História
Lisboa
V
O quinto quesito formado pela tradição e memorias acerca desta casa celebre é saber:
Em que tempo residiu n' ella o grande Affonso de Albuquerque?
Já desfizemos o erro de alguns escriptores afirmarem que Affonso de Albuquerque morava na Casa dos Bicos, porque mostrámos, com documento authentico, que ella fôra edificada por seu filho natural, annos depois da morte de seu pae.
Agora cumpre averiguar se tal asserção se referia ao filho, por haver tomado o mesmo nome glorioso.
Dissemos n'um dos artigos antecedentes, que o filho de Affonso de Albuquerque, além da Casa dos Bicos fizera uma grande residencia e quinta em Azeitão que denominou do Paraizo, e hoje se chama da Bacalhôa. Era natural que alli quizesse viver, porque até edificou, tambem á sua custa, uma egreja a S. Simão, para sua sepultura e para a dos ossos de seu glorioso pae.
É certo porém que fez alli pouca persistencia, porque tendo feito as pazes com el-rei D João III, este o nomeou vedor da sua fazenda - cargo em que foi tão diligente diz (Barbosa Machado) no obséquio do seu principe, como desinteressado no augmento proprio. Este emprego lhe deu o soberano por ver que era dotado de insigne prudencia, alcançada com a lição dos livros e continua administração dos negocios do municipio, de que foi presidente, como já notámos.
Estes cargos o retinham necessariamente longe de Azeitão, onde quando voltou da Saboya tencionava acaso desterrar-se da corte.
Foi então que residiu na sua casa dos Bicos, ainda chamada dos Diamantes, não se retirando de Lisboa nem sequer durante a peste de 1569, quando já não era vedor da fazenda por ter fallecido D. João III, mas sim presidente do senado. « N'esta grande calamidade, dizem as memorias do tempo, manifestou grande capacidade e providencia, applicando todos os meios para evitar os calamitosos damnos que em toda a cidade causava a peste, que com horrorosa voracidade tinha consumido a muitos milhares de homens, devendo-se á sua compassiva vigilancia o total exterminio de tão medonho flagello.»
O rei e a corte tinham fugido para Évora, e Affonso de Albuquerque contava quasi setenta annos. Vê- se que n'aquelles tempos não se corroiam e gastavam tão cedo, como hoje em dia os homens publicos.
Se porém não pôde em vida lograr-se de tão deliciosa residencia, como era a sua quinta de Azeitão, para lá foi dormir o somno eterno, conforme dispozera em seu testamento.
A verba em que Affonso de Albuquerque faz esta manda, foi-nos apontada pelo sr. visconde de Jorumenha, o profundo biographo do nosso Camões, e grande sabedor de antiguidades nacionaes.
Eis o teor da dita verba:
«Digo e declaro que por minha propria vontade, sem meu pae o mandar em seu testamento, como d'elle se verá, determinei tomar para sepultura de seus ossos, minha e de minha mulher e filha, a capella maior de Nossa Senhora da Graça da ordem de Santo Agostinho, para o que tinha feito contracto com os padres do dito mosteiro, no qual lhes dotei certa fazenda com certas obrigacões. E por os ditos padres não cumprirem comigo como eram obrigados, e pelo que em minha vida vi e entendi, que pois faltavam na vida, sendo presente, muito mais faltariam depois da morte; por a experiencia que disso alcancei, e por outros justos respeitos que me a isso levaram mando:
Que sendo caso, que dantes da minha morte não tenha mandado as ossadas de meu pae, mulher e filha á egreja de S. Simão, que mandei fazer á minha custa em Azeitão, que logo as façam mudar para a dita egreja, conforme a declaração do livro que d'isso tenho feito B. de Matta. E porque trago demanda com os ditos padres sobre lhe largar a dita capella, declaro por descargo de minha consciencia, e para tirar duvidas, que a marinha de Alhos Vedros, e os Moios da Golegã, com a quinta do Meloal que tenho no Lavradio, tudo juntamente me deixou minha tia D. Izabel de Albuquerque, unido e vinculado em morgado, com a obrigação de dar cada anno uma pipa de vinho aos padres de S. Francisco de Enxobregas. Portanto não podia dotar a tal fazenda, conforme a minha consciencia; e se ao tempo que o fiz fôra lembrado de tal obrigação, por nenhuma via o fizera. Portanto mando:
Que tanto que a minha alma se apartar d'esta miseravel carne, meu corpo se leve á dita egreja de S. Simão, onde será sepultado no logar e sepultura que deixo declarado no dito livro.
No dia do meu fallecimento, se poder ser antes do meu corpo se sepultar, ou ao outro dia, chamarão os padres todos do mosteiro de S. Francisco de Setubal, com os mais padres seculares de S. Pedro que se acharem, e dirão todos missa pela minha alma, e farão um officio de nove lições, cantado, e lhe darão de esmola o que parecer bem a meus testamenteiros, de que todos sejam contentes; e o mesmo se fará ao mez e ao anno, com a offerta que outro sim lhes parecer, sem vaidade nem vangloria, tudo para louvor e gloria de Deus. E o dito meu corpo será sepultado no habito de S. Francisco, e levado com a menos vaidade e vangloria que puder ser, porque em tudo quero muita humildade e nenhuma vangloria.
Porque sempre foi minha vontade acrescentar e augmentar o serviço do Senhor Deus, e honra de S. Simão, que tão esquecida estava, para effeito do qual mandei fazer a dita egreja, com muito gosto e contentamento, tanto quanto o Senhor Deus tenha de receber minha alma na sua gloria, pretendo tambem que n' ella se façam os officios divinos com muita veneração, os quaes o cura da dita egreja não póde fazer só; portanto quero e mando, que na dita egreja haja para sempre, perpetuamente, dois capellães clerigos seculares de S. Pedro, virtuosos e de boas vidas, e cada um d' elles diga cada semana quatro missas resadas na dita egreja por alma de meu pae e mãi, e por minha e de minha mulher e filha, e de meus herdeiros, e amigos e inimigos, e almas desamparadas do purgatorio, com seus responsos sobre nossas sepulturas, que ficarão declaradas no dito livro B. da Matta.»
A respeito da paragem dos ossos do grande Affonso de Albuquerque, á vista d' este testamento, temos que fallar com alguma detença o que faremos no capitulo seguinte.
ARMAS DOS ALBUQUERQUES QUE ESTAVAM SOBRE A PORTA DA CASA DOS BICOS
Já publicámos a pag. 96 a copla heraldica feita pelo bispo de Malaca, D. João Ribeiro Gajo ao escudo dos Albuquerques. Agora poremos aqui tambem, para ufania dos que tem este appellido, a que fez João Rodrigues de Sá, celebre coplista genealogico.
As cinco dores de liz
Com quinas em quarteirão,
Os Albuquerque trarão,
Os que del-rei D. Diniz
Trazem sua geração.
E por locar este estado,
Bem merece ser louvado
Sangue que é, com tal mistura,
Por tão honrada natura,
Digno de ser respeitado.
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