História: Portugal antes de D. Afonso Henriques - 4ª Parte
Por Alexandre Herculano
Todavia
este estado forçadamente pacífico deixava subsistir a incerteza
sobre a sorte
futura de Portugal. D. Teresa, que durante a vida de seu marido usara
apenas do título
de condessa e de infanta, e desses mui raras vezes, contentando-se
ordinariamente da
qualificação mais modesta de mulher do conde Henrique e da de filha
de Afonso VI, começava
já a usar promiscuamente nos seus diplomas do título de infanta, de
rainha e de
ambos juntos. O de rainha prevaleceu por fim: os próprios súbditos,
como vimos, lho davam
já em vida do conde e, até, o papa, depois a lisonjeava com ele. A vastidão relativa
dos seus estados e a importância destes, que aumentava à proporção
que se enfraquecia
a dilacerada monarquia leonesa-castelhana, davam valor material a um título
de que, aliás, vulgarmente usavam todas as filhas legítimas dos
reis, mas que por isso
mesmo mal caberia à filha de Ximena Muniones. Ao passo que a
condessa de Portugal
aceitava aquela denominação, a província cujo governo lhe legara
seu marido parece
ter principiado poucos anos depois a receber dos próprios habitantes
o título de reino.
Mas,
considere-se Portugal naquela época ou como condado ou como
província ou
como reino, é certo que os povos derramados por todo o trato de
terra desde o Minho
até o Mondego começavam a deixar perceber já na segunda e terceira
décadas do século
XII certo carácter de nacionalidade que não é possível
desconhecer. Os sucessos políticos
mostram-no melhor que nenhum outro indício. Nas guerras civis, a que
o mal-fadado consórcio
de D. Urraca e de Afonso I deu origem e que se prolongaram por tantos
anos, as dissensões não rebentavam entre um ou outro estado, entre
uma ou outra província,
mas nasciam de distrito para distrito, de castelo para castelo e
quase de indivíduo
para indivíduo. Os barões ou nobres principais conhecidos
vulgarmente pelos nomes
de condes e de ricos-homens, inimigos muitas vezes uns dos outros,
tomavam cada
qual sua bandeira e satisfaziam ódios particulares a pretexto de
seguirem esta ou aquela
parcialidade. Os cálculos dos ambiciosos, as mudanças de opinião,
as vinganças de
família, as modificações dos partidos, davam frequentemente
àquelas discórdias um carácter
pessoal.
A Galiza, cuja história relativa àquele período chegou
até nós mais particularizada
que a das restantes províncias, não nos oferece outro quadro. Leão
ainda nos
últimos anos desta sanguinolenta luta apresenta quase o mesmo
espectáculo, a ponto que
na capital do reino vinham às mãos os burgueses com os cavaleiros
que guarneciam as
fortificações da cidade, aqueles em nome de Afonso Raimundes, estes
em nome do conde
castelhano Pedro de Lara. Portugal, porém, no meio de tais
divisões, conservou
sempre um notável aspecto de unidade moral. Fosse qual fosse o
partido a que
ele se associasse, todos os barões portugueses se mostravam
conformes, ao menos passivamente,
com o sistema da que, debaixo desse aspecto, podemos chamar política externa
do país. Favorecendo o infante Afonso Raimundes, o rei de Aragão,
ou D. Urraca;
fazendo a guerra por conta de um deles ou por interesse próprio, os
nobres de Portugal
combatiam sempre sob o mesmo pendão, embora tivessem entre si
malquerenças particulares,
de que aliás não faltam vestígios.
Assim o pensamento de desmembração
e independência, que é visível existia já nos ânimos de Henrique
e da sua
viúva e que veio a realizar-se completamente no tempo de Afonso
Henriques, é um pensamento
comum ao chefe do Estado e aos membros dele, sendo talvez os actos
dos príncipes
ainda mais o resultado da influência do espírito público do que a
manifestação espontânea
da própria ambição. Os documentos dos primeiros anos em que regeu ou
notário lhe chamava «rainha», ao passo que ela se denominava
«filha do rei Afonso e infanta».
Os
acontecimentos interiores do condado ou província portuguesa nos
tempos imediatos
à morte de Henrique ignoram-se, e o silêncio das memórias
contemporâneas prova,
pelo menos, que eles foram de bem pequena importância. As tréguas
propostas por
Afonso I e aceitas por D. Urraca trouxeram, senão uma paz
definitiva, ao menos uma
suspensão de hostilidades. Mas a índole do príncipe aragonês não
lhe consentia depor
jamais as armas. Repelido de Castela, voltou ao Aragão para renovar
a guerra com
os sarracenos. Ajudado pelo conde de Perche, Rotrou, assenhoreou-se
de Tudela ainda
nesse ano e cercou Saragoça, cujo dilatado assédio lhe fez levantar
em 1116 o váli almorávida
de Granada, Abu Mohammed.
Entretanto D. Urraca, receosa das
intrigas do
astuto Gelmires e aproveitando o desafogo que lhe concedia o rei de
Aragão, voltava à
Galiza no ano de 1115. O bispo compostelano, que havia sido
maltratado em Burgos por
se mostrar contrário à paz, a qual por outro lado hipocritamente
aconselhava, começara,
de feito, naquela província a indispor ocultamente os ânimos contra
a rainha. Intentou
ela prendê-lo, mas malogrou-se-lhe o intento; porque o soberbo
prelado mostrou-se
assaz forte e resoluto para lhe resistir. Por intervenção dos
fidalgos galegos esta
discórdia asserenou; porém, os acontecimentos posteriores bem
depressa mostraram pouca sinceridade com que se fizera a reconciliação.
Os
ambiciosos desígnios do conde de Portugal, em que sua mulher tomara
tão activa
parte, pareciam inteiramente abandonados por ela. Nas relações com
a rainha de Leão
e Castela, D. Teresa reconhecia a inferioridade da sua situação. Os
actos que serviam
então para indicar a sujeição dos grandes vassalos ao imperante
não eram tão característicos
como o foram em séculos subsequentes, e ainda mais raros e obscuros
se tornavam
nas ocasiões de bandorias e lutas civis, em que os membros mais
poderosos da
nobreza procuravam à porfia sacudir todo o jugo da obediência, para
lhes impor o qual
muitas vezes faltava a força. Assim, no estudo das fases políticas
daquela época, importa
não desprezar as menores circunstâncias dos factos, porque aí se
encontra às vezes
a solução de muitas questões históricas.
