terça-feira, 25 de junho de 2013

História: Portugal antes de D. Afonso Henriques - 4ª Parte

História: Portugal antes de D. Afonso Henriques - 4ª Parte

Por Alexandre Herculano

Todavia este estado forçadamente pacífico deixava subsistir a incerteza sobre a sorte futura de Portugal. D. Teresa, que durante a vida de seu marido usara apenas do título de condessa e de infanta, e desses mui raras vezes, contentando-se ordinariamente da qualificação mais modesta de mulher do conde Henrique e da de filha de Afonso VI, começava já a usar promiscuamente nos seus diplomas do título de infanta, de rainha e de ambos juntos. O de rainha prevaleceu por fim: os próprios súbditos, como vimos, lho davam já em vida do conde e, até, o papa, depois a lisonjeava com ele. A vastidão relativa dos seus estados e a importância destes, que aumentava à proporção que se enfraquecia a dilacerada monarquia leonesa-castelhana, davam valor material a um título de que, aliás, vulgarmente usavam todas as filhas legítimas dos reis, mas que por isso mesmo mal caberia à filha de Ximena Muniones. Ao passo que a condessa de Portugal aceitava aquela denominação, a província cujo governo lhe legara seu marido parece ter principiado poucos anos depois a receber dos próprios habitantes o título de reino.

Mas, considere-se Portugal naquela época ou como condado ou como província ou como reino, é certo que os povos derramados por todo o trato de terra desde o Minho até o Mondego começavam a deixar perceber já na segunda e terceira décadas do século XII certo carácter de nacionalidade que não é possível desconhecer. Os sucessos políticos mostram-no melhor que nenhum outro indício. Nas guerras civis, a que o mal-fadado consórcio de D. Urraca e de Afonso I deu origem e que se prolongaram por tantos anos, as dissensões não rebentavam entre um ou outro estado, entre uma ou outra província, mas nasciam de distrito para distrito, de castelo para castelo e quase de indivíduo para indivíduo. Os barões ou nobres principais conhecidos vulgarmente pelos nomes de condes e de ricos-homens, inimigos muitas vezes uns dos outros, tomavam cada qual sua bandeira e satisfaziam ódios particulares a pretexto de seguirem esta ou aquela parcialidade. Os cálculos dos ambiciosos, as mudanças de opinião, as vinganças de família, as modificações dos partidos, davam frequentemente àquelas discórdias um carácter pessoal. 

A Galiza, cuja história relativa àquele período chegou até nós mais particularizada que a das restantes províncias, não nos oferece outro quadro. Leão ainda nos últimos anos desta sanguinolenta luta apresenta quase o mesmo espectáculo, a ponto que na capital do reino vinham às mãos os burgueses com os cavaleiros que guarneciam as fortificações da cidade, aqueles em nome de Afonso Raimundes, estes em nome do conde castelhano Pedro de Lara. Portugal, porém, no meio de tais divisões, conservou sempre um notável aspecto de unidade moral. Fosse qual fosse o partido a que ele se associasse, todos os barões portugueses se mostravam conformes, ao menos passivamente, com o sistema da que, debaixo desse aspecto, podemos chamar política externa do país. Favorecendo o infante Afonso Raimundes, o rei de Aragão, ou D. Urraca; fazendo a guerra por conta de um deles ou por interesse próprio, os nobres de Portugal combatiam sempre sob o mesmo pendão, embora tivessem entre si malquerenças particulares, de que aliás não faltam vestígios. 

Assim o pensamento de desmembração e independência, que é visível existia já nos ânimos de Henrique e da sua viúva e que veio a realizar-se completamente no tempo de Afonso Henriques, é um pensamento comum ao chefe do Estado e aos membros dele, sendo talvez os actos dos príncipes ainda mais o resultado da influência do espírito público do que a manifestação espontânea da própria ambição. Os documentos dos primeiros anos em que regeu ou notário lhe chamava «rainha», ao passo que ela se denominava «filha do rei Afonso e infanta».

Os acontecimentos interiores do condado ou província portuguesa nos tempos imediatos à morte de Henrique ignoram-se, e o silêncio das memórias contemporâneas prova, pelo menos, que eles foram de bem pequena importância. As tréguas propostas por Afonso I e aceitas por D. Urraca trouxeram, senão uma paz definitiva, ao menos uma suspensão de hostilidades. Mas a índole do príncipe aragonês não lhe consentia depor jamais as armas. Repelido de Castela, voltou ao Aragão para renovar a guerra com os sarracenos. Ajudado pelo conde de Perche, Rotrou, assenhoreou-se de Tudela ainda nesse ano e cercou Saragoça, cujo dilatado assédio lhe fez levantar em 1116 o váli almorávida de Granada, Abu Mohammed. 

Entretanto D. Urraca, receosa das intrigas do astuto Gelmires e aproveitando o desafogo que lhe concedia o rei de Aragão, voltava à Galiza no ano de 1115. O bispo compostelano, que havia sido maltratado em Burgos por se mostrar contrário à paz, a qual por outro lado hipocritamente aconselhava, começara, de feito, naquela província a indispor ocultamente os ânimos contra a rainha. Intentou ela prendê-lo, mas malogrou-se-lhe o intento; porque o soberbo prelado mostrou-se assaz forte e resoluto para lhe resistir. Por intervenção dos fidalgos galegos esta discórdia asserenou; porém, os acontecimentos posteriores bem depressa mostraram pouca sinceridade com que se fizera a reconciliação.

Os ambiciosos desígnios do conde de Portugal, em que sua mulher tomara tão activa parte, pareciam inteiramente abandonados por ela. Nas relações com a rainha de Leão e Castela, D. Teresa reconhecia a inferioridade da sua situação. Os actos que serviam então para indicar a sujeição dos grandes vassalos ao imperante não eram tão característicos como o foram em séculos subsequentes, e ainda mais raros e obscuros se tornavam nas ocasiões de bandorias e lutas civis, em que os membros mais poderosos da nobreza procuravam à porfia sacudir todo o jugo da obediência, para lhes impor o qual muitas vezes faltava a força. Assim, no estudo das fases políticas daquela época, importa não desprezar as menores circunstâncias dos factos, porque aí se encontra às vezes a solução de muitas questões históricas.

