolheu-se efectivamente a Leão, conservando-se no entanto a condessa de Portugal no célebre mosteiro de Sahagún, contra cujos monges como senhores da vila o ódio dos burgueses era grande e causa do seu aferro à parcialidade aragonesa. A partida de D. Urraca, abandonando ali a irmã, parece ter sido resultado de acordo secreto com o rei de Aragão, porque este entrou de repente na vila e, sabendo que D. Teresa fugira, mandou após ela tropas que a perseguissem, mas que não puderam alcançá-la.

A notícia da traição de D. Urraca brevemente chegou aos ouvidos de Henrique, talvez pela boca da infanta sua mulher fugida de Sahagún. É fácil de supor qual seria a indignação do conde, vendo-se assim escarnecido e transtornados os seus desígnios. Os nobres de Leão e Castela, a quem sobretudo era odioso o domínio do rei de Aragão, mostraram-se inclinados a favorecer Henrique, desaprovando o procedimento da rainha. Aproveitou o conde esta irritação dos ânimos e com os outros barões ofendidos resolveu prosseguir contra os dois a guerra que até então tinha feito unicamente ao príncipe aragonês.

D. Urraca, partindo de Sahagún, pouco tempo se demorara em Leão, aonde o marido se foi unir com ela, havendo-lhe saído baldada a tentativa da prisão de D. Teresa. Sabida esta nova, o conde de Portugal e os barões seus aliados marcharam a pôr sítio a Carrión, para onde Afonso e D. Urraca tinham entretanto voltado. Breve, porém, acabou o assédio, porque - diz um escritor contemporâneo - os nobres, além do respeito que deviam à filha de Afonso VI, estavam certos de que, atento o génio do rei aragonês, poucos dias duraria a concórdia entre ele e sua mulher. Não parece este motivo o mais provável para assim abandonarem a empresa; mas, fosse essa ou diversa a causa do sucesso, é certo que Henrique se retirou com os outros nobres que a ele se haviam associado.

Se atendermos a que o cerco de Penafiel, de que acima falámos e a que precederam diversos acontecimentos posteriores à batalha de Campo de Espina, só poderia verificar-se no Verão de 1112, os variados sucessos que havemos referido deviam ocupar o Outono deste ano. Quais fossem, porém, as acções do conde depois de levantado o cerco de Carrión nenhum monumento contemporâneo no-lo diz. É crível andasse empenhado em obter pelas armas ou por outro qualquer meio os senhorios que sua cunhada lhe cedera para trair a causa do rei aragonês. Entretanto este, cuja reconciliação com D. Urraca não era senão um cálculo de cobiça, apenas se achou livre do cerco procurou afastá-la de si. Com promessas lisonjeiras e por intervenção dos seus hábeis conselheiros alcançou, enfim, resolvê-la a ir administrar o Aragão enquanto ele ficava ordenando as coisas da monarquia leonesa. Partiu com efeito a rainha; mas pouco tardou a receber novas das violências que nos seus estados continuava a praticar o marido. Desde então resolveu-se a voltar; mas, seguindo o exemplo de Afonso, que soubera criar um partido entre castelhanos e leoneses, buscou iguais alianças entre os súbditos dele, chamando a si alguns nobres aragoneses descontentes, ao mesmo tempo que trabalhava por criar ou renovar simpatias em Leão e Castela. Afonso I, sabendo que sua mulher regressara, pensou em embargar-lhe os passos, ou desvanecendo a ira de que ela vinha possuída ou prendendo-a, se as circunstâncias o permitissem. Nem uma nem outra coisa obteve. A parcialidade da rainha engrossara a ponto de se fazer temer, e a confiança nos seus parciais animava D. Urraca a abandonar o sistema da dissimulação. As discórdias renovadas entre os dois consortes chegaram a termos de separação e logo de guerra, que se dilatou, segundo parece, por algum tempo.


Concebe-se facilmente qual seria o estado de um país, em cujo solo se viam ainda os tristes vestígios das correrias dos sarracenos, convertido agora em teatro de longas e deploráveis lutas civis. Nobres e burgueses tinham sido vítimas das dissensões suscitadas ou favorecidas por eles próprios. O desejo da paz devia ter ganhado incremento no meio de tantas devastações e de tanto sangue vertido em vão. As igrejas roubadas; muitos personagens notáveis do clero e da fidalguia mortos a ferro, presos ou fugitivos; os peões perecendo de nudez e de fome ou passados à espada; tal é o quadro que nos apresenta um historiador desse tempo, lançando-o à conta do rei de Aragão, mas em que é de crer fossem culpados os diversos partidos. É, todavia, certo que Afonso I, empregando nestas guerras gente colectícia de além dos Pirenéus e dotado de um génio tão violento e feroz como valoroso, devia ter maior quinhão nos males cometidos, posto que muito se haja de rebaixar nas acusações dos seus inimigos. Mas, devido a uns ou a outros, o estado das coisas era intolerável, e alguns barões leoneses e castelhanos com os cabeças populares dos mais poderosos municípios de Leão ajuntaram-se em Sahagún com o propósito de constranger os dois consortes a darem tréguas às suas discórdias e a deixarem, enfim, respirar a nação das calamidades que padecia. Exigiam que o rei de Aragão guardasse as condições estabelecidas quando, em consequência das pretensões do conde de Portugal, D. Urraca se congraçara com ele em Penafiel. Falto acaso de forças para quebrar com a assembleia que assim lhe impunha a lei, o príncipe aragonês valeu-se da dissimulação; fingiu reconciliar-se com a rainha e, tendo-se demorado algum tempo em Carrión, veio com ela residir em Astorga.

1ª Parte

3ª Parte

4ª Parte

5ª Parte

Ver também Reconquista

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