sábado, 22 de janeiro de 2011

História: Casa dos Bicos, Lisboa 3


História

Lisboa


III


Ficou já respondido o primeiro quesito, no capitulo antecedente com documentos irrefragaveis, pelos quaes demonstrámos que a casa dos Bicos fôra edificada pelos annos de 1523, e não pelo grande Affonso de Albuquerque, como até agora se julgava, mas por seu filho e universal herdeiro, o auctor classico dos Commentarios.

Passemos agora ao segundo quesito que é:

A casa dos Bicos completou se ou foi embargada a obra?


A tradição oral diz que a casa dos Bicos não chegara a concluir-se, sendo embargada a obra por ordem do governo, quando apenas tinha chegado ao primeiro pavimento, licando nas lojas e sobrelojas como ainda agora se acha.


Nenhum fundamento encontrámos a esta opinião, apesar de presumirmos que este Albuquerque fôra homem muito bulhento e implicador, pelo que bem podia ser que tivesse suas questões com os senhorios circunvisinhos, quasi todos fidalgos de antiga linhagem, poderosos, e de grande valimento com o fraco rei D. João III que então reinava, e de quem o filho de Affonso de Albuquerque se mostra queixoso nos seus Commentarios.

Para averiguarmos este ponto, sabendo que tinha havido uma demanda de reivindicação d'esta casa dos Bicos, fomos em busca dos autos, e com effeito os achámos, e n'elles alguns documentos de muita curiosidade, por onde se prova que a casa foi ao cabo.

O mais antigo documento junto aos autos é uma escriptura de doação feita em Lisboa aos 26 dias do mez de outubro de 1649, por D. João Affonso de Albuquerque e sua mulher D. Violante de Tavora, a seu sobrinho Antonio de Albuquerque, commendador das commendas de Santo André do Ervedal e ilha de Porto Santo, na qual escriptura os outorgantes dizem:

«Que dotam e doam ao dito Antonio de Albuquerque seu sobrinho, toda sua fazenda, que possuem pela maneira seguinte, assi para que com ella possa melhor casar com pessoa limpa, que não tenha rassa de Judeo nem Mouro, e para que com isso possa o appellido de Albuquerque conservar se e hir em augmento, por quanto de todo se vai extinguindo; e o dito Antonio de Albuquerque, seu sobrinho, he só o Albuquerque varão que ha neste reino descendente do grande Affonso de Albuquerque.»

Segue-se a relação de varios bens e depois:

«E outro sim lhe fazem doação das suas casas da porta do Mar a que chamam dos Bicos, na Ribeira, assi e da maneira que as possuem, e que de presente rendem 224$000 réis de antemão, e as pagas 240$000 réis.

«E que tambem ha de ser obrigado o dito seu sobrinho e todos os successores deste morgado, a trazerem as armas dos Albuquerques sem nenhuma mistura, e que se appellidem de Albuquerque sem nenhum outro appellido.»

Esta doação foi feita 69 annos depois da morte do edificador, e o doador era seu neto. É verdade que elle trazia arrendada a casa dos Bicos, signal de que não a habitava; mas casa que n'aquelle tempo se arrendava por 464$000 réis devia ser apalaçada e completa. E tanto mais que depois da peste de 1598, que naquelle bairro começou como a febre amarella (em 1723 e 1857), e n'elle fez grande mortandade, as rendas das casas desceram alli muito.

No auto de posse, por successão, que d'esta casa tomou, em 1745, Francisco Xavier de Mello Albuquerque Brito Freire, se lhe chama «casa nobre, com loja por baixo, onde se vendem bebidas.» O que tudo consta dos mesmos autos.

Pelo terremoto é que naturalmente a casa dos Bicos foi a terra, e ardeu como quasi todos os grandes edificios circunvisinhos, nomeadamente a casa da Misericordia ea Conceição Velha.

E tanto isto é certo, que em 1775, vinte annos depois d'aquella horrivel catastrophe, achámos nos mesmos autos, que a casa dos Bicos fôra arrendada a um Antonio Affonso de Abreu por 400$000 réis, declarando o arrendamento que eram armazens e sobrelojas, tal como ella agora existe.

Temos ainda outro documento indicativo de que esta casa foi acabada, e feita para residencia de seu proprietario, porque lhe poz sobre a porta de entrada o brasão das suas armas. É a obra de Manuel Gomes Bezerra, intitulada: Estrangeiros no Lima, curioso investigador de genealogias e armarias, o qual tratando da genealogia e brasão dos Albuquerques, no 1. 1, pag. 405, diz o seguinte: « Ha outros Albuquerques chamados de Cantanhede, que são os do grande Affonso de Albuquerque, cujas armas descreve Coelho (Gasco), affirmando serem estas as que se achavam na casa dos Diamantes, á Porta do Mar de Lisboa, que foi do dito Affonso de Albuquerque.»

