sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

História: Casa dos Bicos 7 - Os frades enganam Afonso de Albuquerque





História

Lisboa


VII

O que fizeram os frades aos ossos de Afonso de Albuquerque?



No ultimo capitulo fizemos a promessa de descobrir a paragem dos ossos do grande Affonso de Albuquerque, tanto a pezar dos moradores de Goa, trazidos a Portugal em 1566, e depostos no jazigo dos Gomides, no convento da Graça de Lisboa. Com os frades d'esta ordem teve o edificador da casa dos Bicos renhida questão, a ponto de fundar em Azeitão uma egreja propria para jazida de tão grande homem. 

Mal pensavamos quanta lida nos houvera de causar esta promessa, para a final nos vermos forçados a declarar, que os frades a quem foi confiado tão precioso deposito, ácintemente confundiram estes honrados ossos, tirando-os do jazigo em que estavam para o dar ao outro bemfeitor que lhes soube tentar a cubiça! 

É a triste a vergonhosa solução que nos ministram os documentos que havemos descoberto. 

Façamos d elles breve resenha. 

No capitulo II dissemos, que o jazigo a que Affonso de Albuquerque se referiu no seu testamento, e no qual mandou se depositassem os seus ossos quando viessem da India, era o dos Gomides, como tambem expozemos no mesmo artigo. 

Vamos ver como os frades começaram a esquivar-se ás obrigações que o fundador da capella e jazigo lhes impoz. 

Devemos ao illustre e illustrado conde de Peniche, um dos immediatos successores dos vinculos de Affonso de Albuquerque, o obsequio de nos facultar todos os papeis e processos a respeito d'esta questão do jazigo da Graça. 

Já notámos que o fundador do morgado de Villa Verde, dos Albuquerques, fôra Gil Esteves Fariseu, homem riquissimo para aquelles tempos, como se deprehende do seu testamento, o qual tendo adoptado a Gonçalo Lourenço de Gomide, celebre escrivão da puridade del rei D João I, o fez herdeiro de quasi todos os seus bens; pondo no testamento com que falleceu esta verba: 

«Mando enterrar meu corpo no mosteiro de S. Agostinho da cidade de Lisboa, dentro no cabido; e mando com o meu corpo ao dito mosteiro cem livras. Item. Deixo ao dito mosteiro de S. Agostinho o meu casal de Louriceira, com esta condição; que os frades do dito mosteiro me digam para sempre em missas tudo aquillo que o casal render, e isto pela minha alma e de Sancha Annes minha mulher. Item. Mando mais ao dito mosteiro cinco mil livras em herdades, afora o dito casal, e isto, para refazimento d'uma capella em que me digam em cada um anno as missas, para sempre pela minha alma e da dita Sancha Annes minha mulher, como dito é.» 

Este testamento tem a data de 10 de maio de 1437 (era de Cesar que corresponde á de Christo 1399). 

Dois annos depois, isto é, aos 25 de agosto de 1401 acrescentou o herdeiro estes suffragios pela seguinte escriptura: Saibam todos que eu Gonçalo Lourenço, escrivão da puridade del rei D. João, e eu Ignez Leitoa etc. querendo reconhecer a Gil Esteves e a sua mulher Sancha Annes, moradores que foram na cidade de Lisboa, uma doação que nos fizeram de todos os bens que elles haviam em estes reinos; de nossas livres vontades fazemos pura doação, entre vivos, valedoira para todo sempre ao mosteiro de S. Agostinho da cidade de Lisboa, onde jaz enterrado o dito Gil Esteves, e onde se ha de iançar a dita Sancha Annes, de um casal que nós havemos, que jaz em o termo da dita cidade, em logar que chamam a Louriceira. O qual casal damos ao dito mosteiro com a condição que os frades elejam, entre si, um frade ou dois ou mais ou menos segundo as rendas do dito casal, que cantem em cada um dia, e celebrem o officio divino para sempre, pelas almas do dito Gil Esteves e Sancha Annes sua mulher, por guiza que todas as novidades e rendas do dito casal se dispendam em missas cantadas pelas almas dos sobreditos.» 

Para que tambem tivesse jazigo e suffragios no convento da Graça, este mesmo Gonçalo de Gomide, fez passado tempo, outra doação aos mesmos frades de um casal denominado de Casainhos, no mesmo logar da Louriceira, que ficava na aldéa de Bucellas (hoje villa); uma casa na rua dos Douradores, e as tendas (lojas) que tinha á porta de Ferro, com a obrigação de um annal de missas, tres procissões, um anniversario e duas missas officiadas em certos dias, tudo por alma d'elle Gonçalo Lourenço, e sua mulher Brites Leitoa

Estes, e outros de que não ha tão authenticas memorias, são os avós junto dos quaes o grande Affonso de Albuquerque ordenou, por testamento, se enterrassem os seus ossos. 