Na
antiga capital das Astúrias, em Oviedo, celebrou-se em 1115 uma
assembleia de
bispos, de nobres e de deputações municipais (plebs) com o intuito
de ocorrer aos crimes
e violências que se perpetravam por toda a monarquia, e
especialmente entre os asturianos.
Considere-se aquele numeroso ajuntamento como cortes ou como
concílio, porque
a natureza de tais assembleias celebradas por esses tempos nem sempre
se pode bem
distinguir, é certo que uma parte das suas actas chegou até nós, e
nelas se encontram
disposições, não só eclesiásticas, mas também criminais e
civis. Assistiram a estas
cortes D. Urraca e suas duas irmãs, Teresa e Elvira, com avultado
número de prelados
e barões das diversas províncias da monarquia, à excepção dos de
Portugal. A subscrição
daquele importante documento apresenta-nos a situação relativa das
duas filhas
de Ximena Muniones e da herdeira de Afonso VI.
É
numa assembleia dos principais personagens de Leão e Castela que D.
Teresa figura
como infanta e o seu nome é incluído nas subscrições, não só
depois do da rainha, mas
também depois do de Elvira, sua irmã mais velha: mas, ao passo que
Elvira confirma
e jura em nome dos seus descendentes e súbditos, ela (se não
supusermos aquela
passagem truncada) só fala dos primeiros. Não resulta evidentemente
deste facto o
reconhecimento da superioridade de D. Urraca? E a ausência dos
barões de Portugal e o
silêncio de D. Teresa acerca deles não vem reforçar as nossas
suspeitas de que o espírito
público, ainda mais, se é possível, que os desejos dos príncipes,
tendia energicamente
em Portugal à independência?
Enquanto
estas coisas passavam os sarracenos do Gharb não empreenderam facção
alguma notável pela fronteira de Coimbra; ao menos, nem os
historiadores árabes,
nem as memórias cristãs mencionam nenhuma tentativa por esta parte
desde a morte
de Henrique até 1116. A guerra, como já dissemos, fazia-se entre os
almorávidas e
os condes e capitães das fronteiras sertanejas de Toledo, e
principalmente, em Aragão, pelas
cercanias de Saragoça e de Lérida. No Ocidente as entradas e
algaras do sertão parece
terem cessado; mas a cena de mútuas assolações apenas mudou de
teatro. O progresso
da arte de navegar e da ciência da guerra marítima era ainda então
mui diverso
entre os habitantes das províncias cristãs do Ocidente da Península
e os sarracenos
espanhóis e africanos. Aqueles apenas construíam pequenas
embarcações destinadas
ao comércio e à navegação costeiros, nas quais não ousavam
aventurar-se ao largo:
estes possuíam navios armados, com que se engolfavam um pouco mais
no oceano,
posto que não para largas viagens, e com que tentavam expedições
militares.
Saindo
de Almeria, Sevilha, Silves, Lisboa e outros portos, corriam as
costas de Portugal,
Galiza e Astúrias e, salteando subitamente os lugares próximos das
praias, roubavam
e incendiavam as aldeias e, até, os paços fortificados, e matavam
ou cativavam os
que podiam colher às mãos, destruindo os gados e plantios; enfim, espalhavam
tal terror entre a gente dos campos que os habitantes das vizinhanças
do mar
durante a força do estio abandonavam os seus lares ou escondiam-se
em cavernas, onde
pudessem ao menos salvar a vida dos repentinos saltos dos sarracenos.
Por esta época
tinha crescido a tal ponto a audácia dos inimigos que se tornava
indispensável ocorrer
a tamanha ruína. O activo bispo de Compostela, mandando vir de
Génova, onde então
florescia a ciência naval, obreiros hábeis, ordenou se construíssem
duas galés, que,
dirigidas por pilotos genoveses e guarnecidas com soldados e
marinhagem de Padrón,
saíram para as costas do Gharb. Os estragos que aí fizeram
desagravaram, até certo
ponto, os cristãos dos que antes haviam padecido. Com esta
expedição, em que foram
destruídos muitos navios dos sarracenos, Portugal ganhou o ficarem
os seus portos
mais livres para o pequeno comércio costeiro que então fazia, e a
Galiza convertida
em alvo principal da vingança dos sarracenos, que contra ela
especialmente dirigiram
nos anos seguintes as suas tentativas.
Ao
mesmo tempo que Diogo Gelmires buscava assim atrair as simpatias populares,
defendendo a Galiza das agressões dos mouros, não se esquecia de
promover por
todos os outros meios a realização das suas ambiciosas miras. Quais
estas fossem transluz
do seu panegírico histórico (feito por ordem dele próprio), o qual
chegou até nós
com o título de Historia Compostellana. Viviam os autores deste
livro em tempos demasiado
rudes e faltos de arte, e por isso não souberam dar às acções do
seu patrono o aspecto
de honestidade e rectidão que intentam atribuir-lhes. Gelmires era
homem de intolerável
vaidade e de não menor cobiça, e para satisfazer estas duas paixões
nenhuns meios
julgava vedados: a corrupção, a revolução, a guerra, a
insolência, a humilhação, os
enredos ocultos eram as armas a que sucessivamente recorria, conforme
as circunstância lhe
indicavam a conveniência de usar de umas ou de outras.
Desde a sua aparente
reconciliação com D. Urraca, de que há pouco fizemos menção,
parece que ele não
cessara de promover secretamente as perturbações civis. Pedro
Froilaz, conde de Trava,
era na aparência o cabeça de um partido que pretendia despojar a
rainha do governo
ou pelo menos separar da coroa a Galiza e os distritos de Salamanca e
Zamora (Extremaduras)
para constituir enfim um governo, na realidade independente, para o
seu pupilo
Afonso Raimundes. Havia estreita amizade entre Gelmires e o conde de
Trava, e as
suspeitas de conivência do bispo com os partidários do infante,
suspeitas que a história
parece legitimar, deram provavelmente motivo ao procedimento de D.
