História de Ponta Delgada, Açores e imagem do antigo Brasão
A CIDADE DE PONTA DELGADA
No ano de 1431 mandou o sábio infante D. Henrique a Gonçalo Velho Cabral, comendador de Almourol, descobrir novas terras nos mares de oeste. Depois de baldadas diligencias regressou o navegante tendo apenas encontrado no meio do oceano uns rochedos que por serem muitos e encarreirados denominou-os baixos das Formigas. Animado o infante com este achado, enviou-o no ano seguinte ás mesmas paragens, e desta vez descobriu, a cinco léguas daqueles rochedos, uma ilha a que deu o nome de Santa Maria, por a ter descoberto em 15 de Agosto, dia consagrado á Assunção da Virgem. E foi esta a primeira ilha que se descobriu do arquipélago dos Açores.
Passados doze anos, em 1444, o mesmo comendador de Almourol, fez a descoberta de uma outra ilha, a que chamou S. Miguel, por ter ali chegado a 8 de Maio, dia da aparição do Arcanjo. Ao diante foram-se descobrindo as outras sete, que com aquelas formam três grupos distintos na direcção de oes-noroeste e les-sueste. O grupo mais oriental é formado pelas ilhas de Santa Maria de S. Miguel e rochedos das Formigas. O Ocidental pelas das Flores e do Corvo. O central pelas Terceira, S. Jorge, Faial e Graciosa. Estão situadas a 27º, 20º de longitude Ocidental e 37º, 40º latitude norte. Dividem se em dois distritos administrativos, Angra e Ponta Delgada; e compreendem vinte e um concelhos, cento e dezoito paroquias e cinquenta e quatro mil duzentos oitenta e dois fogos, com uma população de duzentos quarenta mil e novecentos habitantes.
S Miguel é a segunda ilha na ordem do descobrimento e é a primeira pela sua grandeza, população e importância comercial. Tem dezoito léguas de comprimento e pouco mais de três a quatro de largura. A sua ponta de leste dista do cabo do Espichel pouco mais ou menos duzentas e doze léguas. Tem dois portos principais, ambos do lado do sul e desabrigados, o de Ponta Delgada e o de Vila Franca. O solo é, como o das outras ilhas deste arquipélago, de origem vulcânica. O clima é temperado e saudável. A sua população excede a noventa mil almas.
É capital desta ilha a industriosa e rica cidade de Ponta Delgada, que se acha sentada em lugar plano, nas margens de uma enseada de três léguas de largura, formada por dois cabos chamados Ponta da Galé e Ponta Delgada, que deu o nome á cidade. A esta ultima também chamam de Santa Clara, por causa de uma ermida desta invocação que aí se edificou há muitos anos.
A perspectiva da cidade vista do mar é de muita beleza. A casaria resplandecente de alvura e coroada pelas torres de varias igrejas e conventos, estende-se numa longa linha á borda do oceano e pelo lado de terra, cercam-na como o caixilho ao painel, verdejantes colinas ligeiramente ondeadas e cobertas em grande parte de pomares.
Começou a povoar-se a ilha por ordem e diligencias do infante D. Henrique, no ano de 1445; porém até ao de 1499 era Ponta Delgada um simples lugar sujeito ao governo de Vila Franca, então a principal povoação. As vantagens da situação fizeram desenvolver-se e crescer tanto a primeira durante a ultima década daquele período que, mal sofrendo a sujeição ás autoridades de Vila Franca, deu origem a disputas e rixas entre os moradores das duas povoações. Para obviar a este mal e deferir á suplica dos habitantes de Ponta Delgada, erigiu el rei D. Manuel este lugar em vila no ano de 1499.
Em 1522 houve na ilha um grande terremoto, que sepultou a maior parte de Vila Franca debaixo dos montes do Rabaçal e Louriçal. Morreram nesta catástrofe perto de cinco mil pessoas. Ponta Delgada também padeceu muita ruína, mas tão depressa se reparou e aumentou que, em 1546, el rei D. João III a fez cidade e capital da ilha.
Os vulcões de João Ramos e do Paio, que rebentaram em 1552 e o do Pico do Sapateiro, que rebentou em 1563 e que por muitos dias vomitou torrentes de lavas abrasadoras, produziram abalos da terra que danificaram mais ou menos todas as povoações da ilha.
