domingo, 27 de março de 2011

Histórias da História - Marc Bloch, A Sociedade Feudal

Histórias da História

Notas soltas

de

A Sociedade Feudal (La societé Féodal), Marc Bloch, Edições 70

«Vedes desabar sobre vós a cólera do Senhor... Só há cidades despovoadas, mosteiros em ruínas ou incendiados, campos reduzidos ao abandono... Por toda a parte o poderoso oprime o fraco e os homens são semelhantes aos peixes do mar que indistintamente se devoram uns aos outros.» Assim falavam, em 909, os bispos da província de Reims, reunidos em Trosly. (:::)

(...) O mundo muçulmano, com o mundo bizantino, exerceu sobre o Ocidente, até ao século XII, uma verdadeira hegemonia económica: as únicas moedas de ouro que circulavam ainda nas nossas regiões saíam das oficinas gregas ou árabes, ou então-tal como muitas outras moedas de prata imitavam-lhes as cunhagens. (...)

Otão II

(...) Em 982, o jovem «imperador dos Romanos», Otão II, o qual, de origem saxónica, nem por isso deixava de considerar-se, não só em Itália como fora dela, o herdeiro dos Césares, partiu à conquista do Sul. Caiu na espantosa loucura, tantas vezes repetida na Idade Média, de escolher o Verão, para arrastar para essas terras escaldantes um exército habituado a climas diferentes e, enfrentando, em 25 de Julho, na costa oriental da Calábria, as tropas maometanas, sofreu diante delas a derrota mais humilhante. O perigo muçulmano continuou a pairar sobre essas regiões até ao momento em que, durante o século XI, um punhado de aventureiros, vindos da Normandia francesa, guerreou indistintamente Bizantinos e Árabes. Ao unirem a Sicília com o sul da península, criaram finalmente um Estado forte que iria, não só fechar para sempre o caminho aos invasores, mas também desempenhar, entre as civilizações latinas e o Islão, o papel de um brilhante intermediário. (...)

Espanha da Reconquista

(...) A outra linha de choque situava-se em Espanha. Aí, para o Islão, já não se tratava de correrias ou de efémeras anexações; ali viviam em grande número populações de fé maometana e os Estados fundados pelos Árabes tinham os seus centros nessa mesma região.  A reconquista cristã, iniciada no extremo norte, apesar de muitos reveses e humilhações, progredia lentamente. Na Galiza e nos planaltos do nordeste que os emires ou califas de Córdova, localizados demasiado longe, no sul, nunca tinham chegado a dominar com mão muito firme, os pequenos reinos cristãos, ora desmembrados, ora reunidos sob o domínio de um único príncipe, estendiam-se desde os meados do século XI até à região do Douro; o Tejo foi alcançado em 1085. Junto dos Pirinéus, ao invés, o curso do Ebro, apesar de tão próximo, continuou muçulmano durante bastante tempo; Saragoça apenas foi conquistada em 1118. (...) Mas, paralelamente às guerras propriamente ditas, convém não esquecer as pilhagens e assaltos. Foi sobretudo desse modo que os Sarracenos contribuíram para a desordem geral do Ocidente. (...)

Pirataria Árabe

(...) Desde longa data que os Árabes foram marinheiros. Dos seus redutos de África, de Espanha e sobretudo das Baleares, os seus corsários percorriam o Mediterrâneo Ocidental. No entanto, nessas águas que poucos navios demandavam, o ofício de pirata propriamente dito era pouco rendoso. No domínio do mar, os Sarracenos, como os Escandinavos na mesma época, viam sobretudo o meio de atingir o litoral para aí praticarem frutuosas incursões. (...)

