II
Do manuscrito citado no artigo antecedente, que é o códice B, 3-60 da biblioteca nacional de Lisboa, vamos extractar a resumida historia da fundação d' este convento, com a indicação das preciosidades, que ainda hoje possui, dos bons tempos del-rei D. Manuel. Com a historia do convento vem á mistura outras curiosas daquele tempo, como por exemplo a queima de mais de um milhão de livros árabes, que mandou fazer em Oran o celebre cardeal Ximenes, regente de Espanha durante a menoridade de Carlos V.
«No ano de 1500, seguindo mestre Boutaca as obras do convento, conforme o debuxo que sonhara em Itália, como já nele estavam algumas religiosas, ordenavam elas a seu gosto as oficinas, com muita consolação da fundadora, a qual n' este tempo residia na cidade de Lisboa, por el- rei D. Manuel ai assistir, estando aposentada no circuito do convento de Santa Clara para de mais perto haver as esmolas del-rei, e mais os privilégios, alvarás e mercês que lhe apontava. N'este ano deu el-rei um alvará, em que mandou ás justiças da terra não consentissem levantarem-se casas, por nenhum modo, defronte, nem ao redor d'este convento; alvará que está assinado por ele e por seu sucessor, que o confirmou com os mais.
«E assim deu el-rei um sino grande dos bons que há no reino, com os nomes de Jesus e Maria nele esculpidos, e outro menor; campainhas grandes e pequenas para o uso da igreja e convento, ornamentos ricos, e muitos de varias sedas e guarnições; a opa de rico bordado e imaginaria com que foi levantado rei, de que ainda hoje estão guarnecidos dois ornamentos; assim deu os vasos de prata dourados para os altares, cofres de tartaruga e da China, chapeados de prata, para o sacrario, e outros em que estão corporais e sanguinhos.
«Deu mais tapeçarias, alcatifas e outras peças, com muitas pérolas e aljofres, com que se ornaram patenas e bolsas; e também mui ricos retábulos, que juntos com os que deu a rainha D. Leonor, sua irmã, se fez o da capela-mor, uma das formosas peças que se podem ver por serem, assim ricos como devotos, mandados de presente pelo imperador Maximiliano, primo dos ditos rei e rainha. Deram também notáveis relíquias e uma riquisima cruz em que estão muitas, como adiante se verá.
«A nossa fundadora, entre os negócios do convento, ordenava também os de seus filhos, de modo que acabados os de Marta, pudesse com quietação entregar-se aos de Maria, como ao diante se verá. Da cidade de Lisboa, onde permanecia, avisava as religiosas e o procurador de fora sobre o que era necessário, entregando-lhe as esmolas de dinheiro, e as mais que el-rei dava para a sustentação e necessidades das freiras e convento. Escreveu para esta vila a um fidalgo, pedindo- lhe quisesse ser seu procurador, o que ele aceitou com muito gosto; e indo logo a Lisboa, se lhe fez procuração, na qual a fundadora lhe deu seu poder e autoridade, para nesta vila comprar e trespassar certas fazendas ao hospital de Nossa Senhora da Anunciada, ficando livre um pedaço de terra ao redor d'este convento. E assim deu mais o foro d'outra vinha, com que rematou os foros que ao hospital tinha comprado, e d' estas fazendas se fizeram escrituras publicas, que no nosso cartório estão; assim como uma doação que fez mestre Gil, cirurgião-mor do reino, com licença delrei, em que deu um pedaço de terra que iguala com a que a fundadora comprou. Foi feita esta doação em 29 de Abril de 1503. Junto a estas escrituras está outra, porque consta ter o procurador do convento tomado posse pacificamente das ditas terras e chão.
N'este tempo morreu o papa Alexandre VI, a quem sucedeu Júlio II. O nosso rei mandou logo dar-lhe a obediência por seu embaixador D. Diogo de Souza; e entre as coisas que impetrava para bem de seu reino, pediu também para este convento, a instâncias da fundadora, um breve em que confirmasse os que tinham dado Inocencio VIII e Alexandre VI, e assim o declara com o mais que se segue, e é que nunca o convento possa ser de frades nem de freiras de outra regra e profissão, mas sempre das senhoras pobres de Santa Clara, guardando a primeira regra, com que foram fundadas pelas de Gandia, cidade de Valença; e que não passe o numero de trinta e três, procurando sempre irem de bem em melhor, na guarda das ditas coisas e de sua profissão, e que havendo lugar despejado e parenta da linha da fundadora, que queira entrar nele, se lhe de primeiro que a outra: e que a capela debaixo do altar-mor seja a de D. João Manuel, filho da fundadora, e para seus filhos e netos, não sepultando a outros nela; e que a seu filho D. Nuno Manuel na mesma forma concede outra capela, que ele faria defronte do altar maior, debaixo do coro e tribuna, chegando a altura até ela, e largura da mesma igreja. Assim lho concedeu o papa, declarando ter ela gastado dez mil cruzados de sua fazenda e seus filhos, adquirindo dos Reis e padroeiros muitos mais; e que a instância del-rei D. Manuel concede todas estas coisas, e as confirma para sempre, dando também licença ao mesmo rei e á rainha D. Maria, sua mulher, para entrarem no convento alguns dias no ano. Foi dado o breve ás três calendas de maio de 1505. Está no convento em pergaminho.