Urraca.
Esta,
vindo à Galiza, segunda vez tentou prender o ardiloso prelado, que
segunda vez lhe
baldou os intentos, resistindo com mão armada. Cedeu a rainha e,
quando voltou para
Castela, senão a mútua confiança ao menos a paz parecia
restabelecida. Mas é evidente
que entre ambos devia subsistir inimizade e temor. Não tardou nova
tentativa de
prisão do lado de D. Urraca, nem Geimires a tirar a máscara.
Declarou-se pelo infante,
e os barões da Galiza que ainda se não haviam unido ao conde de
Trava seguiram,
de boa ou de má vontade, o exemplo. Pedro Froilaz dirigiu-se então
com o seu
pupilo a Compostela; mas a rainha retrocedeu imediatamente para a
Galiza com os cavaleiros
que pôde ajuntar para socorrer os poucos que ainda obedeciam ali à
sua autoridade.
Os descontentes da nova revolução começaram a unir-se-lhe, e ela
marchou para
Compostela, ao mesmo tempo que procurava com largas promessas mover o
ânimo de
Diogo Gelmires pela cobiça a trair a causa que tinha abraçado.
Enquanto
o conde de Trava saía com o seu exército a fim de procurar ensejo
de dar
batalha a D. Urraca, os parciais desta, que eram a maior parte dos
burgueses, abriam-lhe
as portas. Já, porém, o bispo fizera com que o infante se retirasse
da cidade, enquanto
ele, vendo-se abandonado do povo que o aborrecia cordialmente, se
fortificava no
edifício da catedral com os seus homens de armas. Conhecendo, enfim,
que era inútil a
resistência, humilhou-se constrangido pela necessidade, tanto mais
que o conde de Trava,
de cujo exército muitos trânsfugas tinham passado para o campo da
rainha, não se
atrevera a acometê-la e se havia retirado.
Todavia,
com a fuga de Pedro Froilaz e com a submissão do turbulento
Gelmires, o
mais influente e perigoso inimigo de D. Urraca, ela não obteve a
paz. Um dos barões da
Galiza, Gomes Nunes, senhor de muitos castelos e que trazia a soldo
grande número de
homens de armas e peões, prosseguiu na guerra a favor de Afonso
Raimundes. D. Urraca
intentou subjugá-lo, marchando a sitiar os lugares que tinham voz
pelo infante; mas
um novo adversário veio embargar-lhe os passos e fazer com que, em
vez de cercar Gomes
Nunes, se visse a si mesma sitiada.
Estas
coisas passavam-se nos primeiros meses. de 1116. No ano antecedente, como
dissemos, D. Teresa assistira pacificamente com sua irmã às cortes
de Oviedo, e nem
a história nem os documentos dessa época nos indicam que houvesse
motivos alguns
extraordinários para a boa harmonia se quebrar entre as duas irmãs.
Fora escusado
procurar outro que não seja a soltura das paixões própria de
tempos semi-bárbaros.
Os pretextos que hoje se buscam para coonestar ainda as guerras mais injustas
sabiam-se aproveitar, se ocorriam, mas não se faziam nascer, nem se inventavam,
com o profundo artifício da moderna política. A ambição, a
turbulência, a ingratidão
eram ferozmente sinceras, quando a hipocrisia não alcançava
facilmente disfarçá-las.
Se, como todas as probabilidades o insinuam, Diogo Gelmires, ligado
com Pedro
Froilaz, era a inteligência que dirigia ocultamente a guerra civil
na Galiza, e se entre
ele e D. Teresa havia as relações cuja existência parece resultar
da elevação de Hugo
ao episcopado da diocese portucalense, nada mais natural do que fazer
entrar a infanta
dos portugueses na vasta conspiração que, rebentando nas
Extremaduras, tão rapidamente
lavrou por toda a Galiza, até porque à viúva do conde Henrique não faltariam
desejos de ir reconquistando a nascente independência dos próprios
domínios, a
qual, pela sua acessão à assembleia de Oviedo, de certo modo
resignara. Seja o que for,
é certo que, tendo D. Urraca dividido o exército para cercar os
castelos dos rebeldes e
demorando-se no de Suberoso, o conde Pedro Froilaz e a infanta D.
Teresa com tropas numerosas
vieram cercá-la a ela. Então a rainha fez aproximar as suas forças
e, protegida
por estas, retirou-se para Compostela.
Ficaram
desbaratados o conde e a infanta, ou D. Urraca pôde apenas evadir-se
ao cerco?
As palavras do único historiador contemporâneo que nos transmitiu
aqueles sucessos
parece favorecerem a segunda interpretação; mas o que se passou
depois desse acontecimento
persuade a primeira. Em Compostela os burgueses tinham-se valido das desinteligências
da rainha com o bispo, senhor da cidade, para formarem uma dessas ligas
populares que depois, dilatadas e aperfeiçoadas, tão célebres se
tornaram na história
de Espanha com o nome de irmandades. A vida municipal surgia enérgica
em meio
das lutas dos poderosos, e D. Urraca aproveitara habilmente a
conjuração dos compostelanos
para anular a influência e os recursos do prelado, aproveitando-a e colocando-se
de certo modo à frente dela. Voltando de Suberoso, demorou-se mui pouco
ali, partindo para Leão, e, apesar de que os burgueses a
aconselhavam a que se vingasse
de Gelmires, deixou-o em paz, posto que humilhado, talvez para que o
odioso da
sua presença alimentasse o ardor dos populares e ao mesmo tempo
servisse de seguro penhor
de mútua união e de lealdade para com ela. Se os inimigos não
houvessem sido destroçados,
fora pouco provável que D. Urraca abandonasse assim a Galiza, aonde
só viera
para os castigar. É por isso que nos parece mais de crer que D.
Teresa e Pedro Froilaz
fossem desbaratados em Suberoso.
