HISTÓRIA DE LISBOA
CAIS DO SODRÉ
PRAÇA DOS ROMULARES
Por duas transformações tão sensíveis tem já passado esta nossa Lisboa, que em breve andarão os antiquários em busca de noticias e vestígios de muitos sítios e monumentos como se estudassem a antiga Roma.
O terremoto e incêndio de 1755 extinguiu grande parte da Lisboa afonsina de que nunca tivemos uma boa planta. As obras municipais de 1834 até hoje, têm igualmente revolvido e desobstruido a Lisboa pombalina, sem deixar planta e memoria de todos os edifícios demolidos e de todos os sitios transformados, alias com melhoramentos e construções louváveis.
Se nós agora buscámos debalde a origem e destino do antigo terreiro ou praça dos Romulares, igual sorte terão os que daqui a alguns anos se quiserem orientar em muitas paragens que vai sumindo o aterro da Boavista.
Voltando á praça dos Romulares ou cais do Sodré, como geralmente se lhe chama, representado na gravura que hoje publicamos, diremos que tentando investigar a antiguidade e derivação do nome desta praça, não o conseguimos. Só alcançámos que, muito antes do terremoto já assim se denominava, posto que não fosse praça regular e apenas um sitio ou paragem da longa praia ou ribeira de Lisboa.
Jacome Ratton ascendente do actual visconde de Alcochete, que pelo tempo do terremoto morava ao Loreto, conta nas suas Recordações que estava no seu escritório fazendo ver a um comprador amostras de papel que tinha para vender, quando sentiu os primeiros abalos do pavoroso terremoto e logo descera para a rua onde, encontrando errante e espavorida uma sua vizinha estrangeira, lhe dera o braço seguindo ambos pela rua do Alecrim abaixo, atravessando os Romulares em direcção ao mar; mas, crescendo as ondas, retrocederam, vindo pela mesma rua do Alecrim até ao alto da Cotovia, para onde muito povo acorria.
Quando o marquês de Pombal dividiu a cidade em bairros, para serem vigiados por magistrados especiais, neles vem essa denominação, que ainda se conservou até aos nossos dias e cremos que o sr. conselheiro José Bernardo da Silva Cabral foi o ultimo corregedor do bairro dos Romulares.
Este nome não se acha em nenhum vocabulário nem genealogia do nosso país. Seria apelido de algum italiano que ali tivesse o seu comércio, visto que por aquele sitio residiam e negociavam muitos, e tanto que no vizinho largo de S. Paulo houve dantes um mercado que chamavam dos genoveses.
Haveria naquele terreiro algumas figueiras italianas de certa espécie chamada romulare, visto que muitas denominações de ruas e sítios de Lisboa tomaram o nome de árvores que aí houve.
Tudo isto são conjecturas semelhantes ás que hão de fazer os nossos vindouros quando virem citada a travessa dos Gatos, que há dias desapareceu com a demolição dos casebres do Loreto. Não terão fundamento para supor que havia ali comércio ou habitação de gatos?
O que se sabe é que toda aquela beira mar ou, como então se chamava, marinha, desde os Paços Ribeira, situado onde agora está o arsenal, até paço de Santos, actualmente da casa de Abrantes, era despovoada. O sitio que hoje ocupa o cais do Sodré e Corpo Santo era tudo praia, onde se reunia a gente do mar, nacionais e estrangeiros, e destes muitos, porque o comercio então era grande, por causa dos géneros do Brasil, que se fazia todo pelo porto de Lisboa.
Para dar ideia da concorrência que dantes havia naquela paragem, citaremos um autor do tempo dos Filipes. Os jesuítas tinham por costume ensinar a doutrina cristã pelas praças e lugares públicos. Para esse fim juntavam os rapazes das escolas e os levavam consigo a esses lugares, onde os rodeava muito povo, que assim atraído do espectáculo ouvia também a doutrinação. O padre Balthasar Telles, eloquente cronista da Companhia, diz ao nosso propósito o seguinte:
«Advertindo o padre mestre Inácio, o da cartilha, como naquela paragem da cidade a que chamam Corpo Santo (chegava onde hoje - 1860 - se estende o cais do Sodré) concorriam muitos estrangeiros de toda a sorte de gente, católicos, hereges e marinheiros; pondo em ordem a sua luzida soldadesca (os meninos das escolas) entrou e conquistou aquela praça, levantando a bandeira da santa doutrina num lugar eminente, á porta da ermida de Nossa Senhora da Graça, que até ao dia de hoje (1635) nos faz ali mui bom gasalhado, porque em todas as semanas em um certo dia, ali acode a santa doutrina a continuar a boa posse daquela praça, que se ganhou pela santa industria do padre mestre Inácio, com grande fruto dos outros ouvintes, porque os que não aproveitam, pelo menos se confundem.»
A ermida de que fala o cronista tinha sido edificada pelos marítimos e navegantes e aí veneravam a imagem de S. Pedro Gonçalves Telmo, para cuja canonização eles trabalharam e gastaram muito; e a este patrono, que invocavam e lhes aparecia nas tempestades, chamavam o Corpo Santo ou, á espanhola, Santelmo. A ermida demoliu-se depois do terremoto, mas a denominação que teve aquela praia, originada do orago da igreginha náutica, ainda se conserva no pequeno largo dito do Corpo Santo, que alguns erradamente têm dito provir-lhe tal denominação de haver ali desembarcado o corpo do infante santo, que assim chamaram a D. Fernando, filho del rei D. João I, que ficou de refém em Tanger, para se restituir aos moiros a cidade de Ceuta, no que ele não consentiu, preferindo ir cativo para Fez onde morreu martirizado. Os seus ossos quando vieram para o reino, desembarcaram no Restelo (Belém).
A denominação de cais do Sodré, que vulgarmente abrange tambem esta praça dos Romulares, que fica no centro dele, foi dada depois do terremoto, quando Vicente Sodré, descendente de Fradique, Sodré inglês que passou a este reino no tempo e D. Afonso V, edificou ali grandes prédios que vinculou, concorrendo também para a cortina e obra do cais, que é um dos mais centrais que tem Lisboa e que dá melhor serventia aos navios ancorados no Tejo.
A Câmara Municipal mandou arborizar esta praça e em 1845 a fez empedrar de enxaquetado preto e branco, pondo-lhe no meio um quadrante horizontal, sobre uma mesa redonda de pedra de lioz, coisa ridícula, inútil e impropria de tal lugar.
Archivo pittoresco, Volume 3, 1860
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