quarta-feira, 21 de março de 2012

Citando Alvaro Mutis II

«... acabo por entender, de repente, que a meu lado foi passando outra vida. Uma vida que passou à minha beira e eu não soube. Ali está, ali permanece, feita da soma de todos os momentos em que não fiz aquela curva do caminho, em que prescindi daquela outra possível saída e assim se foi formando a cega corrente de outro destino que teria sido o meu e que, de certa forma, continua a sê-lo além, naquela outra margem em que nunca estive e que corre paralela à minha jornada quotidiana. É-me alheia e, no entanto, arrasta todos os sonhos, quimeras, projectos, decisões que são tão meus como este desassossego presente e poderiam constituir o tema de uma história que decorre agora no limbo do contingente. Uma história igual talvez a esta que me corresponde, mas cheia de tudo o que aqui não foi, mas continua a ser, formando-se, correndo à minha beira como um sangue fantasmal que me chama e, no entanto, nada sabe de mim. Ou seja, que é igual desde que a tivesse protagonizado também e a tivesse marcado com a minha habitual e triste angústia, mas completamente diferente nos seus episódios e personagens. Penso também que, ao chegar a última hora, é aquela outra vida que desfila, com a dor de algo irremediavelmente perdido e desaproveitado, e não esta, a real e vivida, cuja matéria não creio que mereça aquele relance, aquela derradeira revisão conciliatória, porque não dá para tanto nem quero que seja a visão que alivie o meu último instante. Ou o primeiro?»

A Neve do Almirante, Alvaro Mutis

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