Na antiga capital das Astúrias, em Oviedo, celebrou-se em 1115 uma assembleia de bispos, de nobres e de deputações municipais (plebs) com o intuito de ocorrer aos crimes e violências que se perpetravam por toda a monarquia, e especialmente entre os asturianos. Considere-se aquele numeroso ajuntamento como cortes ou como concílio, porque a natureza de tais assembleias celebradas por esses tempos nem sempre se pode bem distinguir, é certo que uma parte das suas actas chegou até nós, e nelas se encontram disposições, não só eclesiásticas, mas também criminais e civis. Assistiram a estas cortes D. Urraca e suas duas irmãs, Teresa e Elvira, com avultado número de prelados e barões das diversas províncias da monarquia, à excepção dos de Portugal. A subscrição daquele importante documento apresenta-nos a situação relativa das duas filhas de Ximena Muniones e da herdeira de Afonso VI. 

É numa assembleia dos principais personagens de Leão e Castela que D. Teresa figura como infanta e o seu nome é incluído nas subscrições, não só depois do da rainha, mas também depois do de Elvira, sua irmã mais velha: mas, ao passo que Elvira confirma e jura em nome dos seus descendentes e súbditos, ela (se não supusermos aquela passagem truncada) só fala dos primeiros. Não resulta evidentemente deste facto o reconhecimento da superioridade de D. Urraca? E a ausência dos barões de Portugal e o silêncio de D. Teresa acerca deles não vem reforçar as nossas suspeitas de que o espírito público, ainda mais, se é possível, que os desejos dos príncipes, tendia energicamente em Portugal à independência? 

Enquanto estas coisas passavam os sarracenos do Gharb não empreenderam facção alguma notável pela fronteira de Coimbra; ao menos, nem os historiadores árabes, nem as memórias cristãs mencionam nenhuma tentativa por esta parte desde a morte de Henrique até 1116. A guerra, como já dissemos, fazia-se entre os almorávidas e os condes e capitães das fronteiras sertanejas de Toledo, e principalmente, em Aragão, pelas cercanias de Saragoça e de Lérida. No Ocidente as entradas e algaras do sertão parece terem cessado; mas a cena de mútuas assolações apenas mudou de teatro. O progresso da arte de navegar e da ciência da guerra marítima era ainda então mui diverso entre os habitantes das províncias cristãs do Ocidente da Península e os sarracenos espanhóis e africanos. Aqueles apenas construíam pequenas embarcações destinadas ao comércio e à navegação costeiros, nas quais não ousavam aventurar-se ao largo: estes possuíam navios armados, com que se engolfavam um pouco mais no oceano, posto que não para largas viagens, e com que tentavam expedições militares.

Saindo de Almeria, Sevilha, Silves, Lisboa e outros portos, corriam as costas de Portugal, Galiza e Astúrias e, salteando subitamente os lugares próximos das praias, roubavam e incendiavam as aldeias e, até, os paços fortificados, e matavam ou cativavam os que podiam colher às mãos, destruindo os gados e plantios; enfim, espalhavam tal terror entre a gente dos campos que os habitantes das vizinhanças do mar durante a força do estio abandonavam os seus lares ou escondiam-se em cavernas, onde pudessem ao menos salvar a vida dos repentinos saltos dos sarracenos. Por esta época tinha crescido a tal ponto a audácia dos inimigos que se tornava indispensável ocorrer a tamanha ruína. O activo bispo de Compostela, mandando vir de Génova, onde então florescia a ciência naval, obreiros hábeis, ordenou se construíssem duas galés, que, dirigidas por pilotos genoveses e guarnecidas com soldados e marinhagem de Padrón, saíram para as costas do Gharb. Os estragos que aí fizeram desagravaram, até certo ponto, os cristãos dos que antes haviam padecido. Com esta expedição, em que foram destruídos muitos navios dos sarracenos, Portugal ganhou o ficarem os seus portos mais livres para o pequeno comércio costeiro que então fazia, e a Galiza convertida em alvo principal da vingança dos sarracenos, que contra ela especialmente dirigiram nos anos seguintes as suas tentativas.

Ao mesmo tempo que Diogo Gelmires buscava assim atrair as simpatias populares, defendendo a Galiza das agressões dos mouros, não se esquecia de promover por todos os outros meios a realização das suas ambiciosas miras. Quais estas fossem transluz do seu panegírico histórico (feito por ordem dele próprio), o qual chegou até nós com o título de Historia Compostellana. Viviam os autores deste livro em tempos demasiado rudes e faltos de arte, e por isso não souberam dar às acções do seu patrono o aspecto de honestidade e rectidão que intentam atribuir-lhes. Gelmires era homem de intolerável vaidade e de não menor cobiça, e para satisfazer estas duas paixões nenhuns meios julgava vedados: a corrupção, a revolução, a guerra, a insolência, a humilhação, os enredos ocultos eram as armas a que sucessivamente recorria, conforme as circunstância lhe indicavam a conveniência de usar de umas ou de outras. 

Desde a sua aparente reconciliação com D. Urraca, de que há pouco fizemos menção, parece que ele não cessara de promover secretamente as perturbações civis. Pedro Froilaz, conde de Trava, era na aparência o cabeça de um partido que pretendia despojar a rainha do governo ou pelo menos separar da coroa a Galiza e os distritos de Salamanca e Zamora (Extremaduras) para constituir enfim um governo, na realidade independente, para o seu pupilo Afonso Raimundes. Havia estreita amizade entre Gelmires e o conde de Trava, e as suspeitas de conivência do bispo com os partidários do infante, suspeitas que a história parece legitimar, deram provavelmente motivo ao procedimento de D. Urraca.

