História
Lisboa
VIII
Como e porquê os frades fizeram desaparecer os restos mortais
de Afonso de Albuquerque
Por esta declaração authentica do filho sabemos que elle tinha dado grossa renda aos frades da Graça, para que o jazigo de seu pae, o grande Affonso de Albuquerque, fosse na capella mór d'aquella sumptuosa egreja. A segunda edição dos Commentarios tem a data de 1576, dez annos depois da chegada dos ossos vindos de Goa.
Ora em 1556 tinha se começado a reedificar a egreja da Graça, porque a antiga, tendo já 285 anitos, as paredes se mostravam cançadas de sustentar o peso da abobada, segundo se exprime o jesuita que em 1704, deu ampla descripção d'este novo templo, obra que se conserva inedita na sala dos manuscriptos da bibliolheca nacional de Lisboa, com a marcação A. 3. 21.
Foi naturalmente por esta occasião que o filho de Affonso de Albuquerque contratou com os frades, dando-lhes grossa renda, para que a capella-mór ficasse sendo a jazida de seu pae.
Acceitaram os frades a offerta, isto é, fizeram venda da capella-mór para tão honrada sepultura; mas depois «roeram-lhe a corda» (tolere-se-nos o rifão, que é bem cabido em boccas tão famintas). Quando o filho de Albuquerque morreu, que foi em 1580, durava ainda o pleito que os frades lhe haviam proposto, para que lhes largasse a capella-mór da Graça, como elle proprio o declara nas seguintes palavras do testamento com que falleceu: E porque trago demanda com os ditos padres sobre lhe largar a dita capella, etc.
Tratámos de indagar onde paravam os autos d'esta demanda, que deviam ser curiosos, pois nos dariam razão dos motivos por que os frades queriam rescindir um contrato que lhes dava tanta nomeada e gloria ao seu novo templo, qual a de ser deposito de tão honradas cinzas. Os autos, porém, segundo todas as presumpçoes, foram dos que fitaram sepultados nas ruinas do terremoto de 1755, ou talvez os frades os queimassem, para que a posteridade não tivesse noticia de tão escandalosa rescisão.
Vendo nós, porém, que o citado codice da bibliotheca dizia que os frades haviam vendido a capella mór para jazigo de D. Diogo de Menezes, primeiro conde da Ericeira, fomos ao cartorio das capellas e jazigos, que se conserva no hospital de S. José e ahi, no liv. 1. n. 163 do extincto da Graça, achámos, com effeito, alguma coisa a este respeito, sob o titulo de Capella de D. Diogo de Menezes, da casa dos condes da Ericeira. Contém o traslado de varios documentos e transacções com os herdeiros do instituidor da capella sobre o rendimento applicado para diversos suffragios, e, entre elles, um alvará de el rei D João IV, datado de 19 de maio de 1644, permittindo aos religiosos do mosteiro da Graça possuirem para sempre 500$000 réis de juro n'um padrão, em logar dos bens de raiz que possuiam em terras jugadeiras, pelo contrato feito com Affonso de Albuquerque, pela capella mór da egreja do dito mosteiro, contrato que está desfeito por sentença contra os herdeiros do dito Affonso de Albuquerque; e isto para que tenha effeito no contrato que os fizeram com os testamenteiros do conde da Ericeira sobre a mesma capella.»
Este, além dos 500$000 réis de juro annual, deu ao convento, pela capella mór que tinha comprado o filho de Affonso de Albuquerque para perpetuo jazigo de seu pae, deu mais duas tapeçarias, tudo com a obrigação de tres missas quotidianas dois anniversarios.
Aqui está, pois sabido o exito da demanda os frades intentaram contra o filho de Affonso Albuquerque. Houve outro defuncto que deixou mais, e por isso os ossos do fundador do imperio da India foram deitados para um canto, e depois sumidos, perdidos para sempre!
O piedoso filho, vendo a má vontade dos gracianos, e prevendo já que perdia a demanda que haviam intentado contra elle, tratou, em vida, de edificar á sua custa um templo, em que para jazessem descançadas as cinzas d' aquelle que em vida tinha feito já a muitos comerem- se de inveja.