Que fizeram porém os frades da Graça, tão bem dotados, para suffragarem as almas d'estes finados? 

Diga-o a seguinte minuta junta á sentença tirada no anno de 1752, de uma demanda que durou dez annos

«Em 25 de agosto da era de Cesar de 1439, que é o anno de Christo de 1401, nas notas de Pero Esteves de S. Vicente, tabellião de Lisboa, Gonçalo Lourenço de Gomide, escrivão da puridade do sr. rei D. João, o primeiro d'este nome, e sua mulher Ignez Leitoa, fizeram doação perpetua ao convento da Graça de Lisboa de um seu casal, sito na Louriceira, termo de Lisboa, cujo rendimento annual, inteiro, o dito convento distribuisse em missas e officios quotidianos, pela alma de Gil Esteves Fariseu, e sua mulher Sancha Annes, com a condição de o dito convento o não poder nunca vender, dar, nem alheiar, sob pena, não só de ficar esta doação nulla, mas tambem de que logo o administrador de Villa-Verde tomaria d'elle posse; e o mesmo tambem se o convento faltasse ao inteiro cumprimento das missas e officios quotidianos. Porém, cumprindo pontualmente que os administradores do dito morgado examinassem, visitando assim na egreja do dito convento a satisfação das obrigações pias, como no dito casal o seu estado de conservação, e que por cada visita o administrador do morgado recebesse do convento um carneiro, dois capões, dois alqueires de trigo e dois de cevada, ao que tudo se sujeitou e se obrigou o dito convento. 

Pelo juizo da Provedoria das capellas d'esta corte, escrivão Manuel de Pontes, requereu o marquez de Angeja, legitimo administrador do morgado de Villa-Verde, a execução e cumprimento da clausula da instituição expressa na sobredita doação, sobre o que o dito convento veiu com embargos. Teve o marquez sentença a seu favor, em o 1º de abril de 1748. D'esta sentença embargada pelo convento, saiu outra pelo mesmo juizo, sem embargo dos embargos, em 14 de outubro de 1748. O convento appellou para a relação; saiu por accordão que fôra bem julgado pelo provedor das capellas, em 7 de fevereiro de 1750; e sendo pelo convento embargado este accordão, saiu outro, sem embargo dos embargos em 17 de novembro de 1750. Tornando o convento a embargar por via de restituição, saiu, finalmente, accordão contra o dito convento, em 8 de agosto de 1752. 

Por fundamento dos embargos de restituição, juntaram os religiosos o testamento de Gil Esteves Fariseu, morador a S. Jorge de Lisboa, feito na era de Cesar, em 10 de maio de 1437, que é o anno de Christo Nosso Senhor de 1399, em que, nomeando por seu herdeiro e testamenteiro a Gonçalo Lourenço, deixou ao dito convento da Graça um seu casal na Louriceira, cujo rendimento inteiro applicava, perpetuamente em missas por sua alma, e de sua mulher Sancha Annes, ditas pelos religiosos do dito convento, e que seria sepultado na casa do capitulo do mesmo convento da Graça; e mais lhe deixava 5 000 libras em herdades, etc. 

Para se não confundir este casal, deixado por Gil Esteves com o sobredito casal doado por Gonçalo Lourenço, ambos sitos na Louriceira, como pretendia o convento, se deve reflectir que o testamento de Gil Esteves foi em 10 de maio de 1399; e a doação de Gonçalo Lourenço foi em 25 de agosto de 1401, dois annos depois; pelo que se deve declarar quantos casaes possue o dito convento no logar da Louriceira, para se vir no conhecimento da distincção dos casaes, e se applicar a cada instituição o seu casal. 

Como as instituições não declaram o limite e as confrontações dos casaes, será difficultoso distinguil-as; quiçá o mesmo convento não saberá mais d'elles que receber os foros cada anno, que é só o desvelo de quem deseja viver alegre para morrer triste.» 

Até aqui vimos que os frades se recusavam a dar conta dos bens que tinham recebido para suffragios; e tambem que esses bens andavam, adrede talvez, misturados, para se não extremarem os que pertenciam a cada uma das capellas. E note-se que nos autos d'onde tirámos estes apontamentos se diz, que já no anno de 1573 o administrador do morgado de Villa-Verde havia feito eguaes instancias baldadamente. 

Ainda vivia n'este anno o filho de Affonso de Albuquerque. Seria acaso a esta demanda que elle, tão desgostosamente, allude na verba do seu testamento, que já transcrevemos? 

Isto porém, é insignificante, em comparação do que depois fizeram estes mesmos frades. 