Mas
a partida da rainha foi como o sinal de novas lutas. O conde de Trava
com seus
dois filhos, Bermudo e Fernando, o qual já anteriormente se
distinguira no meio destas
perturbações assolando o distrito saliniense, avançou
imediatamente com os seus aliados
para as cercanias de Compostela, matando e cativando os homens e
destruindo os
gados. Teresa, afeita à dura vida dos campos, talvez o acompanhava
nesta guerra. Aí, no
meio das fadigas e riscos dos combates, despontaria essa afeição
entre Fernando de Trava
e D. Teresa, que tão notável se tornou anos depois e que veio
produzir em Portugal
cenas análogas às que se representavam então na Galiza.
Os
socorros dados por D. Teresa ao conde Pedro Froilaz não foram
gratuitos. Os seus
domínios dilataram-se, conforme parece, desde esta época, para além
do Minho pelos
distritos de Tui e de Orense, cujos bispos já seguiam, três anos
depois, pelo menos,
a sua corte, exercendo ela no território de Tui actos de senhorio
por largo tempo. Mas os primeiros anúncios da procela que se alevantava nas
fronteiras meridionais dos
seus estados começavam a aparecer, e é provável que para ocorrer a
ela voltasse então
a Portugal com as forças que tinha na Galiza; porque nenhuns
vestígios mais encontramos
da sua intervenção nos bandos civis que assolavam aquela província.
Enquanto
D. Teresa buscava assim alargar ao norte os limites dos próprios estados,
aproveitando as inquietações da monarquia, os sarracenos
atravessavam os ermos
que se estendiam entre as fronteiras portuguesas do sul e as praças
do Gharb na margem
direita do Tejo, e vinham cercar o castelo de Miranda sobre o Doessa,
ao sueste de
Coimbra. Subjugado o de Miranda, metidos à espada ou reduzidos à
escravidão os seus
defensores, os muçulmanos, atravessando para o poente, ousaram
passar o Mondego
e acometer o castelo de Santa Eulália, junto de Montemor. A sorte
deste foi igual
à do primeiro; porventura ambos mal defendidos em consequência da
expedição na
Galiza. Os sarracenos arrasaram-no até os fundamentos e depois,
retrocedendo, dirigiram-se
ao de Soure. Aqui, porém, o terror dos habitantes tornara inútil o cometimento;
porque, lançando fogo àquela povoação e desamparando-a, haviam-se acolhido
aos muros de Coimbra. Miranda, Soure, Santa Eulália, com outros
castelos que por
esses tempos existiriam, formavam uma linha curva de fortificações
avançadas, que defendiam
a capital do distrito pelo lado do oriente, meio-dia e poente.
Destruídos eles, Coimbra
ficava exposta ao primeiro embate dos inimigos. Esse, talvez, foi o
objecto desta
entrada, feita ainda em 1116 e que os historiadores árabes confundem
com a do ano
seguinte, dirigida pessoalmente pelo príncipe dos almorávidas; ao
passo que, se atendermos
ao nome que as memórias cristãs dão ao general sarraceno na
invasão deste ano,
ela parece ter sido capitaneada pelo váli de Córdova, Yahya Ibn
Taxfin.
Por
este mesmo tempo Afonso de Aragão desbaratara o fronteiro almorávida Abdullah
Ibn Mezdeli e, talando os distritos de Saragoça e Lérida, tomava ou
destruía grande
número de castelos dos sarracenos. Irritado com estes revezes, o
emir de Marrocos
resolveu passar à Espanha para se vingar dos danos recebidos,
mandando marchar
imediatamente contra o rei aragonês seu irmão Temin e os vális de
Córdova e de
Valência. Enquanto estes avançavam para as fronteiras orientais,
ele passava o Estreito
e vinha substituí-los nas do ocidente. Reunindo às numerosas tropas
de África algumas
forças almorávidas de aquém-mar, atravessou o Gharb e
encaminhou-se para Coimbra.
Estava desguarnecida ou derribada a linha de castelos que a defendia,
e Ali veio
sem resistência assentar campo em volta dela (Junho, 1117). D.
Teresa achava-se então
aí. Tal e tão repentina foi a invasão dos sarracenos que a muito
custo a rainha se pôde
salvar dentro dos muros da cidade. Os arrabaldes ficaram reduzidos a
cinzas e as fortificações
foram combatidas durante vinte dias sem interrupção de um só. Defenderam-se,
porém, os cercados vigorosamente, e o emir, conhecendo que era
inútil o
insistir, retirou-se, assolando tudo a tal ponto, que - diz um
escritor árabe - subsistiram
por largo tempo claros vestígios daquela terrível entrada. De
feito, ainda sete
anos depois o lugar onde existira Soure achava-se convertido em
habitação de feras.
Ali
passara de novo o Estreito e voltara a Ceuta, satisfeito com a
vingança que tomara
dos cristãos. Nos distritos, porém, do Leste, as armas muçulmanas
haviam sido mal
sucedidas. Temin, destroçado pelos aragoneses, tinha-se retirado
para Valência, e finalmente
Afonso I viu realizada daí a pouco a sua antiga pretensão de
conquistar Saragoça
(1118). Dez mil almorávidas, que haviam sido mandados de além-mar
em socorro
daquela cidade, chegaram tarde para a salvar, e só serviram para
tornar mais brilhantes
as vitórias do rei aragonês, ao qual bem quadrava o apelido de
Lidador. Transpondo
o Ebro para o sudoeste, Afonso e os seus cavaleiros precipitaram-se
como uma
torrente pelo território muçulmano e, desbaratando mais uma vez
Temin na terrível,
batalha de Cotanda (Junho, 1120) apossaram-se de Kalat Ayub
(Calataiud) e sucessivamente
de muitas outras povoações importantes dos sarracenos.
Ao
passo que o rei de Aragão prosseguia tão vigorosamente a guerra
contra estes, continuava
pelos seus capitães a disputar a D. Urraca a posse da coroa de Leão
e Castela,
ou, como dizem os historiadores árabes, não cessava de fazer
entradas nos territórios
de Al-Djuf (do Norte). Ainda durante o ano de 1116 o conde de Trava e
o seu pupilo
se haviam reconciliado com a rainha por diligência de Gelmires, que,
odiado do povo,
constrangido a guerrear o conde, seu oculto aliado, e temido por D.
