História
Endovélico, o Deus Sem Nome dos Lusitanos
por Teófilo Braga, 1870
Nos fins do século XVI Dom Teodósio I, Duque de Bragança para reunir em Vila Viçosa todas as antiguidades que se achavam pelo Alentejo, mandou recolher oito lapides que existiam em Terena com inscrições votivas a Endovélico. Resende nas suas Antiguidades da Lusitânia, lançou- se em conjecturas; imaginou um genius loci; o seu comentador Diogo Mendes de Vasconcellos, aventou uma hipótese ridícula com que combatia a opinião simples e infundada de Resende. Decompôs o nome de Endovélico em intus, avellens, para considerar esta divindade como protectora da extração das armas dos corpos dos soldados feridos na batalha. Nem mesmo que o nome fosse romano, bastavam estes dados para aceitar isto como verdade. Os que se voltaram para as etimologias gregas tomavam Endovélico como sinónimo do Deos Terminus; e até o proprio La Clede, condenando tão desvairadas opiniões, não o foi menos na sua, fazendo de Endovélico o Deus do Amor. Tal é o estado da questão, como a deixaram os escritores que antecederam as modernas descobertas da etnografia e da linguística.
Os escritores latinos desfiguraram todos os nomes primitivos dos povos da Peninsula; julgavam-nos bárbaros de mais, e ou por desprezo ou por ornato retórico, davam- lhes a forma urbana; de modo que esses nomes, tais como encontramos muitos em Estrabão diferem imenso das construções linguisticas do euskariano, determinadas por Wilhelm Humboldt.
Os primitivos habitantes da Península foram os lberos, raça pelasgica, refugiada para a banda dos Pirinéus, entregue aos trabalhos mineiros e continuamente invadida pelos fenícios, cartagineses e romanos. Os Celtas nunca chegaram a fundir-se completamente com o elemento ibérico. Os motivos da perseguição dos Iberos, era o grande susto que infundiu a todos os povos a sua religião obscura e subterrânea; o mesmo sucedeu com os pelasgos. A sua religião era tambem desconhecida; Estrabão diz: «Estes e outros povos que lhe confinam ao norte, adoram o Deus sem nome no tempo da lua cheia.» Todos os mais povos desconheciam os dogmas pelasgicos, temiam-nos; denominavam-no vagamente, Ser, Princípio, com o radical céltico End, que significa Dominus e Deus, como trazem Du Cange e Bullet.
Encontra-se uma medalha nas tabuas numismáticas de Espanha de Velasquez, com o símbolo de um jovem, com a legenda em caracteres bastulos, e com o radical En, designativo da Divindade. Designação que corresponde ao radical celtico. Endovélico, encerra portanto, esse radical, privativo de tudo quanto é grande ou divino. Bel, Belus ou Baal, é uma divindade fenícia, cuja introdução na Península pode explicar-se do seguinte modo: os fenícios vieram como aventureiros do mar, atraidos pela tradição da abundância de minas de ouro; entraram ao inverso dos cartagineses, com uma atitude de quem vem estabelecer relações comerciais. Na fusão dos povos, a primeira coisa que se dá é a conformidade dos costumes e a identificação dos dogmas.
Os fenícios, encontrando uma designação da divindade de um modo tão abstracto, Deus sem nome, como lhe chamava Estrabão, a qual se conformaria talvez com os seus ritos, foram introduzindo o culto de Bel sem dificuldade. Deve principalmente atribuir-se ao sistema dos escritores romanos de alatinarem os nomes, o formar-se uma nova divindade pela reunião das palavras de índole adversa, End e Bel, de onde vieram a formar Endovellicus? Que ideia fariam porém os romanos ácerca das divindades da Lusitânia? Estrabão diz dos Lusitanos: «Hirco maxime vescuntur, quem et Marti, immolant sicut et captivos et equos.»
