terça-feira, 25 de junho de 2013

História: Portugal antes de D. Afonso Henriques - 3ª Parte

História: Portugal antes de D. Afonso Henriques - 3ª Parte

Por Alexandre Herculano


A duplicidade de Afonso I logo se tornara visível. Com pretextos e evasivas adiava o cumprimento das promessas que fizera. Entre estas era a principal tirar os castelos pertencentes a sua mulher das mãos dos aragoneses. Passando pela cidade de Leão ao dirigir-se a Astorga, recusou entregar o alcaçar desta cidade, apesar de D. Urraca assim o requerer. Era evidente que a pacificação obtida à força pelos povos não duraria muito tempo. A primeira circunstância que, se oferecesse para nova ruptura havia de ser aproveitada por ele, e tal circunstância não tardou a aparecer.

Estes sucessos passavam nos primeiros meses de 1114. Posto que, no meio das inquietações e bandos em que figuraram tantos indivíduos eminentes, os factos relativos ao conde de Portugal sejam muitas vezes esquecidos nas incompletas e informes memórias desse tempo, todavia, se dermos crédito a um documento acerca do qual não nos ocorre dúvida, mas que já foi impugnado, ao menos na sua data, Henrique ligou-se com a rainha quando ela, tendo voltado de Aragão, se achava mais uma vez separada do marido. Foi no meio destas repetidas discórdias e pacificações passageiras que findou a carreira das ambições e esperanças do conde, atalhando-lhe a morte os desígnios; mas o modo, o lugar e as particularidade deste sucesso cobre-os véu impenetrável. Sabemos só que ele faleceu no 1º de Maio do ano de 1114. 

A narração do anónimo de Sahagún faz suspeitar que, durante a residência de Afonso e D. Urraca em Astorga, Henrique os seguira e ali morrera o que de certo modo é fortificado pela
tradição dos cronistas portugueses, que o dão por morto naquela cidade, posto que essa tradição revista o facto das circunstâncias extraordinárias e fabulosas com que a imaginação do povo costuma poetizar a história.

Voltemos agora os olhos para o passado e observemos qual era a verdadeira situação política de Henrique no momento de falecer. Levado pela natureza das coisas e ainda mais pela ambição a representar um papel importante no meio da guerra civil que devorava a monarquia, conhece-se pelos actos dos últimos quatro anos da sua vida que a todas as considerações ele antepunha o pensamento de obter para si, não só a independência do condado cujo governo subalterno alcançara da generosidade do sogro, mas também largo quinhão nas outras províncias limítrofes, de modo que Portugal se convertesse em núcleo de um poderoso estado no Ocidente da Península. Pelo tratado de divisão que a necessidade de o atrair ao seu partido obrigou D. Urraca a celebrar com ele, sabemos lhe ficava pertencendo Zamora, cujo distrito se dilata pela fronteira oriental do nosso país. E se outro tratado entre a rainha e D. Teresa, de que adiante havemos de falar, assentava, como suspeitamos, sobre este pacto anterior feito com o conde, vemos por ele que esses territórios abrangiam a maior porção das províncias a que então chamavam de Campos e das Estremaduras e hoje se denominam de Valhadolid, Zamora, Toro e Salamanca. É provável que já nos ajustes feitos com Afonso I para repartirem entre si a monarquia leonesa o conde tivesse escolhido estas províncias. Assim, se ele morreu depois da última reconciliação de Afonso com D. Urraca, achando-se nessa ocasião aliado com a rainha e tendo direito pelas convenções anteriores a exigir de ambos a cessão daqueles distritos, seria ofender todas as probabilidades o imaginar que não cuidasse então seriamente em realizar um facto a que dedicara todos os seus esforços e para o qual trabalhava já, como vimos, em vida de Afonso VI.

No comum sentir dos nossos historiadores o conde borgonhês havia chegado aos setenta e sete anos de idade quando faleceu; mas esta opinião envolve graves dificuldades. Ele teria nascido, por esse cálculo, em 1037, pouco mais de trinta anos depois do nascimento de seu avô Roberto, o que torna essa data quase impossível, tanto mais se nos recordarmos de que ele era quarto filho de Henrique e este o segundo daquele príncipe. A actividade militar do conde nos últimos tempos da sua vida, junto a estas considerações, nos persuadem a supor-lhe quando morreu a idade de cinquenta a sessenta anos. O seu cadáver foi transportado de Astorga para Braga, em cuja catedral jazem ainda hoje os restos daquele que, até certo ponto, se pode chamar o fundador da nacionalidade portuguesa.