Freinet

(...) Em data que não podemos precisar, provavelmente cerca de 890, uma pequena nau sarracena, vinda de Espanha, foi lançada pelos ventos contra a costa provençal, próximo da povoação actual de Saint-Tropez. Os seus ocupantes ocultaram-se durante o dia e, depois, quando caiu a noite, massacraram os habitantes de uma aldeia vizinha. Montanhosa e arborizada - chamava-se então terra dos freixos ou «Freixedo» (Freinet) - esta parcela de terreno era favorável à defesa. (...) os nossos homens fortificaram-se num monte, no meio de espinhosos maciços e chamaram a si outros companheiros. Assim nasceu o mais perigoso dos covis de salteadores. Com excepção de Fréjus, que foi saqueada, não parece que as cidades, defendidas pelas suas muralhas, tenham sofrido directamente dessa proximidade, mas no litoral, nas cercanias, os campos foram abominavelmente devastados. Os salteadores de Freinet, além do mais, aprisionavam numerosos cativos que vendiam nos mercados espanhóis.
Em breve estenderam as suas incursões para além da costa. (...) O maciço dos Alpes permitia que pequenos grupos avançassem, de serra em serra ou de silvado em silvado: com a condição, já se vê, de serem bons trepadores. Ora, oriundos da Espanha das Sierras ou do montanhoso Magreb, estes Sarracenos, no dizer de um monge de Saint-Gall, eram «verdadeiras cabras». Por outro lado, os Alpes, abrigavam férteis vales, sobre os quais era fácil cair de imprevisto, de cima dos montes circundantes. Tal como Graisivaudan. Aqui e além, elevavam-se algumas abadias, presas apetecidas entre todas. Acima de Suse, o mosteiro de Novalaise, cuja maioria dos religiosos fugira, foi pilhado e incendiado a partir de 906. Pelos vales circulavam especialmente pequenos grupos de viajantes, mercadores ou «romeiros» que iam rezar junto dos túmulos dos apóstolos.Nada havia de mais tentador do que esperá-los na passagem. Cerca de 920 ou 921, peregrinos anglo-saxões foram mortos à pedrada num desfiladeiro. Estes atentados repetiram-se daí em diante. Os djichs árabes não temiam aventurar-se espantosamente longe, para o Norte. Em 940, são assinalados nas imediações do alto vale do Reno e no Valais, onde incendiaram o ilustre mosteiro de Saint-Maurice d'Agaune. Pela mesma época, um dos seus bandos crivou de flechas os monges de Saint-Gall, que faziam uma procissão pacificamente em redor da sua igreja. Este bando, pelo menos, foi disperso pelo pequeno grupo que o abade reuniu apressadamente; alguns prisioneiros, levados para o mosteiro, deixaram-se heroicamente morrer de fome.
Não havia outra solução senão a de destruir o reduto, no Freinet. Mas nem os reis da região - a oeste os reis de Provença e de Borgonha, a leste, o de Itália- nem os condes, dispunham de frotas. Os únicos marinheiros experimentados, de entre os cristãos, eram os Gregos, os quais, aliás, tal como os Sarracenos se aproveitavam disso para se fazerem corsários. Não fora Marselha, em 848, pilhada por piratas da sua nacionalidade? De facto, por duas vezes, em 931 e 942, a frota bizantina apareceu diante da costa de Freinet, chamada, pelo menos em 942 e provavelmente já onze anos antes, pelo rei de Itália, Hugo d'Arles, que tinha grandes interesses na Provença. As duas tentativas não resultaram. De tal maneira que, em 942, Hugo, virando a casaca ainda no decorrer da luta, planeou aliar-se aos Sarracenos com vista, com a ajuda destes, a fechar a passagem dos Alpes aos reforços pedidos por um dos seus competidores perante a coroa lombarda. Depois o rei da França Oriental - hoje, diríamos da «Alemanha» - Otão o Grande, em 951, fez-se rei dos Lombardos. Trabalhava deste modo para edificar na Europa Central e até em Itália, uma potência que ele desejava fosse, como a dos Carolíngios, cristã e geradora de paz. Considerando-se o herdeiro de Carlos Magno, cuja coroa imperial viria a cingir em 962, julgou ser sua missão fazer cessar o escândalo das pilhagens sarracenas. Tentou primeiro a via diplomática, procurando obter do califa de Córdova a ordem de mandar evacuar Freinet. Depois, pensou em empreender ele próprio uma expedição, mas não chegou a fazê-lo.
Entretanto, em 972, os salteadores fizeram uma captura importante. No regresso de Itália, Maïeul, abade de Cluny, na rota do Grand Saint-Bernard, no vale do Dranse, caiu numa emboscada e foi levado para um desses esconderijos da montanha que os Sarracenos utilizavam frequentemente, na impossibilidade de alcançarem a sua base de operações em cada surtida. Só foi libertado mediante a entrega de um pesado resgate pago pelos monges. Ora Maïeul, que havia reformado tantos mosteiros, era o venerado amigo, o director espiritual e, se tal se pode dizer, o santo familiar de muitos reis e barões. Nomeadamente do Duque de Provença, Guilherme. Este alcançou no caminho de regresso o bando que havia cometido o sacrílego atentado e infligiu-lhe uma dura derrota; depois, agrupando sob o seu comando vários senhores do vale do Ródano, pelos quais mais tarde seriam distribuídas as terras recuperadas para o cultivo, organizou um ataque contra a fortaleza do Freinet. A cidadela, desta vez, sucumbiu.

 Para os Sarracenos, foi o fim das piratarias terrestres de grande envergadura. Naturalmente, o litoral da Provença, como o da Itália, continuava exposto aos seus ataques.  Também, no próprio Mediterrâneo, as cidades comerciais da Itália, Pisa, Génova e Amalfi, haviam passado à ofensiva, desde o começo do século XI. Pela expulsão dos Muçulmanos da Sardenha, perseguindo-os até aos portos do Magreb (a partir de 1015) e da Espanha (em 1092), começaram a limpeza destas águas, cuja segurança, pelo menos relativa era tão importante para o seu comércio.

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