História
Lisboa
IX
Casa dos Bicos unida a Hospital em Azeitão
Restos mortais do filho de Afonso de Albuquerque também desapareceram
Já vimos que nenhum dos impressos falla do jazigo de Affonso de Albuquerque, isto é, nenhum dos escriptores coevos, ou proximamente posteriores ao anno de 1566, em que os ossos do valoroso capitão vieram de Goa para o convento da Graça.
Tambem d'elle não falla nenhum dos do seculo passado.
Vejamos agora o que dizem os do seculo actual.
Pedro José de Figueiredo, laborioso sócio da academia real das sciencias de Lisboa, que tantas investigações fez para a publicação da obra intitulada: Retratos e elogios de varões e donas que illustraram a nação portuguesa em virtudes, letras, armas, e artes; cujo primeiro volume se publicou em 1817, no fim da biographia de Affonso ie Albuquerque, e depois de referir como os seus ossos vieram da índia para a Graça, accrescenta:
«Ainda permanecem n' aquelle convento, se bem que mudados da capella mór, quando passou a outro padroeiro, para o cemiterio commum da casa do capitulo, onde não só lhes falta epitaphio, mas confundidos com muitos outros, experimentam, depois da morte, a mesma sorte que elle teve em vida.
Em 1843, o Ramalhete, jornal litterario de Lisboa, em que assiduamente collaborou o sr. F.A. Martins Bastos, e de quem são os melhores artigos sobre as egrejas de Lisboa que alli se publicaram, diz o seguinte, a respeito dos ossos de Affonso de Albuquerque:
«Foram trazidos ao convento da Graça, onde se lhes levantou um tumulo de pouca sumptuosidade, o qual, pêla destruição do terremoto de 1755 que transtornou a egreja, desappareceu; e só por occasião de se enterrar o conde de Villa-Verde, que foi secretario de estado, e determinou ser sepultado no mesmo sepulchro, feitas iinmensas diligencias, sem nada se poder descobrir, por conselho do padre José Agostinho de Macedo, frade d'aquella casa, se achou estar no refeitorio, a que levantando-se os tijolos, foi descoberto o seu esqueleto, a que se uniu o de seu descendente, e talvez que ambos ainda alli durmam.»
Consultando nós o sr. Martins Bastos sobre esta affirmativa, não se recordou d'onde a houvera, mas disse que naturalmente, fôra dos frades da Graça, com quem tivera trato e amizade.
Não ha prova nem testimunho algum, positivo, d'esta assersão; pelo contrario, todas as inducções são contra a veracidade de tal escavação.
Teve grande valimento na corte este conde de Villa- Verde; foi conselheiro de estado; ministro assistente ao despacho do gabinete; encarregado da secretaria de estado dos negocios do reino; director da commissão dos negocios de Roma; secretario da casa de Bragança; presidente da junta do commercio, agricultura, fabricas e navegação do reino; deputado da junta da casa do infantado; gentil homem da camara; inspector da bibliotheca publica da corte, e do jardim botanico; presidente da sociedade real maritima; socio da academia real das sciencias, etc. Com tanta auctoridade, e tendo, segundo consta, propensão para as letras, e para os escriptores e poetas, de que dá bom testimunho o nosso Nicolau Tolentino, como é que elle guardou para depois de morto a busca dos ossos de seu glorioso antecessor? Não fôra honroso, para o seu ministerio, a tentativa, ao menos, de procurar tão preciosas reliquias, e levantar condigno mausoleo a tal heroe, seu parente? Sem dúvida. Mas presuppomos que D. Diogo de Noronha nunca de tal se lembrou. E fundámo-nos no silencio do já citado professor Pedro José da Fonseca, que tratou com o conde, que era filho do medico do convento da Graça, e portanto, na biographia de Affonso de Albuquerque, que escreveu dez annos apenas depois da morte do conde de Villa- Verde, não podia ter deixado de consignar este facto. Antes o nega implicitamente, dizendo, como já referimos pelas suas proprias palavras, que os ossos de Affonso de Albuquerque estavam confundidos com outros muitos.
Ha ainda outra circunstancia que concorre para se ter por fabulosa a achada dos ossos em 1806; e é dizer-se no citado artigo do «Ramalhete» que o padre José Agostinho indicára o sitio onde se achou a ossada do Albuquerque; porque a esse tempo estava Macedo não só já fora do convento, mas indignado contra os frades; pelo que de certo não concorreria para os livrar do labeo de haverem deixado perder as cinzas de tal heroe.
