quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

História: Que ligação têm os Portugueses com os Lusitanos? - por Alexandre Herculano



História

Que ligação têm os Portugueses com os Lusitanos?


Por Alexandre Herculano


Quem abrir as nossas antigas cronicas, e depois os livros históricos escritos desde o triunfo completo obtido da literatura da idade média pela literatura greco-romana achará uma diferença fundamental no sistema daquelas e destes. Até os fins do XV século e ainda até depois do meados do seguinte a historia nacional reduz se a cronicas de uma ou de outra época do período decorrido desde a separação de Portugal da monarquia leonesa até o tempo do cronista. Os chronicons mais remotos, escritos em latim bárbaro, são na verdade uma espécie de resumos da historia geral do país; mas começam as suas narrativas, como as cronicas especiais, com os princípios do século XII, e apenas aludem rapidamente aos sucessos posteriores á invasão dos godos, que é para eles uma espécie de génesis histórico. Na infância da historia os nossos cronistas como que sentiam que antes daquela época faltava uma cadeia palpável solida que unisse o Portugal moderno ao mundo antigo.

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Com a restauração das letras gregas e romanas nos fins do século XV o mundo antigo renasceu para uma vida em parte fictícia em parte real. Ao passo que as tradições da jurisprudência romana triunfavam enfim plenamente nas instituições politicas e civis das nações modernas, a republica ideal das letras organizava-se pelas condições de uma literatura, cujos monumentos mais preciosos subsistiam ainda, mas cuja índole e espírito eram até certo ponto letra morta; porque não se podiam casar nem com os costumes nem com as crenças da Europa moderna.

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Quando a admiração um pouco idolatra pelo mundo antigo chegou ao seu auge, começou a declinar e se tornou mais moderada, começou-se também a sentir que as memorias da pátria valiam alguma cousa. As tradições gloriosas da nação buscaram-se. Este pensamento surge pouco a pouco e tenta dilatar-se mas ainda grandemente modificado pelas influencias da erudição clássica. Desde o meado do século XVI principiava o período da nossa rápida e profunda decadência, e os engenhos claros e robustos viam a necessidade de recordar aos ânimos degenerados e abatidos que havia aí uma herança honrada de avós a qual era preciso salvar. Até então o escrever a historia fora uma espécie de serviço publico; os Reis nomeavam um homem que pusesse em escritura os sucessos dos próprios reinados ou dos seus imediatos antecessores; o cronista exercitava um cargo do estado. Desde as cronicas, porém, de Cristóvão Rodrigues Acenheiro, que vivia no reinado de D João III, até a publicação dos primeiros dois volumes da Monarchia Lusitana, que é como a inscrição estampada na campa das nossas grandezas, a historia não só cada vez perde mais, digamos assim, o carácter de registo publico para se converter em matéria de livre erudição particular, mas também refugio do triste espectáculo que passava diante dos olhos do historiador, para ir buscar nas memorias nacionais de outro tempo matéria mais grata de estudo e tradições que reanimassem a perdida energia do povo. Aparecem então, debaixo de diversos títulos, as primeiras tentativas da historia geral do país. Tais são as cronicas de Acenheiro e Nunes de Leão, os Elogios dos Reis de Brito, a Varia Historia de Pedro de Marís. E resumindo o pensamento do seu tempo, Camões, nos Lusíadas dedicados ao descobrimento da Índia, lança com o pincel divino os lineamentos principais das nobres recordações da idade média.