Urraca, só assim
podia sair da situação dificultosa em que afinal o tinham colocado
a dobrez e a perfídia
do seu carácter. À sombra desta pacificação, em que o conde de
Trava se não esqueceria
de a incluir, D. Teresa pôde empregar todos os seus recursos em
resistir à furiosa
invasão do emir de Marrocos, o que de outro modo lhe houvera sido
impossível.
Neste
respiro que davam à monarquia as discórdias civis, a guerra com o
Aragão vinha substituí-las.
Em 1117 um exército combinado de Leão, Galiza, Estremaduras,
Castela e Astúrias
marchou para a fronteira aragonesa, e a luta protraiu-se, mais ou
menos violenta,
entre os dois estados pelos anos seguintes até à morte de D.
Urraca, sucedida em
1126, como adiante veremos.
Os
reveses recebidos nas fronteiras orientais, as perturbações
intestinas e, mais que
tudo, a revolução que a nova seita de Al-Mahdi ou dos almóadas
produziu brevemente
em África obrigaram os almorávidas a afrouxar nas correrias pelas
terras dos
cristãos. Se acreditássemos as crónicas árabes, em 1120 Ali teria
feito uma segunda entrada
em Espanha e, marchando para o Gharb, houvera cercado e tomado Lisboa
ou,segundo
outros, uma cidade chamada Medina Sanábria, voltando para a África
em 1121,
depois de assolar e submeter todo o Ocidente. Mas o silêncio dos
monumentos cristãos
acerca destes sucessos extraordinários, a confusão e variedade que
reinam a semelhante
respeito nas relações árabes e, até, as contradições em que
elas laboram, tudo
nos persuade de que os escritores muçulmanos quiseram, com entradas
e vitórias imaginárias,
tornar menos triste o quadro das perdas experimentadas nos distritos orientais
e do nenhum resultado importante que o emir tirara no Ocidente da
passada tentativa
contra D. Teresa.
No
decurso daquela calamitosa época, em que as províncias do Norte e
Oeste da Península
eram sucessivamente oprimidas e devastadas pelas discórdias civis,
pela guerra
com o rei de Aragão e pelas invasões dos almorávidas, os três
anos de 1117 a 1120
passaram comparativamente tranquilos, sobretudo para Portugal.
Nenhuns indícios se
encontram de que D. Teresa ou os ricos-homens dos seus estados
interviessem na empresa
guerreira de D. Urraca e de seu filho contra os aragoneses, para a
qual vimos terem
marchado as tropas de quase todos os outros distritos. Creríamos que
os barões de Portugal
procediam em tudo guiados pelo pensamento de consolidarem pouco a
pouco as
barreiras entre a monarquia leonesa e a província que habitavam, se
fosse lícito atribuir
a guerreiros rudes e, por assim dizer, semi-bárbaros um sistema ao
mesmo tempo generalizado
e profundo, que honraria ainda uma época muito mais ilustrada.
Todavia, é impossível
deixar de reconhecer na série dos factos que ilustram a história do
estabelecimento da
independência portuguesa certo instinto de vida política individual
nas populações
aquém do Minho, que já anuncia nelas a futura perseverança com que resistiram
desde então até hoje a assimilar-se ao resto da Espanha e a
incorporar-se nela. E,
ao passo que este espírito público se desenvolve e progride, vemos
D. Teresa, recebendo
em Leão e Castela o título indefinido e singular de infanta dos
portugueses, exercitar
entre estes um poder que torna duvidoso o predomínio de D. Urraca e,
até, conservar
o senhorio de Tui e de Orense, fazendo com que sigam a sua corte os
prelados daquelas
dioceses.
De
feito, a posse de Tui foi o motivo ou o pretexto de um rompimento de hostilidades
em 1121. O território do nascente Portugal, que até aí escapara de
ser teatro das
lutas civis, teve finalmente o seu quinhão nos males que oprimiram a
monarquia durante
o longo e desgraçado governo de D. Urraca. As circunstâncias deste
sucesso e as
suas consequências políticas foram assaz graves para que hajamos de
lançar toda a luz
possível sobre ele, e isso não será fácil enquanto pretendermos
desligar os acontecimentos
desta parte da Espanha dos que eram comuns à monarquia leonesa. Em nosso
entender o erro vulgar dos historiadores nacionais e o quererem
determinar data precisa
à independência de Portugal; é o imaginarem como simples e,
digamos assim, fundido
de um só jacto um sucesso complexo, que, progredindo com fases mais
ou menos
rápidas, veio a ser por fim uma coisa definida e completa. Assim,
segundo a época
que escolhem para assinalar a instantânea passagem do reino de
Portugal do não ser
à existência, vêem-se obrigados a rejeitar como falsos ou a
desprezar todos os monumentos
que se opõem à própria opinião, ao passo que, por sua parte,
alguns escritores castelhanos
rejeitam ou fingem esquecer os monumentos em que essoutros se estribam.
É por este modo que o diploma se tem oposto ao diploma, a crónica à
crónica, a
interpretação à interpretação, com uma gravidade e um peso de
erudição de que é impossível,
às vezes, deixar de sorrir. O historiador, porém, que não se
colocar à luz falsa
em que um mal-entendido pundonor nacional pôs os que precederam,
longe de abandonar
as fontes históricas só porque se contrapõem a uma opinião
formada antecipadamente,
aceita-as todas, quando intrinsecamente puras e deduz delas as suas conclusões.
Os que procedem por diverso modo não somente avaliam mal esse grande facto
da independência, mas ainda, fechando-se num horizonte limitado,
atribuem à nação
logo no seu berço uma individualidade tão profunda que se
inabilitam para
avaliar
bem os homens e as coisas, desprezando as soluções que a factos,
aliás inexplicáveis,
lhes ministraria a história das paixões e dos interesses que então
se agitavam
no seio da monarquia leonesa, ligada ainda ao novo estado que se
formava no Ocidente
da Península por mil laços que só gradualmente se podiam quebrar.
Assim os sucessos
ocorridos em Portugal durante as primeiras décadas do século XII
são quase sempre
determinados pelos acontecimentos comuns da Espanha cristã. É o que
até aqui temos
visto, e é o que ainda veremos por alguns anos na prossecução
desta narrativa.