Em Julho de 1582 surgiu nas águas de S. Miguel uma armada de sessenta navios, com oito mil soldados, quase todos franceses. Trazia a seu bordo o pretendente á coroa de Portugal, D. António, prior do Crato, que demandava a ilha Terceira. A 16 de Julho desembarcaram três mil homens no porto dos Calhaus, com o prior do Crato na sua frente e em breve se assenhorearam, além de outras povoações, de Ponta Delgada, excepto a fortaleza da cidade que não quis render-se, conservando.se por Filipe II de Castela. Dispunha.se D. António para lhe dar assalto; porém, avistando- se no dia 21 a esquadra espanhola, que vinha a panos largos em busca da do pretendente, recolheu- se tudo aos navios. No dia 24 travou-se o combate naval, que foi renhido e porfioso. Mortos o almirante português, conde de Vimioso e.o general francês, Filipe Estrosse, comandante das tropas de desembarque, decidiu-se a vitoria pelos castelhanos e os restos da armada contraria, com o prior do Crato, puderam ganhar o mar e acolherem-se na Terceira, onde em vão os foi perseguir o almirante de Filipe II. Por ocasião daquele desembarque, cometeram os franceses toda a sorte de roubos e estragos nos campos, nas povoações pequenas e na propriedade, que puseram a saque.
Filipe II, como em indemnização destas perdas ou para recompensar o que ele chamava fidelidade, concedeu a Ponta Delgada, no ano seguinte, os mesmos foros e privilégios de que gozava no continente a cidade do Porto. Mas, apesar de tais favores, assim que ali chegou a feliz nova da aclamação de el rei D. João IV, a 1 de Dezembro de 1640, Ponta Delgada e toda a ilha de S. Miguel, sacudiram cheias de entusiasmo, o ominoso jugo de Castela.
Em 1720 e 1755 sobreviveram dois grandes terremotos, que lançaram por terra muitos edifícios, Em 1810 houve, ao sul do Pico dos Ginetes, uma pequena erupção e em Junho do ano seguinte rebentou no mar, junto á ponta da Ferraria, uma horrível explosão submarina, de que resultou a formação de um ilhéu de trezentos pés de altura, com uma circunferência aproximadamente de um quarto de légua e rematando em uma enorme cratera.
Em Outubro desapareceu repentinamente esta pequena ilha, sem deixar mais vestígio que o susto e terror que infundiu nos habitantes de S. Miguel e os estragos que causou, particularmente nos navios que se achavam surtos nos seus portos. Finalmente, em 1839, padeceu a cidade de Ponta Delgada um flagelo de outro género, mas não menos horroroso e devastador. O mar, agitando-se e crescendo de improviso, arremessou- se contra a cidade com tal fúria, que derrubou o paredão, que abrigava o porto do areal de S. Francisco e a praça da feira do gado: fez consideráveis estragos no Castelo de S. Brás e noutras fortificações, na alfandega e cais contíguo, arruinando também muitas casas e armazéns particulares.
Todavia, sem embargo de tantas e tão amiudadas calamidades, Ponta Delgada tem-se engrandecido, prosperando de ano para ano.
Compõe-se o seu brasão de um pórtico, sustentado por quatro colunas, tendo no centro as armas reais. Sobre as duas colunas da parte interior, avultam duas esferas armilares e sobre as colunas exteriores, duas tochas ardentes. Na volta do arco está no lugar superior a cruz da ordem de Cristo, tendo de um lado o sol, significando a justiça e do outro a lua, simbolizando Nossa Senhora da Conceição. Como remate do pórtico está uma coroa real e por cima três setas com uma palma atravessada. A cruz de Cristo e as esferas são as divisas de el rei D. Manuel, que a fez vila. As setas e a palma são o emblema do martírio de S. Sebastião, padroeiro da cidade.
No dia 1º de Agosto de 1831, desembarcou na ilha de S. Miguel, vindo da Terceira á frente de uma força de mil e quinhentos homens, o conde de Vila Flor, depois criado duque da Terceira, resolvido a plantar ali o estandarte da liberdade e o governo legitimo da Senhora D. Maria II. Saindo-lhe ao encontro, no dia seguinte, as tropas realistas que defendiam a ilha, em numero de três mil homens, travou-se um mortífero combate nas alturas da Ladeira da Velha, que terminou com o triunfo da causa liberal. No dia 3 fez o conde de Vila Flor a sua entrada na cidade, no meio de grandes regozijos populares. Há pouco mais de um ano foi visitada Ponta Delgada por sua alteza real, o infante D. Luís, duque do Porto.
O primeiro capitão donatário da ilha de S. Miguel foi o seu descobridor, frei Gonçalo Velho Cabral. Seu sobrinho e herdeiro, João Soares de Albergaria, vendeu esta capitania por trinta e dois mil cruzados, em 1474, a Rui Gonçalves da Câmara, filho de João Gonçalves Zarco, o descobridor da ilha da Madeira. Continuou o senhorio de S Miguel nos descendentes de Rui Gonçalves da Câmara, que mais tarde foram agraciados com o titulo de condes de Vila Franca, depois mudado no de Ribeira Grande, que há poucos anos foi elevado a marquês.