Mas no complexo das doutrinas daquele tempo acham se incorporadas as duas ideias, até certo ponto opostas da erudição clássica e das tradições pátrias. A primeira modifica-se pela segunda e d'ahi nascerem, em nosso entender uma nova tendência histórica. É a de aproveita-las ambas e de fundi-las n'um corpo homogéneo. Nos escritores gregos e romanos encontravam-se importantes noticias sobre a Hespanha antiga, sobre os povos que a habitaram ou dominaram, sobre os seus costumes guerras, e mais sucessos. As passagens relativas a essas matérias estudaram-se, compararam-se, esclareceram-se por longas e atentas investigações, e os anais das raças que tinham precedido o estabelecimento das nações modernas na Península puderam tecer-se aproximadamente. Restava buscar um fio que prendesse as duas grandes épocas e as fizesse depender logicamente uma da outra; isto é restava buscar um povo, uma tribo, uma família, fosse o que fosse, que remontando aos tempos mais afastados pudesse considerar se como origem e tronco da nação portuguesa e esta, não como uma nova sociedade constituída com diversos elementos, mas sim como uma transformação ou modificação daquela. Desse modo a nacionalidade e a erudição ajudavam-se mutuamente e confundiam-se n'uma ideia só em relação á historia. As diligencias para obter este resultado foram coroadas aparentemente de bom sucesso, e á força de aproveitar algumas verdades e muitas fábulas e ao mesmo tempo de atribuir a diversos factos um valor que eles não tinham, a gente portuguesa achou-se em breve uma das mais antigas do universo, descobrindo o seu berço nos cimos de Ararat d'onde os filhos de Noé desceram a repovoar a terra.

André de Resende, o maior e mais judicioso antiquário português do século XVI, no seu famoso tratado das Antiguidades Lusitanas escrito na língua latina deu grande impulso a essa aplicação do estudo da literatura grega e romana a ilustrar a historia e, principalmente a geografia antiga do ocidente da Península. Os quatro livros De Antiquitalibus Lusitaniae são o nosso mais antigo quadro das tribos que estanceavam entre o Guadiana e o Douro na ocasião da conquista romana, bem como o são das divisões civis do território, da sua hidrografia interior e da situação das cidades e povoações que outrora aqui existiram. A obra de Resende, embora contenha emendas importantes ás opiniões recebidas a semelhante respeito, nem por isso deixa de representar no essencial essas opiniões. Aí a Lusitânia antiga acha-se associada com Portugal de tal maneira, que as palavras lusitani e Lusitânia ora significam as tribos e o trato de terra assim denominadas pelos romanos na ocasião da conquista, ora a província que estes estenderam até o rio Ana ou Guadiana e sua varia população, ora finalmente os portugueses e o nosso território, cujos limites são totalmente diversos. Estas ideias, distintas entre si, confundem-se inteiramente no livro de Resende, cujos estudos eram determinados pelos dois impulsos encontrados a que nos temos referido, o da erudição clássica e o do sentimento de nacionalidade. São elas que introduzem uma espécie de anarquia no plano do livro das Antiguidades, aliás excelente nas particularidades da sua execução.



Na época, pois, de Resende, isto é, pelo meado do século XVI, a ideia, contraria aos factos, de que existia certa espécie de unidade nacional entre a nação portuguesa e uma ou mais tribos dos celtas espanhóis conhecidos pelo nome de lusitanos estava fortemente radicada entre os escritores, que a haviam recebido sem exame lisonjeados com o lustre que criam vinha á sua pátria deste parentesco tão nobre pelo remoto como pelas façanhas daqueles guerreiros selvagens que tomavam por avós.

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O primeiro escritor conhecido por nós que usou da palavra lusitani para designar os portugueses foi o desgraçado bispo d' Évora D. Garcia de Meneses, vitima desse mesmo amor exagerado das cousas romanas que fez triunfar o poder absoluto de D. João II da organização politica da idade média, e que em literatura levava aquele prelado a dar aos seus compatricios o nome colectivo de uma porção de tribos célticas da antiga Hespanha. Nas composições, porém, de Henrique Cavado e de Cataldo Siculo, escritas nos fins do século XV, e nas subsequentes de Aires Barbosa, Pedro Margalho, Goe, Osorio, etc., as palavras lusitani e Lusitânia tornam-se constantes para representar os portugueses e o seu território. Na língua vulgar o uso destes vocábulos só vem mais tarde; todavia nos fins do século XVI estava de todo generalizado. A ideia do parentesco entre portugueses e lusitanos passava por incontrastavel e o livro de Resende é, como dissemos, a completa expressão dessa ideia.