As armas são as seguintes:

Escudo esquartelado. No primeiro quartel as quinas de Portugal com seu filete e contrabanda costumada. No segundo, em campo vermelho, cinco flores de liz de ouro em aspa. Timbre um castello com as portas de ouro, e sobre a do meio uma flor das armas.

Nos Commentarios diz Affonso de Albuquerque que os d' este appellido houveram de trazer as armas que D. Affonso Sanches mandara pôr no castello de Albuquerque, com o seguinte letreiro:

«Em nome de Deus seja tudo. Amen. Eu Dom Afonso Sanches, senhor deste castello D' alboquerque, comecei este lavor, feria quarta, aos quatro dias do mez de agosto da era de 1314, o qual seja para servico de Deos e de Sancta Maria sua Madre, salvamento de minha alma, crescimento de minha honra e endereçamento de minha fasenda, para que as cousas que a Deos são feitas, todas adiante hão de ir e as que sem elle são todas hão de fenecer.

«E porem prasa a Deus que haja boa gloria o mestre pedreiro que fez este castello.»

De poder blasonar o seu escudo com o da casa real de França, muito se ufanava o bastardo de Affonso de Albuquerque, o filho da mourisca, porque (escreve elle nos citados Commentarios), Affonso Sanches, filho natural de el-rei D Diniz, houve de sua mulher um filho que se chamou D. João Affonso de Albuquerque, que herdou sua casa e foi grande senhor em Castella, e o primeiro que tomou o appellido de Albuquerque. Edificou a torre da menagem da Codiceira, e n'ella poz as suas armas, misturando com as quinas de Portugal as flores de liz, que eram as armas de sua mulher, que descendia da casa real de França.

D'esta alliança se fez a seguinte copla heraldica:

Do limpo sangue dos godos,
Do filho del-rei Diniz
E de Theresa Martins, Vêm os Albuquerques todos
Com quinas e flor de liz

Tão antigo e contagioso é, que ainda os mais sáfios plebeus e democratas ambicionam e requestam as librés gazis com que se pavoneia a aristocracia.

O Napoleão da Asia portugueza levantou fortalezas em Ormuz, Goa, Malaca, Ceylão; no Egypto, na Ethiopia, na Persia, no Japão, nas Molucas, em Narsinga, em Sião, fez respeitar o poderio e commercio de Portugal. Seu filho fez uma casa em Lisboa e uma quinta em Azeitão. Á casa chamou dos Diamantes, e á quinta do Paraiso. Por estas denominações ostentosas se póde aferir o seu caracter, e a differença do pae ao filho. Verdade seja, que o pago que o rei dera ao pae justifica o arbitrio que o filho tomou de seguir diverso trilho.

«O favor com que mais se accende o engenho,
Não o dá a patria, não, que está mettida
No gosto da cubiça e da rudeza»

Disse Camões, ha trezentos annos, e ainda hoje está na mesma!

Voltando porém á nossa historia, é de crer que o filho de Affonso de Albuquerque habitasse e fallecesse na sua casa dos Bicos, porque regressando a Lisboa em 1522, com a armada que foi levar a infanta D. Beatriz a Saboia, nunca mais entrou no serviço militar. Deu-se ás obras da casa dos Bicos, e da famosa quinta do Paraiso, assim como da vi sinha egreja de S. Simão. Depois d'estas obras feitas, é que tratou naturalmente de escrever os Commentarios das façanhas de seu pae, porque a primeira edição tem a data de 1557, trinta e cinco annos depois do seu regresso a Portugal.
Fez segunda edição d' este livro, folio de 600 paginas, em 1576, dedicada tambem a el- rei D. Sebastião, o ingrato que tão mau pago deu a Camões seu cantor.

Por este tempo tinha se feito popular, e havia conseguido um pelouro na camara municipal de Lisboa, sendo depois nomeado seu presidente, o primeiro que houve, segundo diz o tombo antigo do archivo da mesma camara, que examinámos.

Quando o duque de Alva entrou em Lisboa (1580), Affonso de Albuquerque pediu a exoneração da presidencia do municipio, allegando que estava muito velho e achacado.

Isto consta do referido tombo. Tinha então já os seus 80 annos e falleceu pouco depois.


ARCHIVO PITTORESCO SEMANÁRIO ILLUSTRADO 3º ANNO 1860

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