É a cidade de Ponta Delgada capital de um distrito administrativo que compreende toda a ilha de S. Miguel e a de Santa Maria. É sede de um comando militar e do tribunal da relação dos Açores, criado por decreto de 16 de Maio de 1832- Dividem-se os seus moradores pelas três seguintes paroquias: S. Sebastião, que é a matriz, templo vasto e de três naves; S. Pedro e S. José. A igreja da misericórdia, com o seu hospital anexo, é um estabelecimento pio bem dotado e administrado.
Os principais edifícios, além dos que ficara mencionados, são o antigo palácio dos capitães donatários, a alfandega, a casa da câmara, os edifícios de cinco extintos conventos, três de frades e dois de freiras e os dois de religiosas ainda habitados. Os dos frades eram: o colégio dos jesuítas, edificado em 1590 e cuja igreja se concluiu em 1666; o convento dos eremitas de Santo Agostinho, que teve a primeira fundação em 1606 e a segunda, com mudança de local, em 1680; e o convento dos franciscanos, também fundado primeiramente em 1525 e mudado em 1709 para o sitio em que ao presente se vê. Os quatro conventos de freiras eram: Nossa Senhora da Esperança, construído por D. Filipa Coutinho, mulher de Rui Gonçalves da Câmara, segundo do nome, em 1541; o de Santo André, fundado em 1567; o de S. João ante Portam Latinam, edificado em 1602; e o de Nossa Senhora da Conceição, acabado em 1671. Destes conventos foram suprimidos dois, passando as religiosas para os dois que ficaram, as quais actualmente não são menos de cem, Há na cidade umas oito ermidas.
Apesar de ser edificada esta povoação em terreno plano ou levemente inclinado, não tem nenhuma praça nem rua de traçado regular. Mas conta muitas casas de bom prospecto, com seus jardins e pomares. Tem teatro e casa de assembleia. A guarnição da cidade e defensa da ilha é feita por um dos regimentos de infantaria do continente, que para esse fim se revezam de dois em dois anos. O porto é defendido pela fortaleza de S. Brás, que encerra uma grande cisterna e há outras fortificações menores. Em 1851 entraram neste porto trezentos oitenta e dois navios, com trinta e quatro mil setecentas vinte e nove toneladas e saíram quatrocentos e treze, com trinta e cinco mil setecentas quarenta e duas toneladas.
Contém Ponta Delgada catorze mil habitantes, mas se se incluir a parte dos arrabaldes, que forma uma continuação não interrompida da cidade, neste caso eleva-se a sua população a dezoito mil almas.
Tem a cidade a melhor agua, que dizem haver em toda a ilha, não sendo tão boa a dos subúrbios, que pela maior parte é salobra. Os mercados são abastecidos de muita variedade de excelentes hortaliças e frutas, tanto da Europa como dos trópicos, de muita criação e caça e de muita diversidade de pescado, em que abunda toda a costa da ilha.
O seu comercio é importantíssimo, sobretudo o de exportação. A ilha de S. Miguel exporta anualmente, termo médio, dez mil moios de cereais e legumes para o reino e Madeira e cem mil caixas de laranja para Inglaterra. E além disso, entre outros produtos, aguardente e carnes salgadas. Este avultado trato comercial dá ao porto de Ponta Delgada um grande movimento anual de embarcações nacionais e estrangeiras, aumentado ainda pelas que ali tocam simplesmente, para receber provisões. A carreira de navios movidos a vapor da companhia União mercantil, que estabeleceu comunicações regulares entre Lisboa e os portos de S. Miguel, Terceira, S. Jorge e Faial, deve influir poderosamente no desenvolvimento e prosperidade de Ponta Delgada e de todo o arquipélago açoriano.
Os arrabaldes de Ponta Delgada são de singular beleza e amenidade. Vê-se por toda a parte uma vegetação pomposa e variada, entremeando-se as árvores e plantas da Europa com muitas da América. Bonitas quintas de regalo e uma infinidade de pomares de laranja, frondosos como bosques de árvores silvestres, povoam e sombreiam todos esses arredores, ora embalsamando o ar com o perfume de suas flores, ora matizando com os seus frutos de oiro aquele vastíssimo manto de verdores.