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Nos tempos primitivos, a Hespanha parece ter sido povoada por duas migrações sucessivas da Ásia, a dos iberos ou melhor euskaldunac, e a dos celtas ou antes célticos. Tanto a luta como a associação das duas raças produziu no território central da Península as tribos mistas denominadas celtiberos. Os celticos ficaram formando cinco grupos principais de tribos bárbaras: os cantabros, asturos e vasconios ao norte; os callaicos e os lusitanos ao ocidente. Ocupavam estes últimos, segundo Estrabão, o território cercado pelo oceano ao norte e poente e limitado ao sul pelo Tejo. Ao oriente é difícil determinar as suas fronteiras, que se dilatavam muito além das nossas raias orientais. Sobre o que não resta duvida é que pelo meio-dia os limites da Lusitânia apenas chegavam originariamente a margem direita do Tejo. O geógrafo grego hesita, porém, em atribuir aos lusitanos o território da moderna Galiza e d' Entre Douro e Minho; porque posto n'uma parte os suponha estanceando até o promontório Nerio ou Céltico (Finisterra) faz n' outras passagens ocupar as margens do Lima por uma migração dos celticos (turtletanos e turdulos) que habitavam ao longo do Guadiana pelo Algarve e Andaluzia e em parte do Alentejo. Reina na sua descrição deste trato da Península tal confusão, ora fazendo os callaicos lusitanos, ora distinguindo-os, ora incorporando debaixo desta denominação uma parte daqueles, que evidentemente se conhece quão incertas eram as suas ideias sobre as antigas distinções das tribos célticas depois da conquista romana e da divisão politica da Península feita por Augusto, tempo em que já escrevia Estrabão. O que é certo é que nessa nova divisão a Lusitânia mudou inteiramente de limites. Estes fixaram-se ao norte no Douro, ao sul no Guadiana, e dilataram-se pelas terras sertanejas. Pelo oriente ficaram porém ainda incertos para nós os verdadeiros limites da Lusitânia, sendo assas provável a suspeita de Cellario, de que segundo as conveniências da administração, a linha oriental se alargasse ou encurtasse debaixo do governo dos diferentes imperadores romanos. O que, porém, se deduz evidentemente de todos os geógrafos antigos, tanto daqueles que falaram da Lusitânia antes da conquista romana, como dos que só tomaram por fundamento as divisões estabelecidas por esta, é que os territórios a que se deu tal nome se estendiam pelas províncias espanholas muito além das modernas fronteiras orientais de Portugal, ao passo que na primeira época não passavam pelo sul além do Tejo, e na segunda findavam ao norte pelo


Assim nos tempos da independência céltica e do domínio romano o território da Lusitânia, abrangendo de leste a oeste uma extensão mais que duplicada da largura actual do nosso país, se dilatava a principio, talvez, até a extremidade setentrional da Galiza, enquanto ficava fora dela metade do Alentejo e do Algarve, e depois de abranger estas províncias, menos a porção do nosso solo além do Guadiana, o qual ficou sempre pertencendo á Bética, perdia tudo o que jaz além do Douro até o cabo de Finisterra, isto é, metade da sua superfície, supondo com Estrabão que lhe pertenciam os territórios além deste ultimo rio.

É pois evidente que o Portugal moderno está mui longe de representar geograficamente a Lusitânia antiga. Vejamos agora se os portugueses serão na realidade os sucessores das tribos célticas derramadas pelo ocidente da Península.

Dizemos tribos, porque essas que por abstracção histórica olhamos como um só povo não eram menos de trinta, espalhadas desde os artabros, vizinhos do promontório Nerio, até o Tejo. Destas tribos célticas alguns nomes nos conservaram os escritores antigos. A denominação geral acaso proveio do nome dos lusones (que Estrabão coloca junto das fontes do Tejo, e que talvez eram de origem fenícia) completado pela terminação púnica tão vulgar na Península, e que os romanos adoptaram nas designações corográficas desta região.

Quem lê desprevenidamente os escritores antigos e os modernos que aproveitaram as suas afirmativas, frequentemente disparatadas e algumas vezes opostas, para sobre elas edificarem os sistemas mais contraditórios acerca da divisão dos povos da Hespanha, só pode tirar uma conclusão sincera é que em tal matéria: pouquíssimos factos têm o grau necessário de certeza para serem considerados como históricos. Entre estes há todavia um que é indubitável.

