História
A Cruzada das Crianças
No anno de 1212 passou-se na França e na Alemanha hum dos factos mais extraordinários, de que fazem menção os annaes da idade média, hum erro inaudito em todos os seculos, como diz Mathieu Paris. Segundo refere este historiador, hum rapaz vagando pelas cidades e aldeias de França, ia gritando por toda a parte, como se fora inspirado de Deos, que devião todos os moços ir resgatar a santa cruz. Os outros rapazes da sua idade, ouvindo-o, seguião-no, em multidão, abandonando seus pais, seus mestres, e seus amigos, sem que nada os podesse conter. Os que precedião as turbas, arvorando pendões, dizião que elles devião atravessar o mar, pois assim como outrora os filhos de Israel sabidos do Egipto havião obtido a terra da promissão, assim poderião elles também possui-la.
Entretanto o mesmo se passava na Alemanha. Bandos de rapazes de todas as idades e de todos os sexos, alguns dos quaes não contavão ainda doze annos, se reunião á voz de hum chamado Nicoláo. O seu número, em os dois paizes, subio a cima de noventa mil; e todos experimentarão os mesmos desastres. Depois de soffrimentos inauditos, os cruzados de França chegarão em fim, já mui diminuidos em número, a Marselha. Ahi dois mercadores desta cidade, Hugo Ferreus, e Guilherme Porcus, offerecerão-lhes transporta-los ao Oriente, sem paga alguma, assegurando ser a piedade o único motivo da sua resolução. Sete navios se fizeião de vela carregados de rapazes. Assaltados de huma tempestade durante a navegação, dois destes navios forão tragados pelas ondas, e os outros cinco, depois de muitos trabalhos, chegarão a Alexandria onde os dois marselhezes venderão aos sarracenos os miseráveis rapazes como escravos.
Os pequenos cruzados da Alemanha não tiverão melhor sorte. Na longa peregrinação que lhes foi preciso fazer para chegarem á Itália, a fome, a fadiga, e os calores os fazião morrer os milhares. Segundo huma revelação divina, que hum delles pretendia haver recebido, ião todos persuadidos que a seca, por falta de chuvas, devia ser tal neste anno, que os abismos do mar ficaria em sêcco; e assim chegarão a Génova, na firme esperança de poderem ir até Jerusalém seguindo o leito enxuto do mar Mediterrâneo. Logo que virão dissipada a sua illusão, dispersarão-se pelas differentes cidades da Itália, mas em parte nenhuma poderão obter navios para a sua viagem. Então, diz hum historiador, os que restarão se virão cahidos em tão grande miséria, ninguém os queria recolher, e bem se lhes podião applicar as palavras de Jeremias: "Os meninos pedirão pão, e não houve quem lho desse". Bem poucos delles conseguirão voltar a suas casas: a maior parte ficou reduzida a servirem como escravos os habitantes do paiz.
Assim acabou esta singular e miserável tentativa de cruzada, que havia abalado profundamente os espíritos mais illustrados do tempo, e fez dizer ao papa Innocencio 3º: "Estas crianças nos accusão de estarmos sepultados no sonmo, em quanto elles correm á da Terra Santa."
A maior parte das chronicas contemporâneas fazem menção destes acontecimentos; e o mais he que o fazem com huma espécie de apologia: tal era a ignorância e a cegueira do fanatismo do século.
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