Esta, vindo à Galiza, segunda vez tentou prender o ardiloso prelado, que segunda vez lhe baldou os intentos, resistindo com mão armada. Cedeu a rainha e, quando voltou para Castela, senão a mútua confiança ao menos a paz parecia restabelecida. Mas é evidente que entre ambos devia subsistir inimizade e temor. Não tardou nova tentativa de prisão do lado de D. Urraca, nem Geimires a tirar a máscara. Declarou-se pelo infante, e os barões da Galiza que ainda se não haviam unido ao conde de Trava seguiram, de boa ou de má vontade, o exemplo. Pedro Froilaz dirigiu-se então com o seu pupilo a Compostela; mas a rainha retrocedeu imediatamente para a Galiza com os cavaleiros que pôde ajuntar para socorrer os poucos que ainda obedeciam ali à sua autoridade. Os descontentes da nova revolução começaram a unir-se-lhe, e ela marchou para Compostela, ao mesmo tempo que procurava com largas promessas mover o ânimo de Diogo Gelmires pela cobiça a trair a causa que tinha abraçado.

Enquanto o conde de Trava saía com o seu exército a fim de procurar ensejo de dar batalha a D. Urraca, os parciais desta, que eram a maior parte dos burgueses, abriam-lhe as portas. Já, porém, o bispo fizera com que o infante se retirasse da cidade, enquanto ele, vendo-se abandonado do povo que o aborrecia cordialmente, se fortificava no edifício da catedral com os seus homens de armas. Conhecendo, enfim, que era inútil a resistência, humilhou-se constrangido pela necessidade, tanto mais que o conde de Trava, de cujo exército muitos trânsfugas tinham passado para o campo da rainha, não se atrevera a acometê-la e se havia retirado.

Todavia, com a fuga de Pedro Froilaz e com a submissão do turbulento Gelmires, o mais influente e perigoso inimigo de D. Urraca, ela não obteve a paz. Um dos barões da Galiza, Gomes Nunes, senhor de muitos castelos e que trazia a soldo grande número de homens de armas e peões, prosseguiu na guerra a favor de Afonso Raimundes. D. Urraca intentou subjugá-lo, marchando a sitiar os lugares que tinham voz pelo infante; mas um novo adversário veio embargar-lhe os passos e fazer com que, em vez de cercar Gomes Nunes, se visse a si mesma sitiada.

Estas coisas passavam-se nos primeiros meses. de 1116. No ano antecedente, como dissemos, D. Teresa assistira pacificamente com sua irmã às cortes de Oviedo, e nem a história nem os documentos dessa época nos indicam que houvesse motivos alguns extraordinários para a boa harmonia se quebrar entre as duas irmãs. Fora escusado procurar outro que não seja a soltura das paixões própria de tempos semi-bárbaros. Os pretextos que hoje se buscam para coonestar ainda as guerras mais injustas sabiam-se aproveitar, se ocorriam, mas não se faziam nascer, nem se inventavam, com o profundo artifício da moderna política. A ambição, a turbulência, a ingratidão eram ferozmente sinceras, quando a hipocrisia não alcançava facilmente disfarçá-las. Se, como todas as probabilidades o insinuam, Diogo Gelmires, ligado com Pedro Froilaz, era a inteligência que dirigia ocultamente a guerra civil na Galiza, e se entre ele e D. Teresa havia as relações cuja existência parece resultar da elevação de Hugo ao episcopado da diocese portucalense, nada mais natural do que fazer entrar a infanta dos portugueses na vasta conspiração que, rebentando nas Extremaduras, tão rapidamente lavrou por toda a Galiza, até porque à viúva do conde Henrique não faltariam desejos de ir reconquistando a nascente independência dos próprios domínios, a qual, pela sua acessão à assembleia de Oviedo, de certo modo resignara. Seja o que for, é certo que, tendo D. Urraca dividido o exército para cercar os castelos dos rebeldes e demorando-se no de Suberoso, o conde Pedro Froilaz e a infanta D. Teresa com tropas numerosas vieram cercá-la a ela. Então a rainha fez aproximar as suas forças e, protegida por estas, retirou-se para Compostela.


Ficaram desbaratados o conde e a infanta, ou D. Urraca pôde apenas evadir-se ao cerco? As palavras do único historiador contemporâneo que nos transmitiu aqueles sucessos parece favorecerem a segunda interpretação; mas o que se passou depois desse acontecimento persuade a primeira. Em Compostela os burgueses tinham-se valido das desinteligências da rainha com o bispo, senhor da cidade, para formarem uma dessas ligas populares que depois, dilatadas e aperfeiçoadas, tão célebres se tornaram na história de Espanha com o nome de irmandades. A vida municipal surgia enérgica em meio das lutas dos poderosos, e D. Urraca aproveitara habilmente a conjuração dos compostelanos para anular a influência e os recursos do prelado, aproveitando-a e colocando-se de certo modo à frente dela. Voltando de Suberoso, demorou-se mui pouco ali, partindo para Leão, e, apesar de que os burgueses a aconselhavam a que se vingasse de Gelmires, deixou-o em paz, posto que humilhado, talvez para que o odioso da sua presença alimentasse o ardor dos populares e ao mesmo tempo servisse de seguro penhor de mútua união e de lealdade para com ela. Se os inimigos não houvessem sido destroçados, fora pouco provável que D. Urraca abandonasse assim a Galiza, aonde só viera para os castigar. É por isso que nos parece mais de crer que D. Teresa e Pedro Froilaz fossem desbaratados em Suberoso.