Quando os cartagineses entraram na Península não só as duas raças mais antigas, os iberos e os celtas, se achavam confundidas nos territórios centrais, mas também as das orlas do mar e ainda os celtas e celtiberos de sertão se tinham misturado com os fenícios e gregos, principalmente com os primeiros, cuja influencia na população foi tamanha que ficou predominando até hoje no país o nome que eles lhe puseram.(Spania de Span, cuja significação duplicada de oculta e coelho tem dado matéria ás dissertações dos eruditos, dos quais uns pretendem que muita abundância de coelhos viesse o nome á Hespanha; outros, e esta opinião é a geralmente seguida de ser uma terra afastada e mal conhecida. Em todo o caso a origem do nome é phenicia.) De feito, os fenícios se haviam apossado da melhor parte da Hespanha, em tempos anteriores a Homero, enquanto pequenas colónias gregas se estabeleciam em diversos pontos marítimos, nomeadamente nas margens do Minho e do Douro, subindo pelas suas fozes. Estes diversos elementos de população, que deviam lutar e compenetrar-se em épocas que fogem ás indagações históricas, descobrem- se confundidos e ligados em épocas posteriores. É assim que a própria denominação de Lusitânia indica o elemento fenício e os nomes do Tejo (Tagus) e do Guadiana (Ana) são puramente daquela língua, ao passo que nos nomes das povoações predomina a forma céltica brig ou briga e nos costumes aparecem vestígios da influencia grega.


Neste estado de associação de raças a conquista veio tornar mais completa a mistura. Os cartagineses, originariamente fenícios, tinham incorporado em si uma parte dos líbios ou mouros, formando a casta mista conhecida pela denominação de libyphenices. A historia dos primeiros tempos do domínio desta republica na Península é obscura; mas quatro séculos antes da nossa era; esse domínio se achava assas dilatado e os filhos de Hespanha iam já verter o sangue em países estranhos para defenderem os interesses dos seus novos senhores ou aliados. Foi, porém, no III século antes de JC que a influencia cartaginesa se estabeleceu definitivamente áquem do Estreito por meio da conquista. A porção do moderno Portugal ao sul do Tejo habitada pelos turdetanos (celto-fenícios) e pelos celticos das margens do Ana, tentando resistir ao general de Cartago, Amílcar, foi por ele subjugada. Os habitantes que escaparam constrangeu-os o cartaginês a fazerem parte do exercito vencedor, o país ficou assolado e alguns restos dos seus naturais espalharam-se por outras partes. Dali o exercito vencedor marchou contra os vetões e tribos da Lusitânia que também recusavam a aliança ou antes o senhorio dos africanos. A resistência destas foi mais viva e tenaz; mas terminou do mesmo modo que na Turdetania pela vitoria de Amílcar.

Morto Amílcar no meio destas guerras de conquista, Asdrubal seu genro e Aníbal seu filho a prosseguiram sucessivamente com vigor e destreza. Antes da expedição deste celebre general á Itália através das Gálias os cartagineses tinham sujeitado tudo áquem do Ebro porque já no tempo de Asdrubal eles pactuavam com os romanos que não ultrapassariam este rio nas suas conquistas, o que era abandonar á influencia ou ao domínio de Roma apenas uma sexta parte da Península. Foi aqui, onde dentro de pouco as duas republicas rivais principalmente disputaram em três longas e sanguinolentas lutas qual delas devia perecer. Tanto nestas lutas, como nas guerras d'Africa e d'ltalia os exércitos cartagineses eram em grande parte compostos de espanhóis, ao passo que as tropas africanas e as levas de celtas das Gálias e de Lígures estanceavam uma e muitas vezes pelo território da Hespanha. O resultado d'isto é fácil de adivinhar. «Dois poderosos auxiliares -observa um historiador moderno [Rosseeuw Saint Hilaire, Hist. d' Espagne] - ajudaram Cartago nos seus desígnios de senhorear a Península. Primeiro os mestiços nascidos do trato dos colonos cartagineses com os indígenas, e aliados naturais, que ela espalhara pelo solo da Hespanha para dispor a conquista desta. Foram os segundos os mercenários espanhóis que serviam nos seus exércitos. É sabido que a infantaria celtibera, a cavalaria andaluza e os fundibularios baleares constituíam o nervo das forças de Aníbal. Regressando á pátria estes mercenários travaram com Cartago um sem numero de relações, de que esta soube aproveitar se a benefício do seu comercio e politica».