Eis o que lemos no seu testamento:
Digo e declaro que por minha propria vontade, sem meu pae o mandar em seu testamento, d'elle se verá, determinei tomar para sepultura de seus ossos, minha e de minha mulher, a capella mór Nossa Senhora da Graça da ordem de S. Agostinho, para o que tinha feito contrato com os padres do dito mosteiro, no qual lhes dotei certa fazenda com certas obrigações. E por os ditos padres não cumprirem commigo como eram obrigados, e pelo que em minha vida vi e entendi, que pois faltavam na vida sendo presente, muito mais faltariam da morte; por a experiencia que d'isso alcancei, e por outros justos respeitos que me a isso levaram, mando:
Que sendo caso que antes da minha morte não tenha mandado as ossadas de meu pae, mulher e filha, á egreja de S. Simão, que mandei fazer á minha custa em Azeitão, que logo as façam mandar para a dita egreja, conforme a declaração do livro d'isso tenho feito B.or da Matta.
E porque trago demanda com os ditos padres, sobre lhe largar a dita capella etc. (Manuscripto bibliotheca nacional de Lisboa).
D'aqui se ve que os frades, assim como tinham renhido sobre a conta que eram obrigados a dar do rendimento dos bens que haviam recebido para suffragar as almas dos ascendentes de Affonso de Albuquerque, tambem agora se mostravam arrependidos de terem concedido a sua capella mor para jazigo de tão gloriosas cinza,s a ponto de obrigarem o bom filho de tal heroe a edificar um templo especialmente destinado para sepultura de seu pae, como de feito edificou á sua custa na villa de Azeitão.
Mas foram para alli transferidos effectivamente ossos do grande conquistador da India?
O padre Luiz Cardoso, que tantas noticias recolheu para o seu excellente Diccionario Geographico, formando para a composição d'elle uma serie de interrogatorios que por ordem superior foram remettidos a todas as auetoridades civis e religiosas, fallando da referida egreja de S. Simão, e citando até documentos do cartorio diz: «Para esta egreja determinou seu fundador trasladar os ossos de seu pae, da capella mór de Nossa Senhora da Graça dos religiosos eremitas de S. Agostinho da cidade de Lisboa, o que até agora (1745) se não fez (T. I pag. 734.)
É evidente pois que os restos mortaes de Affonso de Albuquerque ficaram na Graça. Mas esquecidos, desprezados, sem monumento, sem lapide, e talvez sumidos de proposito pelos frades, como nos inculcam os seguintes documentos!
Como o chronista dos gracianos, fr. Antonio Purificação, fazendo ampla descripção das de pessoas notaveis que havia no convento de Lisboa, nem sequer faz menção de Affonso de Albuquerque; tão pouco diz uma palavra ao menos, o Antonio de Carvalho, na descripção que faz da egreja da Graça, na sua Chorographia Portugueza, tratámos de indagar em que paragem da egreja estavam, ou tinham estado estes ossos, com cuja posse, e cuja virtude, os portuguezes da India contavam nunca perder um palmo de terra por elle conquistado.
Ninguem nos soube dizer; nenhum dos egressos que ainda hoje vivem d'aquella extincta ordem tinha sequer ouvido fallar em tal n' aquelle convento, nem uma inscripção, uma letra, uma cruz, nada!
Que vergonha, e que ingratidão esta, da pátria que tal homem engrandeceu como poucos.
E todavia temos um documento que prova haverem estado os ossos do grande capitão soterrados na capella mor da Graça. É o codice C.5.13. da sala dos manuscriptos da bibliotheca nacional de Lisboa, que tem por titulo: Nobiliario de varias familias Portugal, que não só por ter sido cotejado com nobiliario feito pelo arcebispo de Lisboa D. Rodrigo da Cunha em 1631, como dizem as annotações marginaes, mas pelo caracter da letra, mostra ser d'aquelle tempo, e é autographo. Ahi, no titulo dos Gomides Albuquerques, se diz que o grande Affonso Albuquerque esta enterrado na capella mór de Nossa Senhora da Graça, de Lisboa, e sobre a sepultura as bandeiras que tomou aos reis moiros, e um letreiro que diz: Aqui está o grande Affonso de Albuquerque.