Se Henrique fora ambicioso, não o era menos sua mulher. Apenas soube que ele falecera, apareceu na corte de Astorga. Armava grande competência - diz um contemporâneo - com sua irmã e com o rei. Que outra podia ser essa competência senão a das pretensões do marido? Mas o guerreiro conde descera ao sepulcro, e a sua espada, que luzira ao sol de tantas batalhas, jazia ao lado dele debaixo da campa. Sobravam à infanta ambição, energia, pertinácia: faltava-lhe um braço de homem para sustentar o bom ou mau direito que supunha ter; faltava-lhe o ferro, que a política, em todos os tempos, costumou e costuma lançar na balança em que se pesam as contendas dos príncipes ou dos povos. Recorreu às armas de que a sua fraqueza mulheril podia tirar tanta vantagem como o marido tirara do esforço e perícia militar: empregou a astúcia.

Por intervenção de um indivíduo de cujas artes se fiava, teve modo de persuadir o rei de Aragão de que sua mulher intentava dar-lhe peçonha, acusação, talvez, não inteiramente infundada. Afonso, que nada desejava tanto como um pretexto para punir a rainha, sem que lhe fugissem da mão os vastos estados de que ela era a legítima herdeira, deu ou fingiu dar crédito à revelação que lhe fora feita. Perante os nobres que estavam na corte, acusou-a do intentado assassínio, para assim se justificar do procedimento que determinava seguir, e este era o separar-se dela. Segundo o costume daqueles tempos, recorreu a rainha à prova do combate, escolhendo um cavaleiro que mantivesse na estacada a sua inocência; mas o rei negou-se a aceitar o chamado juízo de Deus, fazendo-se julgador da própria causa. Debalde os condes de Castela e até os barões aragoneses que se achavam presentes procuraram sossegar os ânimos irritados dos dois consortes: D. Urraca foi expulsa de Astorga seguida de poucos cavaleiros, que não quiseram abandoná-la naquela desgraçada conjuntura.

A violência de Afonso, que recusara a sua mulher um meio de justificação considerado como o mais solene a que um réu podia recorrer para se mostrar alheio à imputação do crime, produziu geral descontentamento. Os próprios aragoneses que guarneciam as torres da antiga capital da monarquia, a cidade de Leão, abriram as portas do castelo à desterrada princesa. Os burgueses, que até aí se haviam mostrado mais favoráveis ao rei de Aragão que a D. Urraca, uniram-se ao partido dela. Os concelhos de Burgos, de Naxera, de Carrión, de Leão e de Sahagún, juntos nesta última vila com muitos nobres, ou porque ainda se não houvesse dissolvido a passada assembleia ou porque de novo se congregasse, mostraram-se tão resolutos em sustentar as condições juradas por Afonso I que este, obrigado a declarar-se abertamente e não podendo resistir à torrente, saiu a ocultas de Sahagún e quase como fugitivo recolheu-se aos seus estados. Então os nobres e burgueses reconheceram por toda a parte, nas vilas e castelos, a autoridade da rainha.

D. Teresa ficara residindo em Astorga quando sua irmã fora expulsa. Ali pactuara aliança com o rei de Aragão; mas os acontecimentos de Sahagún vinham colocá-la numa situação excessivamente dificil. Os seus domínios eram demasiado circunscritos: não podia achar neles recursos contra a irmã ofendida mortalmente por ela. O seu aliado, que se retirara para os próprios estados, só de modo indirecto poderia ser útil a Portugal, divertindo as armas leonesas para as fronteiras de Castela. Por outra parte, a morte do conde, sucedida antes de ele obter definitivamente a posse de uma parte da monarquia em que pudesse constituir um reino independente e assaz importante para se fazer respeitar, deixava, até, a província que Afonso VI lhe dera para governar ligada virtualmente a Leão, e se D. Teresa quebrasse os laços de obediência que a uniam à irmã, esse acto seria considerado como flagrante rebelião.

A infanta de Portugal debaixo de gesto angélico escondia o ânimo sagaz e vivo que lhe atribui um escritor, o qual devia conhecê-la e tratá-la de perto, ao menos durante a sua residência em Sahagún. Os factos de catorze anos em que regeu a província cujo governo lhe legara o marido provam que o monge cronista se não enganara em assim a qualificar. É durante esse período que a nacionalidade portuguesa começa a caracterizar-se bem, e à política de D. Teresa se deve, até certo ponto, o nascer e radicar-se em Portugal aquele sentimento de individualidade que constitui barreiras entre povo e povo mais sólidas e duradouras que os limites geográficos de duas nações vizinhas. Como a infanta evitou as consequências das dificuldades em que se lançara e como aproveitou as discórdias civis da Espanha cristã para ir fundando a independência dos seus estados, vê-lo-emos subsequentemente. Agora observemos mais de perto qual era a situação especial da monarquia leonesa, de que ainda o nosso país fazia parte, quando a paz do sepulcro veio atalhar as lidas e intentos do ambicioso conde de Portugal.