Esse grande facto da assimilação da raça púnica; essa como renovação do elemento fenício que os cartagineses representavam, porque dele provinham, não foi particular a uma ou a outra província de Hespanha, mas abrangeu o centro, o oriente, o meio dia e o ocidente dela. Os lusitanos, pois, que se distinguiram no serviço de Aníbal, não podiam evitar a sorte comum, e nesta província a raça púnica alterou necessariamente ainda mais a mistura celto- greco-fenícia que anteriormente se havia operado.

Era enfim chegado o tempo em que o longo braço de ferro da republica romana devia cingir a Hespanha para só a arrojar de si exausta e transfigurada nas mãos dos bárbaros do norte. Durante a guerra de Aníbal em Itália uma armada transportou a Ampurias (Emporion) as forças romanas capitaneadas por Gneu-Cipião. Os desastres e a morte deste e de seu irmão Publio trouxeram ao teatro da guerra o moço Cipião chamado depois o africano. Em quatro anos (220 a 216 antes de JC) ele expulsou os cartagineses e voltou a Roma rico de triunfos deixando subjugada esta província. D'aqui data a época da completa transformação da Península.

A guerra da conquista romana durou por duzentos anos; a resistência que os espanhóis opunham a este novo domínio persuade que as acusações de opressão feitas contra os cartagineses são exageradas. Quando a luta começou era a causa de Cartago, mais do que a própria, que eles defendiam. Isto vem confirmar o que acima dissemos; e é notável que, ainda meio século depois da época em que Cipião se gabava de não ter deixado um só cartaginês na Hespanha, os lusitanos capitaneados por um homem dessa origem desbaratassem sucessivamente os exércitos romanos de Manilio e Pisão. Os ódios mútuos que daqui nasceram protrairam a guerra entre os novos senhores da Península e os indígenas, muito depois de destruída Cartago. O génio militar do selvagem montanhês Viriato tornou por alguns anos duvidosa a vitoria de Roma nos territórios do ocidente; mas apesar de repetidos levantamentos, o domínio dos senhores do mundo civilizado firmou-se a final tranquilamente por toda a Península, á excepção dos desvios dos Pirenéus habitados pelos restos indomáveis da raça primitiva dos iberos, que nenhuma das invasões celta, fenícia, cartaginesa, pudera domar ou corromper.

Ajudada pela superioridade da ciência militar a superioridade da civilização romana devia ter uma acção imensa nessas sociedades imperfeitíssimas dos indígenas, aos quais faltava o vinculo da unidade nacional e que, misturados com as raças fenícia, grega e cartaginesa, tinham tomado costumes, vocábulos e ideias de cada um destes povos, sem que esses elementos adventícios tivessem tempo suficiente para se incorporarem perfeitamente no elemento céltico e formarem com ele um todo compacto e homogéneo capaz de resistir á influencia civilizadora de Roma. Esta não empregava só as armas para assegurar a sujeição dos países que subjugava; introduzia neles as suas colónias, as suas leis, os seus costumes; trocava com eles até os deuses, recebendo os estranhos nos próprios templos, mas exigindo reciprocidade religiosa; dava a provar a esses homens rudes o luxo e os prazeres de que era mestra; recebia-lhes os produtos da sua agricultura e industria, e interessava-os assim por muitos modos na existência e prosperidade da grande republica. As consequências deste sistema em países de raças mais antigas e simples, como nas Gálias foram uma assimilação quase completa; o que seria, pois, na Península, onde ele devia actuar com tanta mais força quanto é certo que a mescla das gentes, a variedade de origem nos usos, o encontrado e confuso das leis e tradições religiosas tornavam mais fáceis as consequencias naturais daquele sistema?

A revolução de Sertório que por anos roubou grande porção de território espanhol ao jugo de Roma, não destruiu a já adiantada conquista da civilização romana. Um historiador moderno avalia como errada a politica desse homem extraordinário que ele acusa de ter procurado plantar á força nesta nova pátria que para si criara os costumes e leis da republica, em lugar de favorecer a civilização indígena, cujos gérmenes já existiam no solo da Hespanha [R. Saint Hilaire, Hist. d' Esp.]. Nós vemos a diversa luz o procedimento de Sertorio; vemos n'isso uma prova da facilidade com que desde a epocha dos Cipiões até a dele a vida romana tinha adulterado, se tal expressão cabe aqui, esse composto não radicado de tradições célticas, fenícias, gregas e cartaginesas que constituía o modo de ser dos indígenas. Em vez de condenar o procedimento de um individuo indubitavelmente grande e que conhecia melhor que nós a Hespanha do seu tempo, parece-nos mais natural deduzir desse procedimento o estado moral dela. Supondo que o acomodar a Península ás formas sociais romanas fosse violento para a população desta província, o erro de Sertorio empenhado numa luta perigosa com os seus compatricios seria demasiado grosseiro para não lh'o havermos de atribuir de leve. O que é certo, porém, em qualquer das hipóteses é que o ilustre foragido romano converteu ou acabou de converter n'uma imagem da republica o paízs sobre que adquirira um ilimitado poder.