Para onde levaram os frades este singelo epitaphio e as bandeiras moiriscas?
Nenhum dos impressos posteriores fallam em similhante epitaphio n' aquelle convento; nem o chronista da ordem, alias um chapado mentiroso, posto que escrevesse a chronica ao tempo que concluiu citado nobiliario. Vê-se que havia mancommunação com os frades para se não fallar em tal. O jesuita que escreveu o livro que já citámos, guardou o silencio.
Procuramos em differentes estações publicas os papeis que d'aquelle convento haviam saido, e só na repartição de fazenda do districto de Lisboa, achámos o livro de registo das missas que os frades da Graça tinham obrigação de dizer por alma de seus bemfeitores, e ahi, entre uma longa serie de defunctos obscuros, achámos o seguinte, a fol. 302:
«Affonso de Albuquerque. - Por sentença do provedor das capellas, tem este defuncto n'esta uma missa quotidiana, sómente, a qual pela dita sentença paga o administrador conforme ao ordinario em que se monta cada anno dezoito mil trezentos réis. É hoje administradora d'esta capella D. Luzia de Menezes, mulher que foi de Lourenço de Souza, aposentador.»
Começa o assento das missas em 1623 e termina em 1732. Tem uma cota á margem de letra d'esta epocha que diz: O conde de Santiago paga esta capella, e dá 43$560 réis. A folha em que isto esta escripto, apesar de ter ainda grande espaço em branco, não diz mais nada.
Fomos em busca dos successores da casa de Santiago, e soubemos que era actualmente a de Pombal.
O excellentissimo marquez d'este titulo nos disse, que parte dos vinculos do conde de Santiago se achavam encorporados nos da sua casa, por succesão que seus ascendentes haviam recebido da do conde de Salzedas. Que era elle que pagava os suffragios por alma de Affonso de Albuquerque, ao hospital de S. José, depois da extincção do convento da Graça.
Dignou-se este nosso illustrado fidalgo mostrar- nos todos os papeis que no seu cartorio tem a tal respeito; e entre elles achamos a verba do testamento do grande Albuquerque, feita em 1506, na qual institue um legado perpetuo na egreja da Graça, para n'ella se dizer missa quotidiana por alma de seu pae, de sua mãe, e d'elle, determinando que esta missa (formaes palavras) se diga no altar da capella do capitulo aonde jaz meu pae e meu bisavô. Para isto deixa onerados os bens livres que possuia em Alhos Vedros, Atouguia e Alhandra.
Tem esta verba disposições mui notaveis, entre outras a de recommendar o testador, que não quer a missa dita por nenhum frade, sim por um clerigo de bom viver, ao qual manda se dêem seis mil reis cada anno, para elle e para a candeia com que disser a missa; e mais mil e duzentos para um moço que o sirva.
E para que o seu capellão não usasse de coisa alguma pertencente aos frades, ordenou que se comprasse uma vestimenta de seda, e um calix de prata para dizer esta missa, e que tudo estivesse fechado n'uma arca na capella ou na sacristia. Prevendo que os frades se haviam de escandalisar com tão affroutosa recommendação, dispoz Affonso de Albuquerque o seguinte: Não consentindo n'isto os frades nem querendo que se diga a dita missa, canta-se em Santo Eloy, indo o clerigo de fora como tenho dito, com tudo que necessario for.
Aqui esta pois explicada a raiva que os frades da Graça tiveram sempre á familia dos Albuquerques, e a razão por que commetteram a infamia, não só de lhe venderem o jazigo, mas de lhe sumirem os ossos, aquelles ossos que tantos trabalhos e dispendios custaram a seu filho, a ponto de ser necessario conseguir uma bulla do papa, com excommunhão maior, para todos os que na India se oppozessem á sua trasladação para Portugal.
Para terminarmos esta digressão, resta-nos ainda adduzir alguns factos que nos parecem demonstrar que os frades da Graça sumiram, ácintamente, os ossos de Affonso de Albuquerque.
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