Já anteriormente narrámos quais perturbações agitaram a Galiza depois das primeiras discórdias entre Afonso e Urraca. O bispo Gelmires, declarando-se pelo partido do filho do conde Raimundo, restabelecera momentaneamente a paz. Novas dissensões, porém, se alevantaram entre os barões daquela província, movidos por interesses obscuros e dando largas a violentas paixões à sombra da fraqueza do poder real, que disputavam entre si o príncipe aragonês, a rainha e o infante Afonso Raimundes, ou antes os barões e prelados que se chamavam seus defensores. Quando D. Urraca se divorciava do marido ligava-se com os parciais do filho; quando se reconciliava com aquele mostrava-se adversa a estes. Mas, em realidade, cada um dos personagens que figuravam naquele drama, quer príncipes, quer senhores, só pensava em tirar das desgraças públicas a maior vantagem possível. As alianças faziam-se e desfaziam-se rapidamente, porque nenhuma sinceridade havia no procedimento dos indivíduos. Os interesses particulares dos nobres e prelados cruzavam-se com as questões políticas e modificavam-nas diversamente. Era a anarquia descendo dos paços para os municípios e ensinando-lhes com a licença a liberdade, porque, faltando a força à autoridade pública, os burgueses, no meio das vexações de uma fidalguia desenfreada, valiam-se dos próprios recursos para se defenderam e vingarem dos seus opressores.

Talvez, durante a Idade Média, nenhuma época da história peninsular ofereça tantos vestígios da influência municipal nos acontecimentos políticos, tantas resistências das vilas contra o domínio dos senhores, tantos cometimentos das povoações contra os castelos que as assoberbavam, como o primeiro quartel do século XII. Mas isto que era um bem absoluto, um elemento de ordem futura, porque ia estabelecendo o equilíbrio entre as diversas classes, era relativamente um mal e mais uma causa de confusão e de derramamento de sangue: tendia a produzir a desmembração do país; porque as províncias e distritos, não só moralmente, mas também materialmente, se dividiam uns dos outros. 

Assim, durante os sucessos que narrámos, a Galiza, principalmente adita ao infante Afonso Raimundes, vira rebentar no seu seio uma revolução de alcaides de castelos e senhores de terras que tomara por bandeira o nome do rei de Aragão e se derramara ao sul pelo extenso território entre o Ulla e o Minho. Entretanto o bispo de Santiago, Gelmires, que pelo seu engenho enredador e manhoso soubera obter grande influência naquela província, ajuntara um poderoso exército para combater os levantados, e a parcialidade aragonesa foi vencida. Não deixaram, porém, as perturbações de se protraírem ainda por algum tempo.

D. Teresa achava-se viúva, e de três filhos que lhe deixara o conde um só era varão, e esse, o infante Afonso Henriques, apenas de dois ou três anos de idade. O rei de Aragão, com quem ela se ligara em Astorga, era na verdade um poderoso e activo aliado. Mas, repelido de Leão pela assembleia de Sahagún, e perdido o alcaçar de Burgos (então capital de Castela) com muitos outros lugares fortes que ou se rendiam às tropas de D. Urraca ou estavam estreitamente cercados, Afonso I fez proposições de tréguas, que foram aceitas. Desapressada assim da guerra, podia a rainha vingar-se do mal que sua irmã tentara causar-lhe. Não o fez. As actas das cortes de Oviedo, de que adiante havemos de falar, persuadem que a infanta dos portugueses recorrera à submissão para evitar a procela; mas o que não parece menos provável é que o esquecimento da passada injúria não fora em D. Urraca pura longanimidade. Há muitas vezes na história ao lado dos factos públicos outros sucedidos nas trevas, os quais frequentemente são a causa verdadeira daqueles e que os explicariam se fossem revelados. Mas ordinariamente, não passando de enredos obscuros, a notícia de tais factos morre com os que neles intervieram, e o mais que ao historiador cabe, quando crê descortiná-los, é apontar as suas suspeitas e deixar aos que o lêem avaliar o fundado ou infundado delas. É tal doutrina aplicável às considerações que vamos fazer; considerações que, a serem exactas, lançam bastante luz sobre a época de que tratamos e sobre sucessos posteriores, aliás inexplicáveis.