O termo, como todo o terreno da ilha, é de uma fertilidade prodigiosa e as suas produções são variadíssimas, com óptimas pastagens em que se cria muito gado. Outrora floresceram nele a cultura da cana de açúcar, do pastel e do tabaco. Infelizmente estes ramos da sua industria agrícola, de que tanto proveito começou a tirar, acabaram inteiramente. O primeiro cessou por falta de lenhas para engenhos. O segundo, que produzia uma bela tinta de anil, muito procurada pelo comercio, finou-se sob o peso dos impostos que lhe lançou el rei D. João V. O terceiro foi vitima das necessidades do tesouro publico, que o sacrificou aos interesses do monopólio.
A pouca distancia do termo da cidade, que se estende tende a uma légua, está o Pico das Camarinhas, também chamado Pico das Ferrarias. Dizem que há aí minas de enxofre, de ferro, de salitre e de marcasitas ou pirites angulosas.
Apesar de ser um tanto afastado da cidade, não se deve deixar de fazer menção do Vale das Furnas, sitio de grande nomeada pelas curiosidades naturais que encerra e de muita concorrência, por causa das suas águas termais. Servir-nos-emos para esta descrição de um extracto que o Panorama publicou da interessante obra do nosso sábio e falecido compatriota, Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, intitulada Observações sobre a ilha de S. Miguel.
«O Vale das Furnas é uma bacia cercada de montanhas elevadas, inferior em nível a todos os terrenos adjacentes, á excepção somente da estreita garganta, pela qual as águas que nela brotam ou se ajuntam, se despejam no mar na Ribeira Quente. Existem aqui três solfatáras (enxofreiras), acompanhadas de nascentes de águas minerais; os terrenos delas consistem em lavas, terras argilosas e destroços de cinzas e pomes, atacados pelos vapores sulfurosos que do solo se exalam e dos quais uma parte cristalisa nas cavidades e fendas do terreno e outra acidificando-se com o contacto do ar e dos vapores aquosos, que cobrem a solfatára, provindos das nascentes de aguas, que por todas elas rebentam, ataca o terreno essencialmente aluminoso e forma, na sua superficie, eflorescencias de supersulfato de alumina, de que as terras se acham impregnadas, bem como do sulfato de ferro, unido áquele e proveniente da acção do acido sulfúrico sobre o oxido de ferro dos terrenos e das lavas e sobre o que depõem as águas ferruginosas, que ali correm copiosamente.
«Na solfatára maior, além dos nascentes mais consideráveis de águas quentes, por toda a parte borbulham pequenos olhos das mesmas. Aparecem alguns orifícios onde a agua não chega liquida á superfície do terreno, mas que só exalam vapores aquosos e de enxofres sublimados, que cristaliza pelas bordas; em alguns escuta-se o som das águas debatendo-se com violência nas cavidades subterrâneas; noutros os vapores surgem sibilando e repuxam com vigor para a atmosfera. Na boca maior, com sete palmos de diâmetro, a emissão dos vapores é acompanhada de um som rouco e majestoso, que ressoa a grande profundidade, como o eco de um zabumba tocado ao longe; é impossível inclinar a cabeça sobre a abertura sem que a escalde cruelmente a coluna de vapor quentíssimo, que por ela se exala. Nas aberturas mais pequenas, os habitantes das vizinhanças costumam estender as raízes dos inhames sobre camadas de fetos e mato e assim obtêm, sem despesa, cozer estas raízes que são parte essencial do seu alimento. Na maior parte das caldeiras ou nascentes abertas, as águas repuxam límpidas e claras; nalgumas, porém, em que embatem contra paredes argilosas, saem opacas e lodosas, mas filtradas mostram-se em tudo idênticas ás primeiras. A mais notável destas nascentes lodosas é a que no país chamam Caldeira de Pedro Botelho; o seu aspecto espantoso e medonho faz com que o povo ignorante e supersticioso a tenha por um respiradoiro do inferno. Na escavação abre-se a boca de uma caverna, no fundo da qual espadana continuamente com um som rouco e alternado, um borbotão de agua turva e lodosa que, elevando-se ao ar, cai de novo no mesmo abismo, sem nunca vencer a abertura da gruta por onde se exalam redemoinhos de fumo denso e quentíssimo, combinados com o cheiro sulfúreo dos vapores.
«O aspecto do Vale das Furnas, do alto dos montes que o povoam, é pitoresco e agradável; este lugar é o mais fresco da ilha e tão húmido que qualquer objecto que se abandone, ainda nas casas altas, embolorece imediatamente e as chuvas são ali mais aturadas e copiosas.
«Proximo das caldeiras fundaram os habitantes os banhos que são proficuos em muitas enfermidades.»
Por Ignacio de Vilhena Barbosa
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