sábado, 22 de janeiro de 2011

História: Casa dos Bicos, Lisboa 4



História

Lisboa


IV

Depois de termos mandado para a imprensa as ultimas provas do capitulo antecedente, recebemos do sr. João Pedro da Costa Bastos, peritissimo official diplomatico da Torre do Tombo, e nosso collega na redacção do Diccionario Portuguez, de Ramalho, a seguinte nota, que tira todas as duvidas, se por ventura restasse alguma, sobre se ter concluido a casa dos Bicos.

Depois do terremoto de 1755, mandou o marquez de Pombal fazer um tombo geral das propriedades da cidade Lisboa, para se regularem as novas edificações, e tambem as reedificações e aforamentos.

No tombo do bairro da Ribeira (Liv. 2ª fol 9) está a medição das propriedades da praça da Ribeira, começada em 28 de fevereiro de 1756, sendo inspector da medição o desembargador João Ignacio Dantas Pereira, e engenheiros os capitães Gregorio Rebello Guerreiro Camacho, Francisco José de Mello e José Monteiro de Oliveira. Ahi se acha medida e descripta a casa dos Bicos pelo seguinte modo:

«Propriedade de Francisco Xavier de Mello, chamada dos Bicos, que tem de frente noventa e tres palmos e dois terços; e de fundo, athé á rua do Albuquerque, noventa e seis palmos, com loge, sobreloge e dous andares, com paredes commuas com as vesinhas.»

Aqui estão pois tiradas todas as duvidas. A casa ou palacio dos Bicos tinha dois andares, o andar nobre e outro por cima. Ainda mais se deduz, ser esta casa de tal ordem, que, apesar de haver alli tanta casaria afidalgada, esta, pelo seu edificador, deu nome á rua, para a qual suppomos que tinha a entrada principal, e as armas que daremos copiadas no seguinte numero.

No curioso «Mappa de Portugal» de João Baptista de Castro, edição de 1763, vem mencionada entre as ruas que havia na freguezia da Sé, antes do terremoto, a do Albuquerque. É a que hoje se chama do Almargem e se prolonga com a das Canastras. Para esta rua do Almargem, tem porta o armazem do sr. C. Lopes da Silva, que foi de certo a principal da casa dos Bicos, e ainda se lhe vêem as ombreiras lavradas no mesmo estilo das que deitam para a actual rua dos Bacalhoeiros.

A face revestida de bicos de cantaria, que deitava para a ribeira ou praia, conjecturamos ser as costas da casa, com sua serventia para o mar, o qual d'antes se espreguiçava alli pela terra dentro. E tanto assim parece, que as portas d'este lado são muito mais acanhadas que as da frontaria para a antiga rua do Albuquerque, hoje do Almargem.

Dando como resolvido o quesito sobre se a casa dos Bicos se havia ultimado ou não, passemos ao 3º que é:

Teve ou não teve diamantes?

Já dissemos que a tradição dava como certo terem aquelles bicos seu diamante, falso dizem alguns, encravado em cada ponta. Não ha porém nenhum indicio de tal, segundo se pôde verificar pela inspecção ocular. Que o edificador se jactasse de que os podia ou havia de pôr alli, não nos parece inverosimil, a conjecturarmos pelo seu caracter e riqueza. O mais certo, porém, é que tal nome se lhe désse, pela feição de ponta de diamante que tinham os bicos de pedra que revestiam aquella frente da casa para o mar. Pela mesma analogia se chama diamante a uma peça de pau, cuja ponta triangular fica entre os eixos da moenda das canas de assucar, nos engenhos do Brasil.

Entretanto temos um documento que poderia suscitar duvidas, se a coisa não fosse tão absurda. E uma carta do celebre e elegante auctor classico D. Francisco Manuel de Mello, escripta ao auctor, tambem classico, da Vida de D. João de Castro, Jacinto Freire de Andrade, da prisão do castello, em 28 de novembro de 1638. Dando-lhe parte de que ia ser solto, escreve o seguinte:

«Já tomei casas e na Ribeira, peor que na praça, e junto aos Diamantes. Será porventura esta a pena que me dessem por meus delictos, velos e desejalos, á maneira d' aquella agua e d' aquellas maçãs de Tantalo.»

«Mas é muito para considerar, que estas casas se chamam egualmente dos Bicos que dos Diamantes. Tudo deve de ser uma mesma coisa, os diamantes e os bicos, para os que os tem e para os que os desejam.»

Á vista d'esta lamentação da cubiça mal affortunada, poderá alguem suppor que D. Francisco Manuel soffria realmente, como elle diz, o supplicio de Tantalo, vendo tanto diamante e não os possuindo.

Faça cada qual as supposições que quizer, que nós fazemos conta que tudo isto se resolve n'uma das muitas satyras feitas ao bastardo de Affonso de Albuquerque.

Passemos ao 4.º quesito, que em parte fica respondido com as ponderações que acabamos de fazer.

N'este 4.º quesito, se pergunta - porque se chama a esta casa dos Diamantes, em escriptos quasi coevos da sua edificação, não os tendo ella tido, como se affirma agora?

O primeiro escripto que encontrámos, onde se falía n'esta casa, é o «Livro da armaria Universal» manuscripto da Bibliotheca publica de Lisboa. A fI. 207 estão blazonadas, com as côres proprias, as armas dos Albuquerques, e por baixo em letra do seculo XVII: Assim estão nas suas notaveis casas dos diamantes da Ribeira de Lisboa.

Os Estrangeiros no Lima egualmente lhe chamam dos Diamantes, como já citámos, D. Francisco Manuel, na carta já mencionada, diz que se lhe chamava egualmente dos Bicos e dos Diamantes. A doação de 1649, que já transcrevemos, chama- lhe dos Bicos, e assim todos os impressos e manuscriptos posteriores a esta data. Fôra curioso vermos como a denominava o proprio Affonso de Albuquerque no seu testamento; mas d'elle não podémos alcançar mais que a verba tocante á trasladação dos ossos de seu pae, do convento da Graça de Lisboa para a egreja de Azeitão, a que n' outro capitulo havemos de dar cabida.

O certo é, que a denominação de casa dos Diamantes trocou- se pela dos Bicos, talvez depois da morte do edificador, em 1580. Alguem nos deu já a razão, e foi, que fallecendo Affonso de Albuquerque, os diamantes dos bicos da sua casa da Ribeira entraram em partilha, e cada um dos herdeiros levou o seu quinhão, ficando só as pontas ou bicos de pedra, parte dos quaes ainda hoje alli se conservam, e por estes foi desde então, e ainda hoje é conhecida a celebre casa, até que venha algum novo senhorio levantar o predio, e apagar de todo esta antigualha, cujas paredes foram levantadas com os soldos e moradias do grande conquistador e fundador do império oriental da nação portugueza no seculo XVI.

Ao menos valha-nos a certeza de que deixámos aos nossos vindouros uma copia exacta d'esta casa monumental, nas paginas do Archivo Piltoresco.




ARCHIVO PITTORESCO SEMANÁRIO ILLUSTRADO 3º ANNO 1860


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