Como
dissemos, D. Teresa tinha-se apossado, segundo todas as
probabilidades em 1116,
de uma parte do território da Galiza, e com certeza era senhora de
Tui e Orense no
ano de 1119, em que os bispos daquelas duas dioceses seguiam a sua
corte e confirmavam
em Coimbra as mercês que ela fazia aos seus súbditos de Portugal. A
boa harmonia,
ao menos aparente, reinava, todavia, entre ela e sua irmã, e o rei
de Aragão considerava
a viúva do seu antigo aliado como ligada intimamente com os próprios inimigos.
Na assembleia de Oviedo a infanta dos portugueses tinha de certo modo definido
a sua situação política relativamente a D. Urraca: a independência
completa de Portugal,
a sua desmembração da monarquia não estava consumada, e a guerra
que D. Teresa
fizera na Galiza em 1116 provava tanto a independência dos seus
domínios como
provaria a dos do conde de Trava ou dos outros fidalgos galegos a
quem ela auxiliara.
Feita a paz nesse mesmo ano, as coisas tornaram naturalmente ao
antigo estado,
e a espécie de supremacia de D. Urraca, reconhecida por D. Teresa no
ano antecedente,
continuava a subsistir. Unicamente a retenção de uma parte da
Galiza meridional
pela infanta era um facto que os sucessos posteriores nos mostram ter
ficado indefinido.
A
rainha de Leão e Castela visitou essas províncias por duas ou três
vezes nos fins de
1120 e nos primeiros meses de 1121. A guerra de Aragão corria
frouxamente, porque Afonso
I, empenhado nas suas gloriosas campanhas contra os sarracenos, não
podia conduzi-la
com grande vigor. A esta causa se atribuiria a volta de D. Urraca ao
outro extremo
dos seus estados, se não fosse mais provável desse causa a essa
vinda a trama que
de novo se urdia para lhe tirarem a coroa e porem-na na cabeça do
infante Afonso Raimundes,
chegado à puberdade, para quem naturalmente se voltavam os olhos de todos
os poderosos senhores inimigos da rainha. A fim de podermos explicar
razoavelmente as
circunstâncias que concorreram para a invasão dos estados de D.
Teresa em 1121,
é necessário conhecer essa trama, em que, como era de esperar,
figura, posto que entre
sombras, o façanhoso Gelmires.
Este
homem, cuja vaidade era igual à sua cobiça, desejava ardentemente
ver elevada
a sé de Santiago à categoria de metropolitana. Tinha tentado o
negócio no tempo
dos papas Pascoal e Gelásio, sem .que o chegasse a alcançar. A
eleição de Calisto II
veio reanimar-lhe as esperanças. Calisto era irmão do conde
Raimundo, e estava, por consequência,
ligado por estreitas relações com a Espanha. Pedia Gelmires que
fosse transferida
a cadeira arquiepiscopal de Braga para Compostela, transferência
tanto mais importante
quanto era esse o meio de humilhar o grosseiro Pelágio ou Paio
Mendes, sucessor
de Burdino e irmão dos senhores da Maia, Soeiro e Gonçalo Mendes. D. Paio
tinha-se apossado de vários bens na diocese de Braga que pertenciam
à sé de Compostela
e recusara restituí-los. Bastava isto para suscitar o rancor do
prelado compostelano;
mas acrescia que D. Paio, como metropolita da Galiza, tinha necessariamente
nesta província uma superioridade que mortificava Gelmires. Giraldo, cónego
de Santiago, solicitava na Cúria a pretensão, empregando as
importunações, o dinheiro
e a protecção de poderosos barões franceses, dos quais o bispo
Gelmires soubera
captar a benevolência. O papa, eleito em França, reservava este
negócio para o resolver
no concílio que ia reunir em Tolos a (1119), quando uma dificuldade
política veio
suscitar novos embaraços às miras do ambicioso compostelano.
Constrangido,
como já advertimos, pela situação falsa em que se colocara, Gelmires,
durante os tumultos da Galiza em 1116, tinha-se posto em campo contra
o conde
Pedro Froilaz e contra os demais fautores de Afonso Raimundes.
Provavelmente estes
persuadiram-se de que a reconciliação do prelado com a rainha havia
sido sincera, e
a paz que ele solicitou pouco depois entre os dois partidos mais
confirmava esta suspeita.
Na ocasião, pois, em que Giraldo trabalhava activamente no negócio
a que fora mandado,
o papa recebeu uma carta em nome do infante, dirigida pelo arcebispo
de Toledo,
Bernardo, na qual Afonso Raimundes se queixava a seu tio do
procedimento de Gelmires,
acusando-o de lhe fazer todo o mal que podia e de pretender
despojá-lo da herança
de seus avós. Calisto parece que amava com ternura o filho de seu
irmão Raimundo:
as lágrimas rebentaram-lhe dos olhos ao ler a carta. Desde então
pensou seriamente
em segurar a coroa na cabeça de Afonso Raimundes. Começou por
escrever a
Gelmires, pondo-lhe por condição para obter o arqui-episcopado
favorecer constante e energicamente
o partido do rei seu sobrinho. O compostelano enviou então ao papa
um homem
de íntima confiança, Hugo, bispo do Porto. Ignoramos qual era a
resposta que ele
levava; mas é certo que, ajudada esta por avultadas quantias e pela
influência do abade
de Cluny e dos barões franceses, os desejos de Gelmires ficaram
satisfeitos sem a supressão
do arcebispado bracarense. À sé de Santiago, elevada à dignidade
de metrópole,
deram-se por sufragâneos os bispados que no tempo dos mouros
dependiam de
Mérida, e, para humilhar D. Paio, o seu adversário obteve a
nomeação de legado do papa
nas províncias eclesiásticas de Compostela e Braga (Fevereiro,
1120). Na bula da erecção
da nova metrópole, Calisto declara que os rogos de Afonso Raimundes contribuíram
para esta resolução. Semelhantes palavras, se as compararmos com as queixas
feitas no ano anterior, provam que Gelmires nesta concessão do
pontífice recebia
o preço da sua perfídia para com D. Urraca 162 . No meio dos
enredos políticos o novo
legado não se esqueceu de D. Paio, cometendo contra ele vexames tais
que este recusou
assistir ao sínodo convocado por Gelmires no ano de 1121, recusa que
o papa aprovou
depois como justa, exemptando a diocese bracarense da legacia do compostelano.