A Lusitânia, a Celtiberia, e parte da Bética foram as províncias que Sertorio principalmente disputou a Roma. Chamado de África pelos lusitanos para os capitanear, trouxe consigo três mil soldados daquelas partes; e os proscritos como ele, por Sila abandonavam a Itália para se refugiarem na Lusitânia. Os seus combates e vitorias não vem nosso intento. O que nos importa são estas contínuas migrações que se estabeleciam no país e que iam cada vez apagando mais o tipo céltico, ao passo que os indígenas se rareavam diariamente nas pelejas do seu novo chefe. Não era porém só isto. Sertorio armou, organizou e disciplinou á romana os próprios soldados, posto que com menos simplicidade; e Perpenna, que no meio das guerras civis reunira na Sardenha vinte mil homens, passando á Hespanha veio reforçar com eles o seu exercito. Obedecido por mais de setenta mil soldados italianos, espanhóis, e africanos e envolto na guerra com Pompeio e Metelo depois da morte de Sylla, Sertorio não se esqueceu de por todos os modos converter a porção da Hespanha em que dominava n'uma imagem do Lacio. Ebora foi feita capital da Lusitânia, Osca da Celtiberia. Um senado composto de trezentos senadores todos romanos representava o senado de Roma. Osca ficou sendo o centro da reforma intelectual, como Ebora o era da civil e politica. Na capital dos celtiberos se estabeleceu uma como universidade, onde as literaturas grega e latina eram ensinadas por mestres dessas duas nações. Só esta educação conferia aos espanhois o carácter de cidadãos romanos e ficava sendo assim o caminho dos cargos importantes. A afeição de Sertorio pelas cousas pátrias não alterou a que os lusitanos lhe consagravam, o que, apesar do espanto que causa a alguns historiadores modernos, prova só que ele não se havia enganado pressupondo que os habitantes da Península receberiam de bom grado as ultimas condições de uma civilização mui superior á sua, a qual já anteriormente conheciam e tinham em parte aceitado.

Morto Sertorio pela traição de Perpenna, a Hespanha submeteu se a Metelo e Pompeio. D'ahi a poucos anos César, pretor então na Lusitânia, exigiu dos habitantes do Hermínio (Serra d'Estrella) que viessem viver nas planuras. Eram estes homens os que conservavam menos apagados os vestígios do celticismo e a politica dos romanos consistia, como temos dito, em trajar com os seus costumes todos os povos sobre quem imperavam. Os montanheses resistiram; mas o resultado daquela inútil resistência foi o serem exterminados.

Seguiram-se as guerras civis de César e Pompeio. Nesta luta terrível, primeiro acto do grande drama cm que a republica se ia converter em monarquia, a Península foi o principal teatro dos combates terrestres. As tropas romanas, compostas de homens de muitas partes da Europa, da África e da Ásia e divididas entre os dois bandos, cruzaram por muito tempo em todas as direcções este solo que tanto sangue humano tem bebido. As batalhas sucediam ás batalhas; os assédios aos assédios; as povoações destruídas ficavam ermas dos seus habitantes; e tudo isso servia não só para acabar com as ultimas e ténues barreiras que d'antes estremavam as tribos indígenas, mas também para cada vez tornar mais inextricavel a mistura de novas raças com a mescla já confusa dos antigos povoadores.