Na hierarquia das divindades cabíricas da Península, encontra-se Marte designado pelo nome de Nethon, em irlandês Neith. Da divindade cabírica Nethon, fala Macrobio do seguinte modo: «Accitanii Hispanna gens, Simulaerum Martis radiis hornatum maxima religione celebrant Neton vocantes.» Macrobio afirma que no culto egípcio se sacrificava um touro ao sol, e que a esta vítima chamavam Neton. Flôrez, na España Sagrada (t. VII, fol. 9), afirma que os Accitanos receberam a voz de Neton dos Egípcios, e que significava touro, ou monumento em que adoravam o sol. Tem este nome as seguintes variantes: Necym, Necum, Nicom. Creuzer, na Symbolica, (trad. de Guigniaut t. II, p. 802 e 828) fala no Deus Neith. O sr. Visitação Freire de Carvalho é da opinião, que Endovélico seja esta divindade correspondente a Marte, vindo a ser: «o Sol Equinoxial da Primavera, a quem Achilles Tacio denomina o Planeta do Hércules Solar.» Segundo Cícero, entre os muitos Hércules, que eram o mito do Sol, Bellus era o quinto. Bellus era portanto o Hércules Solar da Índia. Fora dali que irradiara o culto de Bel, no tempo das emigrações fenícias. O bode e o cavalo, que os Lusitanos sacrificavam á sua divindade, são privativos do culto heliastico. Assim crêmos ter exposto a hipotese da origem e carácter desta divindade da Mitologia lusitana, que passa pela mais corrente.
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Nas divindades da Peninsula também se encontra o nome de Hypsistos. O nome desta divindade vem confirmar a interpretação do carácter de Endovélico. Creuzer (na fol. 142, figura 275) traz a seguinte imagem: Hera ou Juno, com o ceptro na mão, está assentada num trono de ouro, ao qual a amarraram por laços invisíveis. Seus dois filhos Héphoestus ou Vulcano, autor de maravilhoso trabalho, e Ares ou Mars (Enevalios) combatem entre si, com a lança e o escudo, um para a retêr, o outro para a libertar, Do deus Hypsisto existe uma lamina, analisada por Don Juan Iriarte; é o deus, segundo Peres Pastor no seu sobre Endovélico, mencionado por Sanchoniaton, do qual diz, que antes era chamado Elium: «Quidam Elium vocatus Hypsistos... Horum autem pater Hypsistus.» Numa cornarina achada no território de Almeida, o mesmo Don Juan Iriarte interpretou: «Deum tibi Hypsistum, ne me offendas. - Magnum numen.» Hypsisto em grego significa altíssimo. A segunda parte da cornarina tem a mesma imprecação dada a Serapis: «Magnum nomen Serapidis.» De onde se deduz naturalmente a hipótese da homonimia entre Serapis e Hypsisto. Grutero traz uma coluna em que Serapis se chama Hypsimedon, e Attidi Hipsisto, interpretando-se geralmente Serapis, Attis o excelso. Hypsistus porém não é mais do uma corrupção de Hephoestus, natural pela grande facilidade que há entre a confusão do phi grego com psi. Portanto o encontro de Hypsisto na mesma religião em que andou a tradição de Endovélico, leva á evidência a prova de que esta divindade não se deve procurar no olimpo ibero-fenício, mas que exclusivamente á grande familia das divindades heIeno-itálicas. Falta nos reproduzir as inscrições, em que se fundamenta este trabalho:
Resende nas Antiquitates Lusitaniae traz as 2ª, 9ª, 1ª, 7ª, 8ª, 13ª, 6ª, 5ª, pela ordem que as apresentamos. A 5ª e 6ª inscrição foram copiadas por Grutero das Antiguidades de Resende, mas erradas; a inscrição 13ª foi copiada por Grutero, e de Resende a copiou Reinesio (t. 2, fl. 1010) com alteração de letra: Endovolico em vez de Endovélico. A inscripção 14ª é atribuida por Muratori a Endovolio; foi achada em Porcuna e copiada dos apontamentos do padre Cataneo Perez Pastor que a dá como duvidosa. A inscripção 15ª é falsa; nunca existiu na Casa professa da Companhia de Jesus de Toledo, e foi forjada maliciosamente. M. Freret nas Memorias da Academia das Inscripções, baseou sobre ela as suas investigações ácerca de Endovélico. Entre as muitas opiniões sobre o carácter desta divindade, Perez Pastor fal-o Deus da medicina, Bellinus, fundando se nos votos pro salute, dando-lhe assim irmandade com Apolo e Serapis.
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