Desde a morte de Fernando Magno a diocese do Porto, como quase todas as dioceses do moderno Portugal, carecia de bispo e era governada por arcediagos. No reinado de Afonso VI a sé portucalense estava unida à de Braga, e esta mesma, metropolitana da Galiza, achou-se por alguns anos sem pastor nos tempos que precederam a eleição de Giraldo. Até pouco antes do falecimento do conde Henrique as coisas conservaram-se no mesmo estado. Nos fins, porém, de 1112 ou, o que é mais certo, entrado o ano de 1113, o francês Hugo, arcediago da sé de Compostela, fora escolhido para bispo do Porto e sagrado no ano seguinte pelo metropolitano bracarense Maurício Burdino. Hugo era homem inteiramente estranho ao clero português, e não nos consta residisse jamais em Portugal ou a ele viesse, senão em companhia de Gelmires, anos antes, para roubar certas relíquias. Era Hugo, além disso, entre os cónegos de Compostela o amigo íntimo do bispo e a pessoa a quem este incumbia com especialidade de ir tratar em Roma os seus negócios mais árduos. A devoção do arcediago para com Diogo Gelmires foi ilimitada, não só nessa época, mas ainda depois, quando, já iguais ambos no episcopado, ele empreendia novas viagens para servir na Cúria romana de simples procurador ao seu antigo patrono, o qual acompanhou para Compostela depois de bispo, não aparecendo memórias dele em Portugal senão em tempo bastante posterior. A escolha, portanto, de um homem que nem sequer tinha ainda o grau de presbítero quando foi eleito e que residia numa província que, segundo havemos visto, estava em relações hostis com Portugal, teve necessariamente causas extraordinárias. Outras circunstâncias se deram nesta elevação de Hugo, relatadas por escritor contemporâneo e testemunha ocular dos sucessos que narra, as quais vão rasgar um pouco mais o véu que nos encobre as causas probabilíssimas, não só dos acontecimentos desse tempo, mas ainda dos subsequentes.

Era no Inverno de 1113 para 1114. Maurício resolvera ir a Tui sagrar o novo bispo do Porto e juntamente o de Mondonhedo, eleito por esse mesmo tempo. O arcebispo convidou para assistir a esta solenidade o prelado compostelano, a cujo cabido ambos pertenciam; mas, receoso dos tumultos que agitavam o Sul da Galiza, ele recusou o convite. Então Maurício, cujos altivos espíritos os sucessos posteriores da sua vida bem mostraram, sabida a recusação de Gelmires, apesar de sair de grave e longa enfermidade e de ser a estação rigorosa, determinou ir celebrar a sagração dos dois novos eleitos em Lerez, na diocese de Compostela. Fraco e doente, Maurício empreendeu tão longa jornada, atravessando as agras serras e os profundos vales que se dilatam entre o Cávado e Lerez. Era a causa deste empenho, diz o escritor que nos guia, o desejo ardente que tinha de se ver com Gelmires para tratarem mais plenamente de remover a discórdia, de restabelecer a paz e de dar tranquilidade à Igreja; porque, no meio das dissensões, os pastores não podiam ajuntar-se para os concílios provinciais e nem sequer fazer com segurança a visita das próprias dioceses. Certificado da vinda de Maurício, o compostelano anuiu aos seus desejos, e aqueles dois célebres prelados encontraram-se, finalmente, em Lerez.

Desta narrativa se vê que os negócios políticos, não menos que os eclesiásticos, influíram na estranha humilhação do arcebispo de Braga, cuja principal virtude não era por certo a abnegação. Tratava-se ao mesmo tempo da paz civil e da eclesiástica. Uma e outra só mui remotamente podiam importar a Maurício pelo que respeitava às perturbações da Galiza, em parte da qual apenas tinha a autoridade indirecta de metropolitano, para não serem essas perturbações causa do seu procedimento. Era, pois, a paz com Portugal que ele pretendia definitivamente assentar; paz que das palavras dos historiador se deduz ter-se já dantes procurado. A eleição de Hugo, do valido mimoso do influente Gelmires, foi acaso o primeiro passo para ela, o preço imposto para se obter. Se não nos enganamos, daqui datam as relações estreitas e, às vezes, misteriosas de D. Teresa com o poderoso prelado de Compostela; e este facto, passado nos últimos meses da vida do conde Henrique, mas em que devia talvez exclusivamente intervir sua mulher, então residente em Portugal, parece-nos ter contribuído mais para salvar este país e a infanta do que a generosidade de D. Urraca. A influência de Gelmires na Galiza era ilimitada, e a soberania da rainha nesta província mais um título vão que uma realidade; título que obtinha à custa de considerar como associado ao império seu filho Afonso Raimundes, à sombra de cujo nome os barões da Galiza dirigidos pelo prelado compostelano gozavam de uma quase independência. Se, como o que havemos relatado nos leva a acreditar, D. Teresa se ligara com Gelmires, qualquer procedimento da rainha contra ela podia trazer-lhe por esse motivo as graves consequências que, por diversa causa, não pôde pouco depois evitar.

1ª Parte

2ª Parte

4ª Parte

5ª Parte

Ver também Reconquista

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