O receio de que este pretendesse aproveitar-se da sua situação para
o esbulhar
da posse de uma parte do senhorio de Braga, sobre o qual versavam
entre
ambos
disputas, foi talvez o motivo por que D. Paio buscou obter da rainha
de Leão e Castela,
não só a confirmação do couto da sua sé, mas igualmente que este
fosse ampliado.
O diploma expedido por essa ocasião, o qual ainda existe, nos mostra
que D. Urraca
se considerava como revestida, ao menos de direito, da suprema
autoridade na província
de Portugal.
A
confirmação do couto de Braga por D. Urraca parece-nos
evidentemente correlativa às bulas que o papa não cessava de recomendar ao arcebispo a causa do jovem Afonso,
e, porventura,
estas recomendações importavam as do cumprimento de uma promessa.
Ao mesmo
tempo o duque da Aquitânia, Guilherme IX, e a condessa da Flandres,
parentes do
infante, escreviam a Gelmires cartas análogas, chegando o duque a
declarar-lhe que estava
resolvido a empregar quaisquer meios para fazer seu sobrinho herdeiro
de Afonso
VI e avisando-o de que sobre tal matéria se entendesse com Pedro
Froilaz.
Então
o ardiloso prelado impetrou de Calisto II uma bula que o desligava
dos juramentos
feitos a D. Urraca e lhe impunha o dever de guardar aqueles que
fizera ao infante.
Depois disto ele se cria habilitado para entrar em alguma tentativa,
cuja natureza
é fácil de adivinhar; mas o cardeal Boso, também legado em
Espanha, dissuadiu-o
disso. Posto que, dizia ele, muito desejasse ver levar o negócio a
cabo, aconselhava-o
não tentasse nada de leve, porque lhe estavam armadas por toda a
parte ciladas.
Na sua opinião, o melhor seria fazer a paz com a rainha. Assim
procedia o arcebispo,
ao menos simuladamente. Chegava a perseguir aqueles mesmos que mais seus
parciais eram, como Fernando Peres de Trava, alferes-mor ou chefe das
tropas arqui-episcopais e que da mão de Gelmires tinha alcaidarias e terras em soldo ou préstamo.
Um castelo que este havia edificado no território de Santiago foi
derribado, e sorte
igual coube a vários outros de diversos nobres.
Apesar destas
demonstrações exteriores, D.
Urraca parece que não ignorava os enredos daquele homem astucioso e
sem fé;
mas, ou porque já não pudesse lutar com ele frente a frente ou pela
fraqueza própria do
seu sexo, não ousava tomar uma resolução enérgica. As tentativas
indirectas para o prender
eram desfeitas pelo prelado, e a rainha para o mitigar via-se
constrangida a aumentar-lhe
a influência e o poderio. Nestes enganos mútuos, nesta guerra
covarde e tenebrosa
passaram os primeiros meses de 1121. Então ocorreram os sucessos que interessam
especialmente a nossa história, para explicar os quais era preciso compreender
a situação dos dois partidos e, sobretudo, a de Diogo Gelmires,
espécie de Mefistófeles
sacerdotal, cujo carácter é assaz negro para ainda sobressair no
quadro da anarquia
e dos crimes que despedaçavam o seio da monarquia leonesa.
O
moço Afonso Raimundes simulava entretanto não proceder de acordo
com os fidalgos
do seu partido, que aliás trabalhavam, como o tempo mostrou, em
dispor os elementos
de uma revolução, cujo resultado, diferente do das tentativas até
aí feitas, fosse
decisivo. D. Urraca veio então a Compostela acompanhada de seu
filho. Foi nessa ocasião
que se resolveu a guerra com Portugal, dando-se por motivo que D.
Teresa havia
noutro tempo invadido Tui e as suas cercanias e que retivera esses
territórios debaixo
do próprio domínio. Seria, talvez, esse o fundamento da
empresa; mas tem visos
de ser apenas um pretexto especioso, se, como cremos, a ocupação
daquele território
remonta a cinco anos antes, durante os quais as duas irmãs
conservaram entre si
paz, quer fingida, quer sincera. D. Urraca, aproveitando a aliança
aparente de Gelmires,
tinha feito danos consideráveis aos seus inimigos na Galiza: o mais
provável é
que D. Teresa estivesse ligada com eles e que sua irmã, instruída
até certo ponto do que
se forjava, quisesse dar um golpe no adversário mais poderoso, como
era D. Teresa, que
dispunha dos recursos de uma província inteira. Porventura, também
Gelmires aconselhava
este movimento, ou para despertar o incêndio ou para entreter a
rainha numa
guerra perigosa, cujos cuidados a distraíssem de seguir o fio da
conspiração na
Galiza.
Já
no princípio deste ano ou do antecedente, Fernando Peres, filho de
Pedro Froilaz
e alferes-mor do arcebispo, vivia na corte de D. Teresa, de quem
obtivera os mais
importantes governos que lhe podiam ser confiados, os do distrito do
Porto e do distrito
de Coimbra, com o título de cônsul ou conde, como o tivera o
borgonhês Henrique. Era preciso que as suas relações com a infanta dos
portugueses fossem antigas
e a sua influência no ânimo dela excessiva para que um simples
cavaleiro e, posto
que filho segundo de uma das mais nobres famílias de Espanha,
soldado do arcebispo
de Compostela, subisse a tão elevados cargos. A boa harmonia do
filho de Pedro
Froilaz com o prelado subsistia ainda depois da guerra. Seguindo cada
qual o campo
de uma das irmãs, a amizade entre os dois não acabara, porque na
realidade deviam
ser estreitas as suas relações ocultas. O vínculo que os unia
pode, em parte, conhecer-se
do que até aqui temos relatado.
