O Evangelho apócrifo de Nicodemos e o Santo Graal
Por Teófilo Braga, 1870
O Evangelho de Nicodemos é uma daquelas produções apócrifas dos primeiros séculos da Igreja, em que pela primeira vez foram recolhidas as crenças populares relativas á paixão de Jesus; encontra- se ali o germen das grandes lendas que circularam na Idade Média, e a sua influência na arte cristã é um facto que demonstra a origem popular. Compõe-se de duas partes distintas: uma encerra a narrativa da condenação, da paixão e ressurreição; a outra conta a descida aos infernos e o combate de Jesus contra as potências das trevas para salvar os patriarcas. É justamente em cada uma destas partes que se pode ir determinar a origem da cavalaria mística do Santo Graal, e essas visões sem número de Tundal, Alberic, S. Patricio e Dante ás regiões das sombras. Tanto uma como outra destas lendas apresentam carateres da imaginação oriental, e quase que prescindindo da fatalidade do génio indo- europeu, se pode sem hipóteses violentas notar as origens comuns.
O Evangelho de Nicodemos é de facto de origem oriental. Gustave Brunet, o traductor dos Evangelhos apócrifos, dá como certo ser o seu autor de raça judaica, dando-se ele próprio a conhecer: «Eu, Emen, Hebreu que era Doutor da Lei entre os Hebreus, estudante das sagradas Escrituras; aplicando-me na Fé ás grandezas das Escrituras de Nosso Senhor Jesus Cristo, revestido da dignidade do santo baptismo, e procurando as coisas que se passaram e que fizeram os judeus sob o governo de Pôncio Pilatos; achando a narração destes factos escrita em letras hebraicas por Nicodemos, interpretei-a em letras gregas. para levá-la ao conhecimento de todos os que adoram o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo...» (Preambulo) Encontra-se este Evangelho traduzido em quase todas as linguas da Europa, em alemão, inglês, francês e italiano; Assemani foi o primeiro, que na sua Bibliotheca Orientalis notou em diversos autores siríacos e coptas vestígios das narrativas que o formam. Silvestre de Sacy traduziu uma relação árabe, e existem manuscritos arménios no Vaticano, fontes da lenda. Nos Actos de S. André e S. Paulo, traduzidos por Dulaurier, S. Paulo desceu ao seio do abismo; e este fragmento copta apresenta semilhanças notáveis com a segunda parte do Evangelho de Nicodemos.
A popularidade do Evangelho de Nicodemos, introduziu nas tradições da Armórica e nas lendas da Távola Redonda a crença brilhante do Saint Graal. As tradições druídicas do vaso de Taliesin, guardado por Gwion, o anão, harmonisavam-se; era fácil o confundirem-se entre si. A existencia do Rei Artur era vaga, fantásticos os seus paladinos; prestava-se melhor do que nenhuma outra lenda a esta assimilação do espirito eclesiástico, e ás alegorias místicas. Em vez da altiveza heróica dos senhores feudais no ciclo de Carlos Magno, os cavaleiros do Graal iam pelo mundo á busca do maravilhoso Talismã, esse vaso sagrado que recolhera o sangue Cristo, quando lhe trespassou o peito a lança de Longino; são como sombras flutuando num nevoeiro confuso, proseguindo um ideal intangivel, que não é deste mundo; é uma cavalaria casuística na sua fidelidade, não tem o ponto de honra, mas o escrúpulo divino; se perdem o deslumbramento diante do vaso sagrado tornam se indignos da sua guarda; se não procuram compreender o mistério que ele encerra, nunca lhe será revelado. No Evangelho de Nicodemos se lê: «Um soldado, chamado Longino, tomando uma lança, lhe feriu o lado de onde caiu água e sangue.» (Cap X) Tal era o conteudo no Vaso precioso que se mostrava nos cavaleiros errantes ao cabo de longas peregrinações, só quando chegavam a atingir a suma perfeição na terra.
Um romance francês de cavalaria, Histoire du Roi Perceforest, traz como um episódio o Evangelho de Nicodemos. A lenda da lança do soldado ia ampliando-se na tradição; acha-se já mais definida e circunstanciada num livro impresso em 1497: Passion de N.S. Jesus Christ, faicte et traicté par le bon maistre Gamaliel et Nicodemus son neveu, e le bon chevalier Joseph Dabrimatie translatée du latin en fransçais. Eis a tradução do Evangelho:
Esta glosa contém a suma de toda a lenda do Santo Graal; as imaginações da Idade Média liam assim no Evangelho aprocrifo; cada palavra era uma situação nova que a fantasia ia bordando no fervor da crença. No Capitulo XIV e XV do Evangelho de Nicodemos, vem a história de José de Arimateia, que sepultou Jesus, que o veio livrar do cárcere, e lhe mostrou acima dos ares, aonde o arrebatou, coberto de orvalho, o lençol em que o discípulo o tinha envolvido.
Assim a grande lenda popular do Santo Graal, confundida mais tarde no ciclo da Távola Redonda, para ocupar as imaginações e distraí-las das façanhas dos guerreiros do ciclo carlingiano, teve origem no Evangelho apócrifo de Nicodemos.