Mas a partida da rainha foi como o sinal de novas lutas. O conde de Trava com seus dois filhos, Bermudo e Fernando, o qual já anteriormente se distinguira no meio destas perturbações assolando o distrito saliniense, avançou imediatamente com os seus aliados para as cercanias de Compostela, matando e cativando os homens e destruindo os gados. Teresa, afeita à dura vida dos campos, talvez o acompanhava nesta guerra. Aí, no meio das fadigas e riscos dos combates, despontaria essa afeição entre Fernando de Trava e D. Teresa, que tão notável se tornou anos depois e que veio produzir em Portugal cenas análogas às que se representavam então na Galiza.

Os socorros dados por D. Teresa ao conde Pedro Froilaz não foram gratuitos. Os seus domínios dilataram-se, conforme parece, desde esta época, para além do Minho pelos distritos de Tui e de Orense, cujos bispos já seguiam, três anos depois, pelo menos, a sua corte, exercendo ela no território de Tui actos de senhorio por largo tempo. Mas os primeiros anúncios da procela que se alevantava nas fronteiras meridionais dos seus estados começavam a aparecer, e é provável que para ocorrer a ela voltasse então a Portugal com as forças que tinha na Galiza; porque nenhuns vestígios mais encontramos da sua intervenção nos bandos civis que assolavam aquela província.

Enquanto D. Teresa buscava assim alargar ao norte os limites dos próprios estados, aproveitando as inquietações da monarquia, os sarracenos atravessavam os ermos que se estendiam entre as fronteiras portuguesas do sul e as praças do Gharb na margem direita do Tejo, e vinham cercar o castelo de Miranda sobre o Doessa, ao sueste de Coimbra. Subjugado o de Miranda, metidos à espada ou reduzidos à escravidão os seus defensores, os muçulmanos, atravessando para o poente, ousaram passar o Mondego e acometer o castelo de Santa Eulália, junto de Montemor. A sorte deste foi igual à do primeiro; porventura ambos mal defendidos em consequência da expedição na Galiza. Os sarracenos arrasaram-no até os fundamentos e depois, retrocedendo, dirigiram-se ao de Soure. Aqui, porém, o terror dos habitantes tornara inútil o cometimento; porque, lançando fogo àquela povoação e desamparando-a, haviam-se acolhido aos muros de Coimbra. Miranda, Soure, Santa Eulália, com outros castelos que por esses tempos existiriam, formavam uma linha curva de fortificações avançadas, que defendiam a capital do distrito pelo lado do oriente, meio-dia e poente. Destruídos eles, Coimbra ficava exposta ao primeiro embate dos inimigos. Esse, talvez, foi o objecto desta entrada, feita ainda em 1116 e que os historiadores árabes confundem com a do ano seguinte, dirigida pessoalmente pelo príncipe dos almorávidas; ao passo que, se atendermos ao nome que as memórias cristãs dão ao general sarraceno na invasão deste ano, ela parece ter sido capitaneada pelo váli de Córdova, Yahya Ibn Taxfin.

Por este mesmo tempo Afonso de Aragão desbaratara o fronteiro almorávida Abdullah Ibn Mezdeli e, talando os distritos de Saragoça e Lérida, tomava ou destruía grande número de castelos dos sarracenos. Irritado com estes revezes, o emir de Marrocos resolveu passar à Espanha para se vingar dos danos recebidos, mandando marchar imediatamente contra o rei aragonês seu irmão Temin e os vális de Córdova e de Valência. Enquanto estes avançavam para as fronteiras orientais, ele passava o Estreito e vinha substituí-los nas do ocidente. Reunindo às numerosas tropas de África algumas forças almorávidas de aquém-mar, atravessou o Gharb e encaminhou-se para Coimbra. Estava desguarnecida ou derribada a linha de castelos que a defendia, e Ali veio sem resistência assentar campo em volta dela (Junho, 1117). D. Teresa achava-se então aí. Tal e tão repentina foi a invasão dos sarracenos que a muito custo a rainha se pôde salvar dentro dos muros da cidade. Os arrabaldes ficaram reduzidos a cinzas e as fortificações foram combatidas durante vinte dias sem interrupção de um só. Defenderam-se, porém, os cercados vigorosamente, e o emir, conhecendo que era inútil o insistir, retirou-se, assolando tudo a tal ponto, que - diz um escritor árabe - subsistiram por largo tempo claros vestígios daquela terrível entrada. De feito, ainda sete anos depois o lugar onde existira Soure achava-se convertido em habitação de feras.

Ali passara de novo o Estreito e voltara a Ceuta, satisfeito com a vingança que tomara dos cristãos. Nos distritos, porém, do Leste, as armas muçulmanas haviam sido mal sucedidas. Temin, destroçado pelos aragoneses, tinha-se retirado para Valência, e finalmente Afonso I viu realizada daí a pouco a sua antiga pretensão de conquistar Saragoça (1118). Dez mil almorávidas, que haviam sido mandados de além-mar em socorro daquela cidade, chegaram tarde para a salvar, e só serviram para tornar mais brilhantes as vitórias do rei aragonês, ao qual bem quadrava o apelido de Lidador. Transpondo o Ebro para o sudoeste, Afonso e os seus cavaleiros precipitaram-se como uma torrente pelo território muçulmano e, desbaratando mais uma vez Temin na terrível, batalha de Cotanda (Junho, 1120) apossaram-se de Kalat Ayub (Calataiud) e sucessivamente de muitas outras povoações importantes dos sarracenos.

Ao passo que o rei de Aragão prosseguia tão vigorosamente a guerra contra estes, continuava pelos seus capitães a disputar a D. Urraca a posse da coroa de Leão e Castela, ou, como dizem os historiadores árabes, não cessava de fazer entradas nos territórios de Al-Djuf (do Norte). Ainda durante o ano de 1116 o conde de Trava e o seu pupilo se haviam reconciliado com a rainha por diligência de Gelmires, que, odiado do povo, constrangido a guerrear o conde, seu oculto aliado, e temido por D. Urraca, só assim podia sair da situação dificultosa em que afinal o tinham colocado a dobrez e a perfídia do seu carácter. À sombra desta pacificação, em que o conde de Trava se não esqueceria de a incluir, D. Teresa pôde empregar todos os seus recursos em resistir à furiosa invasão do emir de Marrocos, o que de outro modo lhe houvera sido impossível.