Resolvida
a invadir os estados da irmã, D. Urraca marchou com seu filho para
Tui na
Primavera ou no estio de 1121. Seguiu-a, posto que constrangido,
o façanhoso Gelmires,
acompanhado dos seus homens de armas e dos cavaleiros vilãos de Compostela,
que por seus foros não eram obrigados a avançar até o distrito de
Tui, mas que
ele teve artes de arrastar consigo. Sabida a aproximação do
exército galego, D. Teresa
com as forças que pôde coligir veio acampar na margem fronteira.
Mais próximo ao
lado de Portugal, o rio fazia naquele sítio uma ínsua. A posse dela
facilitava a passagem,
mas defendiam-na as barcas portuguesas que vogavam pelo Minho. Os destros
marinheiros de Padrón e alguns compostelanos, com vários cavaleiros escolhidos,
embarcaram da parte oposta e vieram acometê-las. Vencedores, em
breve se apossaram
da ínsua. Este sucesso levou o terror pânico aos arraiais de D.
Teresa, que foram
abandonados, e, quase sem combate, D. Urraca entrou no território
inimigo.
Nesta
época de barbaridade e bruteza, a guerra entre os cristãos
assemelhava-se nas devastações
às correrias mútuas entre eles e os sarracenos. O exército galego,
descendo para
o interior da província, incendiava, roubava e assolava impunemente
as povoações e
os campos, porque, fugindo desordenadas, as tropas portuguesas se
haviam dispersado.
A conquista de Portugal corria rápida. Gelmires, porém, pesou as consequências
de tal conquista e começou, segundo parece, a trabalhar ocultamente
para que
se não realizasse um acontecimento que, aumentando a força moral e
material do partido
da rainha, empecia o progresso da conspiração, cuja existência os
factos até aqui narrados
nos revelam.
Capitaneando
forças avultadas, cuja falta necessariamente devia embargar a continuação
da guerra, este homem que, para segurar no rosto a máscara hipócrita
de uma
fidelidade em que a própria rainha não cria e da qual ele pedira ao
papa o absolvesse,
não duvidara combater os seus mais íntimos aliados, nem
destruir-lhes os castelos
e propriedades; este homem vingativo e cruel sentiu um súbito horror
das atrocidades
cometidas no território português e um desejo invencível de voltar
ao exercício
das suas funções episcopais, pretendendo recolher-se para a Galiza
com as tropas
compostelanas. Todavia, D. Urraca, suspeitando provavelmente qual
seria o fito deste
inesperado acesso de amor da humanidade, concedeu que os burgueses de Compostela
se retirassem, atentos os seus privilégios, mas recusou a licença
ao arcebispo
e aos homens de armas que o seguiam. Não descoroçoou ele; escreveu
ao legado
Boso, que já vimos não era alheio, nem como agente de Calisto II o
podia ser, às tramas
que se urdiam. O legado respondeu-lhe congratulando-se com ele das
vitórias obtidas
pela rainha e pelo filho; mas recomendando-lhe ao mesmo tempo com a
maior eficácia
que por nenhum caso deixasse de comparecer no concilio que se ia
celebrar em Sahagún.
A convocação deste concílio fora resolvida pouco antes da
expedição contra Portugal:
aí se deviam tratar negócios, não só pertencentes à Igreja, mas
também ao Estado,
e por isso mal se compreende como ele se poderia ajuntar sem a
concorrência da rainha
e do infante Afonso Raimundes, que haviam determinado a reunião
daquela assembleia
e que se achavam retidos entre Douro e Minho por uma guerra cujo
próspero progresso
lhes não permitia abandonarem-na. A carta do cardeal legado,
evidentemente feita
para facilitar a partida do arcebispo, não surtiu efeito; antes,
talvez, servisse para tornar
D. Urraca mais vigilante sobre o procedimento deste.
A
sorte das armas continuava a mostrar-se adversa a D. Teresa. Uma não
pequena parte
de Portugal achava-se já subjugada: o exército real, marchando pelo
sul e poente, havia
chegado até às margens do Douro, e a infanta-rainha dos portugueses
tinha-se retirado
para o distrito ao oriente de Braga. Perseguida por sua irmã,
encerrou-se no castelo
de Lanhoso, onde não tardou a ser sitiada. As coisas tinham chegado
à extremidade,
tanto para ela como para os barões desta província. Tomado Lanhoso
e cativa
D. Teresa, faltava o núcleo à roda do qual vigorasse e crescesse a
nascente nacionalidade portuguesa.
A força dos acontecimentos veio, porém, salvá-la.
No
meio dos graves e tenebrosos meneios em que se achava envolvido,
Gelmires não
se esquecera de aproveitar a ocasião que se lhe oferecia de
recuperar os bens sobre que
havia anos disputava com D. Paio. Eram estes a metade de Braga
pertencente à Igreja
de São Vítor e Frutuoso e a metade da vila de Cornelhan com outras propriedades.
Tomando posse delas, o prelado pôs aí os seus vílicos ou mordomos, seguro
de as conservar, fosse qual fosse a sorte da guerra, o que de feito
aconteceu, porque
depois só D. Paio pôde obtê-las de novo por mercê do
compostelano, reconhecendo
o seu domínio eminente, o que prova quanto Gelmires contava com a benevolência
de D. Teresa e serve para nos ilustrar sobre a série de enredos,
cuja história
só se pode deduzir dos factos externos que a eles se ligavam. Não
esqueçamos que Fernando Peres era nesta conjuntura conde do Porto e
de Coimbra
e que é provável se achasse em Lanhoso com a infanta-rainha, de
quem passava
por amante. Lembremo-nos, também, da afeição que por toda a vida
ele mostrou,
salvo raros desgostos, ao arcebispo de Santiago, cujo homem era, para
nos servirmos
duma expressão desse tempo. Cumpre igualmente observar que ambos
eles pertenciam,
um oculta, outro francamente, ao partido inimigo irreconciliável de
D. Urraca.
O vencimento e a sujeição de D. Teresa vinham, pois, a ser por
muitos modos golpes
fatais nos interesses e desígnios de Gelmires e dos seus associados.
Tornava-se, portanto,
necessário ao ambicioso prelado correr o risco de uma resolução
atrevida para salvar
a causa em que se achava empenhado.
1ª Parte
2ª Parte
3ª Parte
5ª Parte
Ver também Reconquista
Mais História de Portugal em Antikuices
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