Tinha o grande Affonso de Albuquerque disposto na sua ultima vontade: «Declaro que fallecendo eu n'estas partes da India, o que Nosso Senhor por sua misericordia não permitta, por alguns justos respeitos que a isso me moveram, e por descanço de minha alma, mando que depois de comesta a carne, os meus ossos sejam levados a Portugal, e se enterrem em Nossa Senhora da Graça, da ordem de Santo Agostinho, onde jazem meus avós. 

Quanto custou ao filho cumprir esta piedosa manda de seu pae, o declara elle no ultimo tomo dos Commentarios, por estas palavras: 

Coisa tão desejada de Affonso de Albuquerque, como era trazerem seus ossos a Portugal (como se ve por estas palavras do codicillo), descuido fôra de seu filho passarem se cincoenta e um annos sem lhe cumprir sua vontade; mas como esta obrigação era de Pero Correa, e como testamenteiro era obrigado a fazel-o fica elle desculpado. O qual Pero Correa por muitas vezes pediu a el rei D. Manuel, que lhe désse licença para os mandar trazer, a qual lhe não quiz nunca dar, dizendo, que em ter os ossos de Affonso de Albuquerque em Goa tinha a India segura. Morto Pero Correa, ficou esta obrigação a seu filho, como seu herdeiro, que trabalhou com el rei D. João o Terceiro, por haver esta licença, que lhe sempre negou, pelos muitos requerimentos que teve dos moradores de Goa, e de toda India, que lh'a não désse; e depois de seu fallecimento, governando a rainha D. Catharina nossa senhora estes reinos por el- rei D Sebastião seu neto, tornou outra vez a este seu requerimento, e passaram-se alguns annos sem o poder acabar, que foi necessario haver uma bulla do papa com grandes excommunhões aos moradores de Goa, que o impedissem; (parece que não era ainda a hora chegada). Havida esta licença da rainha nossa senhora, porque já ahi não havia quem na impedisse, e D. Antão de Noronha á India por viso-rei, que força com a sua auctoridade a mandal'os ao porto de Lisboa a seis dias do mez de abril 1566. E da nau em que vinham foram tirados e levados á casa da Misericordia, sendo Ruy de Tavora provedor, acompanhados de muitos fidalgos, e alli estiveram alguns dias, coberta a com um panno de veludo carmesim com muitos clérigos que o acompanhavam, e diziam cada dia por sua alma, em quanto se dava ordem a se levarem á capella-mór de Nossa Senhora da Graça, que seu filho dotou de grossa renda para seu enterramento. 

Estando tudo prestes, um domingo dezenove do mez de maio foram juntos na casa da Misericordia todos os senhores e fidalgos, que havia na corte, para acompanharem estes ossos, e d'alli em procissão, indo diante a bandeira da Misericordia com toda a irmandade; após ella os frades franciscos e agostinhos, e toda a cleresia da cidade, tochas nas mãos, e no couce o cabido da Sé de parte, e D. Affonso Henriques Adaião del-rei com toda a capella da outra, e após elles a tumba, iam os ossos, que levavam os irmãos, coberta por cima com um panno grande de tela de oiro, e diante ia o provedor com sua vara na mão, e Affonso Albuquerque seu filho de uma parte, vestido em capuz de dó, com a cabeça descoberta, e da parte André de Albuquerque seu sobrinho, da mesma maneira, e detraz da tumba o duque de Aveiro, e seus filhos, e irmãos, e todos os mais senhores fidalgos, e prelados, que a este tempo estavam corte. A gente do povo era tanta, que não pelas ruas, e assim n'esta ordem foram em procissão, e por todas as egrejas por onde passavam se dobravam os sinos, e chegaram a Nossa Senhora da Graça, e na capella-mór estava um estrado alto de dois degraus, que quasi a tomava toda cercada de todas as quatro partes com tochas e alcatifado de muitas alcatifas, e alli pozeram a tumba em que os ossos iam mettidos, forrada de téla de oiro, acompanhada de muitos seus, vestidos todos de dó. E sobre esta tumba estavam dependuradas tres bandeiras das côres e divisas dos tres reinos, que o grande Affonso de Albuquerque ganhou aos moiros na India. Em riba destas bandeiras estava a bandeira real, que lhe el-rei D. Manuel entregou, como atraz fica dito, muito rôta e velha, a qual lhe foi entregue a seis dias do mez de abril do anno 1506. E havendo sessenta annos que d'aqui partira, os ossos a tornaram a entregar no mosteiro de Nossa Senhora da Graça, da ordem de Santo Agostinho, cheia de muitas victorias, que houve na India, debaixo d'aquelle signal da cruz, reinando el- rei D. Sebastião nosso senhor; e depois de estar tudo quieto, começou mestre fr. Sebastíão Toscano sua pregação, da qual não dou rezão n'estes Commentarios assim por não fazer grande volume, como tambem por andar impressa. 




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