Neste respiro que davam à monarquia as discórdias civis, a guerra com o Aragão vinha substituí-las. Em 1117 um exército combinado de Leão, Galiza, Estremaduras, Castela e Astúrias marchou para a fronteira aragonesa, e a luta protraiu-se, mais ou menos violenta, entre os dois estados pelos anos seguintes até à morte de D. Urraca, sucedida em 1126, como adiante veremos.

Os reveses recebidos nas fronteiras orientais, as perturbações intestinas e, mais que tudo, a revolução que a nova seita de Al-Mahdi ou dos almóadas produziu brevemente em África obrigaram os almorávidas a afrouxar nas correrias pelas terras dos cristãos. Se acreditássemos as crónicas árabes, em 1120 Ali teria feito uma segunda entrada em Espanha e, marchando para o Gharb, houvera cercado e tomado Lisboa ou,segundo outros, uma cidade chamada Medina Sanábria, voltando para a África em 1121, depois de assolar e submeter todo o Ocidente. Mas o silêncio dos monumentos cristãos acerca destes sucessos extraordinários, a confusão e variedade que reinam a semelhante respeito nas relações árabes e, até, as contradições em que elas laboram, tudo nos persuade de que os escritores muçulmanos quiseram, com entradas e vitórias imaginárias, tornar menos triste o quadro das perdas experimentadas nos distritos orientais e do nenhum resultado importante que o emir tirara no Ocidente da passada tentativa contra D. Teresa.

No decurso daquela calamitosa época, em que as províncias do Norte e Oeste da Península eram sucessivamente oprimidas e devastadas pelas discórdias civis, pela guerra com o rei de Aragão e pelas invasões dos almorávidas, os três anos de 1117 a 1120 passaram comparativamente tranquilos, sobretudo para Portugal. Nenhuns indícios se encontram de que D. Teresa ou os ricos-homens dos seus estados interviessem na empresa guerreira de D. Urraca e de seu filho contra os aragoneses, para a qual vimos terem marchado as tropas de quase todos os outros distritos. Creríamos que os barões de Portugal procediam em tudo guiados pelo pensamento de consolidarem pouco a pouco as barreiras entre a monarquia leonesa e a província que habitavam, se fosse lícito atribuir a guerreiros rudes e, por assim dizer, semi-bárbaros um sistema ao mesmo tempo generalizado e profundo, que honraria ainda uma época muito mais ilustrada. Todavia, é impossível deixar de reconhecer na série dos factos que ilustram a história do estabelecimento da independência portuguesa certo instinto de vida política individual nas populações aquém do Minho, que já anuncia nelas a futura perseverança com que resistiram desde então até hoje a assimilar-se ao resto da Espanha e a incorporar-se nela. E, ao passo que este espírito público se desenvolve e progride, vemos D. Teresa, recebendo em Leão e Castela o título indefinido e singular de infanta dos portugueses, exercitar entre estes um poder que torna duvidoso o predomínio de D. Urraca e, até, conservar o senhorio de Tui e de Orense, fazendo com que sigam a sua corte os prelados daquelas dioceses.

De feito, a posse de Tui foi o motivo ou o pretexto de um rompimento de hostilidades em 1121. O território do nascente Portugal, que até aí escapara de ser teatro das lutas civis, teve finalmente o seu quinhão nos males que oprimiram a monarquia durante o longo e desgraçado governo de D. Urraca. As circunstâncias deste sucesso e as suas consequências políticas foram assaz graves para que hajamos de lançar toda a luz possível sobre ele, e isso não será fácil enquanto pretendermos desligar os acontecimentos desta parte da Espanha dos que eram comuns à monarquia leonesa. Em nosso entender o erro vulgar dos historiadores nacionais e o quererem determinar data precisa à independência de Portugal; é o imaginarem como simples e, digamos assim, fundido de um só jacto um sucesso complexo, que, progredindo com fases mais ou menos rápidas, veio a ser por fim uma coisa definida e completa. Assim, segundo a época que escolhem para assinalar a instantânea passagem do reino de Portugal do não ser à existência, vêem-se obrigados a rejeitar como falsos ou a desprezar todos os monumentos que se opõem à própria opinião, ao passo que, por sua parte, alguns escritores castelhanos rejeitam ou fingem esquecer os monumentos em que essoutros se estribam. É por este modo que o diploma se tem oposto ao diploma, a crónica à crónica, a interpretação à interpretação, com uma gravidade e um peso de erudição de que é impossível, às vezes, deixar de sorrir. O historiador, porém, que não se colocar à luz falsa em que um mal-entendido pundonor nacional pôs os que precederam, longe de abandonar as fontes históricas só porque se contrapõem a uma opinião formada antecipadamente, aceita-as todas, quando intrinsecamente puras e deduz delas as suas conclusões. Os que procedem por diverso modo não somente avaliam mal esse grande facto da independência, mas ainda, fechando-se num horizonte limitado, atribuem à nação logo no seu berço uma individualidade tão profunda que se inabilitam para
avaliar bem os homens e as coisas, desprezando as soluções que a factos, aliás inexplicáveis, lhes ministraria a história das paixões e dos interesses que então se agitavam no seio da monarquia leonesa, ligada ainda ao novo estado que se formava no Ocidente da Península por mil laços que só gradualmente se podiam quebrar. Assim os sucessos ocorridos em Portugal durante as primeiras décadas do século XII são quase sempre determinados pelos acontecimentos comuns da Espanha cristã. É o que até aqui temos visto, e é o que ainda veremos por alguns anos na prossecução desta narrativa.