Se porém (não falando nos vasconios, sempre independentes e solitários nas suas montanhas) alguns caracteres de nacionalidade ibérica ou céltica, apesar dos factos políticos e sociais que temos rapidamente apontado, subsistiam ainda, o sistema administrativo de Augusto César e dos seus sucessores, realizando de todo, posto que por diverso motivo, o pensamento civilizador de Sertorio, acabou de desvanecer forçosamente esses caracteres. A Península, que durante o tempo da republica estivera dividida em duas grandes províncias, a Citerior e a Ulterior, foi de novo dividida em três; a Betica, a Tarraconense e a Lusitânia. Depois Constantino Magno a retalhou em cinco; Tarraconense, Cartaginense, Gallecia, Lusitania e Bética. Querem outros que esta divisão remonte ao tempo de Adriano, talvez com pouco fundamento. Subdividiam-se as províncias em distritos ou conventos. No território do moderno Portugal caíam dos três da Lusitânia dois, e um dos três da Gallecia: eram aqueles o de Beja e Santarém, este o de Braga. Aí residiam os magistrados administrativos, judiciais e militares. Das outras povoações as principais eram as colónias, cujo nome está indicando a origem romana dos seus moradores, e os municípios que, gozando de quase todas as vantagens das colónias, tinham o privilegio de se regerem não pelo direito comum, mas por leis e instituições locais e de lhes ser aplicável ao mesmo tempo uma grande parte do direito publico romano. Com o tempo esta distinção importante desapareceu e na época de Adriano só os eruditos sabiam qual era a diferença essencial dos dois géneros de cidades, porque os privilégios dos municípios se achavam de facto abolidos. Havia além destas, as raríssimas povoações que parece terem sido habitadas exclusivamente por indígenas, ás quais, talvez só porque sem combate haviam aceitado o jugo romano, se concedera o titulo vão de confederadas. Eram as imediatas as imunes e as estipendiarias; aquelas isentas dos impostos gerais; estas obrigadas a eles. As contributas correspondiam até certo ponto ás nossas aldeias, porque eram burgos dependentes de outras povoações mais importantes.

No pressuposto porém de que as povoações a que se dava o nome de confederadas fossem debaixo do domínio romano o ultimo refugio da antiga nacionalidade, não é possível imaginar que elas bastassem para conserva-la no meio da transformação geral da Península. Plínio transmitiu-nos uma noticia circunstanciada da distribuição relativa da população na Bética e na Tarraconense  e dela podemos deduzir qual seria a da Lusitânia. De perto de 500 povoações que encerravam as duas províncias 20 eram colónias e apenas 6 confederadas. Assim na hipótese de que os habitantes destas ultimas pertencessem exclusivamente á raça céltico-fenício-púnica, ainda não chegavam a corresponder a um terço da população exclusivamente estranha.

Note-se todavia que isto não passa de um pressuposto. Se, como acima conjecturámos, o titulo de confederadas indica nas cidades que o receberam uma aceitação mais pronta e por consequencia mais antiga do domínio romano, elas não seriam por certo aquelas cujos habitantes pudessem ter melhor jus a considerar como estranhos os seus vencedores.

Mas fosse o que fosse, é certo que volvido apenas um século essas distinções haviam desaparecido. Vespasiano dava o direito latino a todas as povoações de Hespanha que ainda o não tinham, e dentro em breve Caracala atribuía a dignidade de cidadãos romanos a todos os homens livres. No quarto século a cultura e ao mesmo tempo a corrupção de Roma abrangiam plenamente todas as províncias do império. O direito civil romano, que da capital se estendera pela Itália, invadiu as províncias, sem exceptuar a Grécia que, como país grandemente civilizado, salvara a própria língua enquanto a latina. corrompendo-se mais ou menos obliterava as linguagens barbaras dos outros povos conquistados. Assim se formava uma só nação no ocidente da Europa, nação que transpondo os limites dela, se estendia por vastas regiões da África e da Ásia. A Hespanha que fora a que mais energicamente resistira á assimilação foi também a que mais completamente a aceitou. Entre os escritores latinos ilustres contam-se muitos filhos da Península; as legiões romanas compunham-se em parte de hespanhoes; e vemos estes no senado nos cargos mais importantes do império e ate no trono dos césares. Não deve por isso causar espanto que já na epocha de Tibério, em que Estrabão escrevia, os habitantes do centro e oriente da Hespanha pacificados e civilizados, como ele diz, tivessem recebido a forma de viver italiana juntamente com a toga ou vestidura romana.




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