Foi deste mesmo Evangelho popular que saiu a lenda da descida aos infernos, que a raça céltica adoptou no Purgatório de S. Patrício, que encheu de visões o mundo, até se fixar na forma épica da Divina Comedia. O Santo Graal encontra-se, como veremos, também nas tradições druídicas. O Santo Graal, era uma pedra preciosa, de um brilho maravilhoso que havia caido da coroa de Lúcifer. Fez-se dela o vaso que José de Arimatea possuia no tempo de Jesus; nele se guarda o cordeiro pascal, e se recolheu o sangue caído da ferida da lança de Longino no lado de Jesus. A guarda deste vaso todas as felicidades possíveis; quem o contemplava ficava jovem; guardá-lo era o mais alto favor que se podia obter no mundo, só concedido aos que se distinguiam pela sua humildade, pureza, bravura e fidelidade.
José de Arimateia trouxe-o do Oriente; esteve séculos inteiros sem guarda, pairando nos ares, nas mãos dos anjos e das virgens. Titurel encontrou-o e construiu o castelo na floresta do Monte Salvaz, aonde o entregou á guarda dos cavaleiros do Templo. Depois de corrompida a cristandade, os anjos arrebataram outra vez o Santo Graal e o seu templo para o reino de Preste João das Índias. Tal era o ideal dos cavaleiros errantes, milícia celeste e solitária, que viera no meio das tradições enérgicas do ciclo de Carlos Magno, espalhar o langor místico na alma popular. Como todas as grandes lendas do cristianismo, é esta tambem de origem oriental. Julga-se que lhe dera a primeira redacção em prosa árabe na Hespanha Flegtanis; em França, Gruyot no século XII lançou mão dela, tendo encontrado a lenda de Flegtanis num mercado de Toledo; foi o primeiro que a revistiu de uma forma poética no Ocidente. Chrétian de Troyes confundiu-a com a lenda de Arthur e da Távola Redonda. Vilmar, na sua Historia da literatura germanica, faz o paradigma das situações que se encontram entre a lenda e os mitos orientais. O monte Meru indiatico, e o Albord dos Parses, de onde Ormuz vê partir o sol e a lua, correspondem ao Monte Salvaz da lenda do Santo Graal; Sanyasi, o brâmane que atingiu na terra a mais alta perfeição, corresponde ao guarda do Santo Graal. Os Chiliastas, ou millenarios, que idearam o reinado de Cristo, fundiram na religião as lendas do Paraiso. Assim a lenda oriental veio assimilando a si os diferentes elementos do cristianismo, modificando- se pelas ideias de cada época; os cristãos não lhe poderam tirar o colorido oriental, apagando-lhe as ideias árabes; os Normandos popularisam-na mudando- lhe o carácter cavalheiresco, vindo pelos trovadores a formar a grande epopeia religiosa da Idade Média.
A lenda de Santo Graal tem por fundamento o mistério da Eucaristia; tal é a forma que lhe deu o minnesanger Wolfran d' Eschenbach, no Titurel, em que representa o ideal da cavalaria cristã, e no Perceval o tipo moral do homem que perdeu a perfeição, e ao cabo de longos erros a alcançara como limite dos seus trabalhos. No romance de Perceval, mais do que em nenhum outro, se vê a tendência das lendas celticas a tomarem sucessivamente um carácter cristão. O cristianismo adoptara todas as crenças divinisando-as. Roma, no paganismo, também assim se tornara o Pantheon dos povos vencidos. Peredur, o que anda á procura da urna, torna-se um herói cristão. O vaso céltico que Taliesin diz que estava collocado no templo de uma deusa patrona dos bardos, resumia em si o tesouro dos conhecimentos humanos, a ciência do futuro, a poesia, a prudência e o mysterio do mundo; tal veio a ser o Santo Graal de José de Arimateia, de que cristianismo se apropriou no druidismo. A lança Longino, que no Evangelho apócrifo de Nicodemos trespassa o lado de Cristo moribundo, era a mesma lança que no período da grande luta entre os Bretões e Saxões, simbolisava a guerra eterna contra os invasores, sobre a qual o iniciado bardico dava o juramento. Gwion, o anão, maioral dos anões da Bretanha, de origem cabirica, é que guarda esse vaso místico, que encerra água da advinhação e da ciência; o vaso apresenta analogias profundas com a taça mística dos Cabiras, atribuida a Dschemschid, que a descobriu quando abriu os alicerces d'Estakhar, também atribuída a Baco, a Hermes, a José, a Salomão e a Alexandre, espelho magico do mundo, e vaso da salvação. Em muitas outras circunstâncias se vê sempre o espirito do cristianismo adoptando as lendas populares pagãs, tornando-as suas. O culto das fontes era tambem das crenças célticas; a antiga fonte sagrada (holywell) da abadia de Glastonbury, foi santificada, dedicando-a a S. José de Arimateia, que veio substituir a divindade céltica.
O carácter desta poesia do Santo Graal, fantástico e despido de realidade, tinha uma tendência alegórica que o levava para os devaneios místicos. S. Francisco de Assis, o trovador da Ombria, um dos criadores monaquismo no Ocidente chamava aos seus mais zelosos companheiros: Estes são os meus Paladinos da Távola Redonda. Em criança aprazia-se com as aventuras que lia nos livros da cavalaria; sonhava que havia ser principe, e via-se em palácios soberbos, cheios de armas que haviam de pertencer a ele e aos seus cavaleiros. Foi este esposo da Pobreza, que deu realidade ás vagas abstracções da cavalaria celeste.
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