Como dissemos, D. Teresa tinha-se apossado, segundo todas as probabilidades em 1116, de uma parte do território da Galiza, e com certeza era senhora de Tui e Orense no ano de 1119, em que os bispos daquelas duas dioceses seguiam a sua corte e confirmavam em Coimbra as mercês que ela fazia aos seus súbditos de Portugal. A boa harmonia, ao menos aparente, reinava, todavia, entre ela e sua irmã, e o rei de Aragão considerava a viúva do seu antigo aliado como ligada intimamente com os próprios inimigos. Na assembleia de Oviedo a infanta dos portugueses tinha de certo modo definido a sua situação política relativamente a D. Urraca: a independência completa de Portugal, a sua desmembração da monarquia não estava consumada, e a guerra que D. Teresa fizera na Galiza em 1116 provava tanto a independência dos seus domínios como provaria a dos do conde de Trava ou dos outros fidalgos galegos a quem ela auxiliara. Feita a paz nesse mesmo ano, as coisas tornaram naturalmente ao antigo estado, e a espécie de supremacia de D. Urraca, reconhecida por D. Teresa no ano antecedente, continuava a subsistir. Unicamente a retenção de uma parte da Galiza meridional pela infanta era um facto que os sucessos posteriores nos mostram ter ficado indefinido.

A rainha de Leão e Castela visitou essas províncias por duas ou três vezes nos fins de 1120 e nos primeiros meses de 1121. A guerra de Aragão corria frouxamente, porque Afonso I, empenhado nas suas gloriosas campanhas contra os sarracenos, não podia conduzi-la com grande vigor. A esta causa se atribuiria a volta de D. Urraca ao outro extremo dos seus estados, se não fosse mais provável desse causa a essa vinda a trama que de novo se urdia para lhe tirarem a coroa e porem-na na cabeça do infante Afonso Raimundes, chegado à puberdade, para quem naturalmente se voltavam os olhos de todos os poderosos senhores inimigos da rainha. A fim de podermos explicar razoavelmente as circunstâncias que concorreram para a invasão dos estados de D. Teresa em 1121, é necessário conhecer essa trama, em que, como era de esperar, figura, posto que entre sombras, o façanhoso Gelmires.

Este homem, cuja vaidade era igual à sua cobiça, desejava ardentemente ver elevada a sé de Santiago à categoria de metropolitana. Tinha tentado o negócio no tempo dos papas Pascoal e Gelásio, sem .que o chegasse a alcançar. A eleição de Calisto II veio reanimar-lhe as esperanças. Calisto era irmão do conde Raimundo, e estava, por consequência, ligado por estreitas relações com a Espanha. Pedia Gelmires que fosse transferida a cadeira arquiepiscopal de Braga para Compostela, transferência tanto mais importante quanto era esse o meio de humilhar o grosseiro Pelágio ou Paio Mendes, sucessor de Burdino e irmão dos senhores da Maia, Soeiro e Gonçalo Mendes. D. Paio tinha-se apossado de vários bens na diocese de Braga que pertenciam à sé de Compostela e recusara restituí-los. Bastava isto para suscitar o rancor do prelado compostelano; mas acrescia que D. Paio, como metropolita da Galiza, tinha necessariamente nesta província uma superioridade que mortificava Gelmires. Giraldo, cónego de Santiago, solicitava na Cúria a pretensão, empregando as importunações, o dinheiro e a protecção de poderosos barões franceses, dos quais o bispo Gelmires soubera captar a benevolência. O papa, eleito em França, reservava este negócio para o resolver no concílio que ia reunir em Tolos a (1119), quando uma dificuldade política veio suscitar novos embaraços às miras do ambicioso compostelano.

Constrangido, como já advertimos, pela situação falsa em que se colocara, Gelmires, durante os tumultos da Galiza em 1116, tinha-se posto em campo contra o conde Pedro Froilaz e contra os demais fautores de Afonso Raimundes. Provavelmente estes persuadiram-se de que a reconciliação do prelado com a rainha havia sido sincera, e a paz que ele solicitou pouco depois entre os dois partidos mais confirmava esta suspeita. Na ocasião, pois, em que Giraldo trabalhava activamente no negócio a que fora mandado, o papa recebeu uma carta em nome do infante, dirigida pelo arcebispo de Toledo, Bernardo, na qual Afonso Raimundes se queixava a seu tio do procedimento de Gelmires, acusando-o de lhe fazer todo o mal que podia e de pretender despojá-lo da herança de seus avós. Calisto parece que amava com ternura o filho de seu irmão Raimundo: as lágrimas rebentaram-lhe dos olhos ao ler a carta. Desde então pensou seriamente em segurar a coroa na cabeça de Afonso Raimundes. Começou por escrever a Gelmires, pondo-lhe por condição para obter o arqui-episcopado favorecer constante e energicamente o partido do rei seu sobrinho. O compostelano enviou então ao papa um homem de íntima confiança, Hugo, bispo do Porto. Ignoramos qual era a resposta que ele levava; mas é certo que, ajudada esta por avultadas quantias e pela influência do abade de Cluny e dos barões franceses, os desejos de Gelmires ficaram satisfeitos sem a supressão do arcebispado bracarense. À sé de Santiago, elevada à dignidade de metrópole, deram-se por sufragâneos os bispados que no tempo dos mouros dependiam de Mérida, e, para humilhar D. Paio, o seu adversário obteve a nomeação de legado do papa nas províncias eclesiásticas de Compostela e Braga (Fevereiro, 1120). Na bula da erecção da nova metrópole, Calisto declara que os rogos de Afonso Raimundes contribuíram para esta resolução. Semelhantes palavras, se as compararmos com as queixas feitas no ano anterior, provam que Gelmires nesta concessão do pontífice recebia o preço da sua perfídia para com D. Urraca 162 . No meio dos enredos políticos o novo legado não se esqueceu de D. Paio, cometendo contra ele vexames tais que este recusou assistir ao sínodo convocado por Gelmires no ano de 1121, recusa que o papa aprovou depois como justa, exemptando a diocese bracarense da legacia do compostelano. O receio de que este pretendesse aproveitar-se da sua situação para o esbulhar da posse de uma parte do senhorio de Braga, sobre o qual versavam entre
ambos disputas, foi talvez o motivo por que D. Paio buscou obter da rainha de Leão e Castela, não só a confirmação do couto da sua sé, mas igualmente que este fosse ampliado. O diploma expedido por essa ocasião, o qual ainda existe, nos mostra que D. Urraca se considerava como revestida, ao menos de direito, da suprema autoridade na província de Portugal.