Concluamos, pois, que os frades da Graça, pela clausula do testamento com que falleceu Affonso de Albuquerque, e pela demanda que tiveram com o filho sobre o jazigo da capella mór, se vingaram, infamemente, dispersando- lhe os ossos, lançando-os para o cemiterio commum, como diz o professor Fonseca.
E pois que elles apgaram um dos mais honrosos epitaphios do necrologio nacional, levantemos-lhes aqui a elles o padrão da ignominia que os ha-de infamar em quanto existir a letra redonda!...
Não só os frades da Graça foram os deshonradores das cinzas do grande conquistador da India; n' aquelle mesmo theatro das suas façanhas foram ellas bem mal tratadas. Já referimos a ordem que dera o que lhe suecedeu no governo da India, o ávido concussor Lopo Soares, aquelle a quem D. João II disse, como ingenuamente conta o chronista Garcia de Resende: Mando-vos por capitão á costa de Mina; não sejaes tão peco que venhaes de lá pobre; foi este o que mandou tirar o corpo de Affonso de Albuquerque do jazigo que este para si fizera em Goa, dizendo que o deitassem debaixo de uma arvore; e que o teve com tão pouco recato, que, segundo refere Gaspar Correa: - O capitão Pcro de Albuquerque, que estava com muita magoa sabendo os avexamentos que o governador Lopo Soares fazia ás coisas de seu tio Affonso de Albuquerque, n'estas naus mandou um seu criado com dinheiro para que cobrisse a sepultura de Affonso de Albuquerque com veludo preto, e lhe fizesse grades de redor, e concertasse a capella de tudo o que cumprisse; e disse a D. Aleixo, quando d'elle se despediu: « Senhor, dizei ao senhor governador, vosso tio, que os rumes estão em Camarão, sem nenhum medo, porque estão vivos; que lhe peço por mercê que deixe estar em paz os ossos de meu tio Affonso de Albuquerque, que estão na cova.»
E com effeito, tanto porfiaram seus inimigos em lhe soprar as cinzas ao vento, que de todo as dispersaram!
Pois nenhum d'elles valeu tanto como ao vivo nol-o pinta o seu secretario Gaspar Correa, na seguinte ethopéa:
Affonso de Albuquerque era homem de bom corpo, secco de carnes, o rosto comprido, corado, a barba muito branca, e tão comprida que lhe chegava á cinta. Era muito prudente em todas as coisas; escrevia muito, era conversavel á gente; estimava muito os homens cavalleiros; mui entendido nas negociações dos moiros e gentios. Ante manhã ouvia missa, e só a cavallo, com os da sua guarda, visitava as obras, a ribeira, e armazens. Era mui amigo do proveito del- rei, que nada os seus officiaes despendiam senão por seus mandados. Era supito em sua paixão e logo arrependido. Tratou verdade; era amigo da justiça, de liberal condição para dar o seu. Não tinha estado de despacho, que na rua, sobre o joelho assignava os mandados. Era mui vigoroso contra os homens brigosos; grangeava muito os mercadores moiros e gentios, para os assegurar em boa paz e amizade. Era piedoso aos pobres. Todos os presentes que lhe deram os reis e senhores da India, mandava a el-rei e á rainha, ou os repartia pelos capitães e fidalgos.
Nove annos andou na India, tres que conquistou o reino de Ormuz; um anno que lhe o viso-rei D. Francisco de Almeida não deu a governança; e governou cinco não acabados em que tomou Goa duas vezes e a fortificou, e Calecut, Malaca, Ormuz. Foi o primeiro que entrou o estreito de Meca.
Em seu tempo nenhum homem andou fora do serviço del-rei, e muito honrava os seus criados e das rainhas. Mui zeloso de acrescentar as coisas da India; homem sem cubiça. Não tinha porta fechada, nem porteiro de dia, senão quando dormia depois de jantar, que nos dias da semana era mui pouco. Não tinha nenhum modo d' estado. Escrevia para el rei e rainha, para os do conselho, e para os veadores da fazenda, e por não se occupar de dia, escrevia de noite com seus escrivães, e dava conta a el rei até das bombardas quebradas.