A confirmação do couto de Braga por D. Urraca parece-nos evidentemente correlativa às bulas que o papa não cessava de recomendar ao arcebispo a causa do jovem Afonso, e, porventura, estas recomendações importavam as do cumprimento de uma promessa. Ao mesmo tempo o duque da Aquitânia, Guilherme IX, e a condessa da Flandres, parentes do infante, escreviam a Gelmires cartas análogas, chegando o duque a declarar-lhe que estava resolvido a empregar quaisquer meios para fazer seu sobrinho herdeiro de Afonso VI e avisando-o de que sobre tal matéria se entendesse com Pedro Froilaz.

Então o ardiloso prelado impetrou de Calisto II uma bula que o desligava dos juramentos feitos a D. Urraca e lhe impunha o dever de guardar aqueles que fizera ao infante. Depois disto ele se cria habilitado para entrar em alguma tentativa, cuja natureza é fácil de adivinhar; mas o cardeal Boso, também legado em Espanha, dissuadiu-o disso. Posto que, dizia ele, muito desejasse ver levar o negócio a cabo, aconselhava-o não tentasse nada de leve, porque lhe estavam armadas por toda a parte ciladas. Na sua opinião, o melhor seria fazer a paz com a rainha. Assim procedia o arcebispo, ao menos simuladamente. Chegava a perseguir aqueles mesmos que mais seus parciais eram, como Fernando Peres de Trava, alferes-mor ou chefe das tropas arqui-episcopais e que da mão de Gelmires tinha alcaidarias e terras em soldo ou préstamo. Um castelo que este havia edificado no território de Santiago foi derribado, e sorte igual coube a vários outros de diversos nobres. 

Apesar destas demonstrações exteriores, D. Urraca parece que não ignorava os enredos daquele homem astucioso e sem fé; mas, ou porque já não pudesse lutar com ele frente a frente ou pela fraqueza própria do seu sexo, não ousava tomar uma resolução enérgica. As tentativas indirectas para o prender eram desfeitas pelo prelado, e a rainha para o mitigar via-se constrangida a aumentar-lhe a influência e o poderio. Nestes enganos mútuos, nesta guerra covarde e tenebrosa passaram os primeiros meses de 1121. Então ocorreram os sucessos que interessam especialmente a nossa história, para explicar os quais era preciso compreender a situação dos dois partidos e, sobretudo, a de Diogo Gelmires, espécie de Mefistófeles sacerdotal, cujo carácter é assaz negro para ainda sobressair no quadro da anarquia e dos crimes que despedaçavam o seio da monarquia leonesa.

O moço Afonso Raimundes simulava entretanto não proceder de acordo com os fidalgos do seu partido, que aliás trabalhavam, como o tempo mostrou, em dispor os elementos de uma revolução, cujo resultado, diferente do das tentativas até aí feitas, fosse decisivo. D. Urraca veio então a Compostela acompanhada de seu filho. Foi nessa ocasião que se resolveu a guerra com Portugal, dando-se por motivo que D. Teresa havia noutro tempo invadido Tui e as suas cercanias e que retivera esses territórios debaixo do próprio domínio. Seria, talvez, esse o fundamento da empresa; mas tem visos de ser apenas um pretexto especioso, se, como cremos, a ocupação daquele território remonta a cinco anos antes, durante os quais as duas irmãs conservaram entre si paz, quer fingida, quer sincera. D. Urraca, aproveitando a aliança aparente de Gelmires, tinha feito danos consideráveis aos seus inimigos na Galiza: o mais provável é que D. Teresa estivesse ligada com eles e que sua irmã, instruída até certo ponto do que se forjava, quisesse dar um golpe no adversário mais poderoso, como era D. Teresa, que dispunha dos recursos de uma província inteira. Porventura, também Gelmires aconselhava este movimento, ou para despertar o incêndio ou para entreter a rainha numa guerra perigosa, cujos cuidados a distraíssem de seguir o fio da conspiração na
Galiza.

Já no princípio deste ano ou do antecedente, Fernando Peres, filho de Pedro Froilaz e alferes-mor do arcebispo, vivia na corte de D. Teresa, de quem obtivera os mais importantes governos que lhe podiam ser confiados, os do distrito do Porto e do distrito de Coimbra, com o título de cônsul ou conde, como o tivera o borgonhês Henrique. Era preciso que as suas relações com a infanta dos portugueses fossem antigas e a sua influência no ânimo dela excessiva para que um simples cavaleiro e, posto que filho segundo de uma das mais nobres famílias de Espanha, soldado do arcebispo de Compostela, subisse a tão elevados cargos. A boa harmonia do filho de Pedro Froilaz com o prelado subsistia ainda depois da guerra. Seguindo cada qual o campo de uma das irmãs, a amizade entre os dois não acabara, porque na realidade deviam ser estreitas as suas relações ocultas. O vínculo que os unia pode, em parte, conhecer-se do que até aqui temos relatado.

Resolvida a invadir os estados da irmã, D. Urraca marchou com seu filho para Tui na Primavera ou no estio de 1121. Seguiu-a, posto que constrangido, o façanhoso Gelmires, acompanhado dos seus homens de armas e dos cavaleiros vilãos de Compostela, que por seus foros não eram obrigados a avançar até o distrito de Tui, mas que ele teve artes de arrastar consigo. Sabida a aproximação do exército galego, D. Teresa com as forças que pôde coligir veio acampar na margem fronteira. Mais próximo ao lado de Portugal, o rio fazia naquele sítio uma ínsua. A posse dela facilitava a passagem, mas defendiam-na as barcas portuguesas que vogavam pelo Minho. Os destros marinheiros de Padrón e alguns compostelanos, com vários cavaleiros escolhidos, embarcaram da parte oposta e vieram acometê-las. Vencedores, em breve se apossaram da ínsua. Este sucesso levou o terror pânico aos arraiais de D. Teresa, que foram abandonados, e, quase sem combate, D. Urraca entrou no território inimigo.

Nesta época de barbaridade e bruteza, a guerra entre os cristãos assemelhava-se nas devastações às correrias mútuas entre eles e os sarracenos. O exército galego, descendo para o interior da província, incendiava, roubava e assolava impunemente as povoações e os campos, porque, fugindo desordenadas, as tropas portuguesas se haviam dispersado. A conquista de Portugal corria rápida. Gelmires, porém, pesou as consequências de tal conquista e começou, segundo parece, a trabalhar ocultamente para que se não realizasse um acontecimento que, aumentando a força moral e material do partido da rainha, empecia o progresso da conspiração, cuja existência os factos até aqui narrados nos revelam.

Capitaneando forças avultadas, cuja falta necessariamente devia embargar a continuação da guerra, este homem que, para segurar no rosto a máscara hipócrita de uma fidelidade em que a própria rainha não cria e da qual ele pedira ao papa o absolvesse, não duvidara combater os seus mais íntimos aliados, nem destruir-lhes os castelos e propriedades; este homem vingativo e cruel sentiu um súbito horror das atrocidades cometidas no território português e um desejo invencível de voltar ao exercício das suas funções episcopais, pretendendo recolher-se para a Galiza com as tropas compostelanas. Todavia, D. Urraca, suspeitando provavelmente qual seria o fito deste inesperado acesso de amor da humanidade, concedeu que os burgueses de Compostela se retirassem, atentos os seus privilégios, mas recusou a licença ao arcebispo e aos homens de armas que o seguiam. Não descoroçoou ele; escreveu ao legado Boso, que já vimos não era alheio, nem como agente de Calisto II o podia ser, às tramas que se urdiam. O legado respondeu-lhe congratulando-se com ele das vitórias obtidas pela rainha e pelo filho; mas recomendando-lhe ao mesmo tempo com a maior eficácia que por nenhum caso deixasse de comparecer no concilio que se ia celebrar em Sahagún. 

A convocação deste concílio fora resolvida pouco antes da expedição contra Portugal: aí se deviam tratar negócios, não só pertencentes à Igreja, mas também ao Estado, e por isso mal se compreende como ele se poderia ajuntar sem a concorrência da rainha e do infante Afonso Raimundes, que haviam determinado a reunião daquela assembleia e que se achavam retidos entre Douro e Minho por uma guerra cujo próspero progresso lhes não permitia abandonarem-na. A carta do cardeal legado, evidentemente feita para facilitar a partida do arcebispo, não surtiu efeito; antes, talvez, servisse para tornar D. Urraca mais vigilante sobre o procedimento deste.

A sorte das armas continuava a mostrar-se adversa a D. Teresa. Uma não pequena parte de Portugal achava-se já subjugada: o exército real, marchando pelo sul e poente, havia chegado até às margens do Douro, e a infanta-rainha dos portugueses tinha-se retirado para o distrito ao oriente de Braga. Perseguida por sua irmã, encerrou-se no castelo de Lanhoso, onde não tardou a ser sitiada. As coisas tinham chegado à extremidade, tanto para ela como para os barões desta província. Tomado Lanhoso e cativa D. Teresa, faltava o núcleo à roda do qual vigorasse e crescesse a nascente nacionalidade portuguesa. A força dos acontecimentos veio, porém, salvá-la.

No meio dos graves e tenebrosos meneios em que se achava envolvido, Gelmires não se esquecera de aproveitar a ocasião que se lhe oferecia de recuperar os bens sobre que havia anos disputava com D. Paio. Eram estes a metade de Braga pertencente à Igreja de São Vítor e Frutuoso e a metade da vila de Cornelhan com outras propriedades. Tomando posse delas, o prelado pôs aí os seus vílicos ou mordomos, seguro de as conservar, fosse qual fosse a sorte da guerra, o que de feito aconteceu, porque depois só D. Paio pôde obtê-las de novo por mercê do compostelano, reconhecendo o seu domínio eminente, o que prova quanto Gelmires contava com a benevolência de D. Teresa e serve para nos ilustrar sobre a série de enredos, cuja história só se pode deduzir dos factos externos que a eles se ligavam. Não esqueçamos que Fernando Peres era nesta conjuntura conde do Porto e de Coimbra e que é provável se achasse em Lanhoso com a infanta-rainha, de quem passava por amante. Lembremo-nos, também, da afeição que por toda a vida ele mostrou, salvo raros desgostos, ao arcebispo de Santiago, cujo homem era, para nos servirmos duma expressão desse tempo. Cumpre igualmente observar que ambos eles pertenciam, um oculta, outro francamente, ao partido inimigo irreconciliável de D. Urraca. O vencimento e a sujeição de D. Teresa vinham, pois, a ser por muitos modos golpes fatais nos interesses e desígnios de Gelmires e dos seus associados. Tornava-se, portanto, necessário ao ambicioso prelado correr o risco de uma resolução atrevida para salvar a causa em que se achava empenhado.

1ª Parte

2ª Parte

3ª Parte

5ª Parte

Ver também Reconquista

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