Sabido no reino de sua morte, el-rei mostrou d'isso grande sentimento, e lhe nobreceu um filho que tinha, que Affonso de Albuquerque houvera sendo mancebo em uma mulher de Africa, chamado Braz, que se criava em casa de sua tia D. Isabel de Albuquerque que andava no estudo. El- rei o poz em grande honra, e lhe poz nome Affonso de Albuquerque, como seu pae, e o fez legitimo herdeiro de seu pae, e lhe mandou pagar 180 mil cruzados que deviam a seu pae de seus ordenados e quintaladas de pimenta. E lhe deu 400 mil réis de juro, que para sempre durassem nos morgados d'esta casa, de que o herdeiro sempre teria o nome Aflbnso de Albuquerque, e se fosse mulher se chamaria Affonsa de Albuquerque, porque sempre durasse e fosse lembrado o nome de tão bom vassallo; e lhe fez muitas outras mercês. E el- rei tomou todos os criados de Affonso de Albuquerque no fôro em que o serviam, e lhes pagou quanto lhes deviam do serviço da India. Do que adiante contarei mais outras coisas e merces que el rei fez a Affonso de Albuquerque.»
A mesma sorte tiveram os ossos do filho, o auctor dos Commentarios, e fundador da Casa dos Bicos. Tambem se não sabe onde param!
Tinha elle edificado em Azeitão, como já dissemos, uma egreja, não só para jazigo de seu pae, mas seu e de sua mulher. O sr. José Maria da Fonseca, proprietario e lavrador n' aquelle concelho, se dignou informar-nos, que não constava por nenhum tumulo, epitaphio, ou documento do cartorio da egreja de S. Simão, que alli jazesse o fundador, e muito menos seu pae o grande Affonso de Albuquerque. E por esta occasião nos remetteu o traslado autnentico da instituição da capella que o Albuquerque filho fizera em 1578, onde vem a mui pia fundação de que vamos dar extracto.
« Ordenamos e instituimos (elle e sua mulher) um hospital, de hoje para sempre, na egreja do bem aventurado S. Simão, que está junto da nossa quinta de Azeitão, para n'elle se agasalharem pobres caminhantes de Jesus Christo, pelo modo maneira c condições abaixo declaradas.
Primeiramente mandámos, que no dito hospital haja para sempre cinco camas, em louvor das cinco chagas de N.S. Jesus Christo; e cada uma terá um estrado de pau, para se não gastar com a humidade, e um enxergão de palha, e duas cobertas de almáfega, e uma manta do Alemtejo, e um travesseiro da mesma almáfega, e um de lã, tamanho como a cama; as quaes camas serão tamanhas que possam caber duas pessoas; e serão reformadas todos os annos, e concertadas de todo o necessârio, melhorando, e não peiorando. Ordenámos e mandámos, que no dito hospital se recolham todos os pobres caminhantes, de qualquer qualidade e condição que sejam, tres dias, do dia que entrarem por diante, e mais não. Aos que vierem doentes se poderão agasalhar cinco dias.
E pedimos muito, pelo amor de Nosso Senhor a todos os administradores do dito hospital, que pelo tempo forem, sendo presentes na dita quinta, provam estes doentes de algumas coisas necessarias para a sua enfermidade, por sua vontade e sem obrigação. E ordenámos e mandámos, que a todo o pobre caminhante que vier agasalhar-se no dito hospital, lhes deem azeite para se allumiar toda a noite, e seis mezes de inverno lhes darão lenha para se aquentarem, e enxugarem seus pobres vestidos; e pedimos a todo o pobre que n'este hospital entrar, que por nossa alma, e pela de meu pae Affonso de Albuquerque, rese cinco vezes a oração do padre nosso e cinco ave marias, á honra das cinco chagas que Nosso Senhor recebeu na arvore da vera cruz, pedindo-lhe muito fervorosamente que livre nossas almas do fogo do purgatorio, e as leve á sua santa gloria.
E para se cumprirem as ditas obrigações e encargos do dito hospital, de hoje para todo sempre deixámos, avinculamos e unimos a nossa quinta de Azeitão, com seu assento de casas, pomar, vinhas, serrados, foros, havidos e por haver, assim e da maneira que nós os possuimos; e pela mesma maneira avinculámos e unimos as nossas casas que temos em Lisboa, ás portas do Mar, que partem com o doutor Luiz da Veiga, e com a mulher que foi de Ayres Tavares.»
D'esta instituição vemos que a casa dos Bicos foi vinculada para do seu rendimento se manter o hospital de Azeitão. É mais uma memoria honrosa que nobilita esta celebre casa.
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