«No tempo d'este rei e papa, se tomou a cidade de Orão aos moiros, pelo rei de Castela D. Fernando, pae da mesma rainha D. Maria nossa padroeira, governando em seu lugar D. Francisco Ximenes de Cisneiros, religioso da nossa seraphica ordem, cardeal de Hespanha e arcebispo de Toledo, chanceller-mór de Castella, inquisidor-mór d'ella, e reformador de todas as religiões, por ordem do mesmo papa Julio II; o que fez com suma satisfação, assim do mesmo papa como dos reis christãos. Em Granada converteu á santa fé, elle e outros frades da nossa religião, tanto numero de moiros, que não tinham mãos a baptisar, e pelas do arcebispo foram quatro mil. Queimou um milhão e cinco mil livros mahometanos; edificou á sua custa grande quantidade de igrejas, conventos, collegios e seminarios. E para a armada de Orão ofifereceu gastos e pessoa. Ordenou duzentas villas no anno de 1509, e logo viu no ceo, em signal de victoria, a insignia da santa vera cruz, e a tornou a ver estando o arraial apparelhado para a batalha, e elle a cavallo, vestido de pontifical sobre o habito, e assim iam os mais religiosos revestidos, com espadas cingidas, cruz levantada, e estandarte com ella, tendo de uma parte e da outra as armas do santo arcebispo, cuja pratica de espirito e valor, animou os soldados a commetter tão grande empresa, entoando primeiro: Vexilla regis prodeunt. Houveram victoria, que foi das maiores do mundo acontecidas, pois morrendo só trinta christãos, mataram passante de quatro mil moiros, e captivaram oito mil. Em quanto durou a batalha, esteve o nosso arcebispo no campo com as mãos levantadas em oração, pedindo victoria, e com ella entraram pela cidade de Orão os frades com cruz levantada cantando o liymno - Te Deum laudamus. O povo deitava pelas ruas ramos e palmas com palavras de louvor ao arcebispo, ao que elle respondeu: Non nobis, Domine, non nobis, sed nomine tuo da gloriam. O alcaide lhe deu em paz as chaves da cidade, e trezentos christãos que estavam captivos.»
Os quadros vindos de Allemanha, n'este manusscripto mencionados, ainda se conservam no mosteiro, como verificou o conde Raczynski em 1844, segundo elle refere no seu importante livro Les arts en Portugal.
Estes quadros, em numero de 17, são dos attribuidos ao celebre pintor Grão Vasco; porém o citado conde, por alguns annos ministro da Prussia junto á corte de Lisboa, e que os foi examinar a Setubal, com quanto se não julgasse habilitado para os capitular como taes, faz d'elles tanto apreço, que aponta esta collecção por uma das mais preciosas que elle viu em Portugal de quadros originaes, e designa o auctor d'elles, na classificação que fez de diversos artistas e epochas, pela selecção de peintre des tableaux de Setúbal.
A lista que nos dá d' estes 17 quadros é a seguinte, coisa que nenhum português tinha feito antes d'elle.
1. S Franciso recebendo as Chagas
2 Annunciação de Nossa Senhora
3 O nascimento de Christo
4 A Circumcisão
5 A adoração dos Reis 6 A santa Veronica
7 Jesus crucificado
8 O Calvario
9 A Assumpção de Nossa Senhora
10 O santo Sepulchro 11 A Resurreição
12 Santas religiosas
13 Santos martyres
14 Santo Antonio
15 A Ascensão
E mais dois quadrinhos representando a Prisão de Christo e a Flagellação.
«On dit (conclue o conde Raezynski) que ces tableaux sont l'ouvrage de Gran- Vasco, mais il n'y a aucun document que Ie prouve, cependant on sait positivement que ces tableaux ont eté donnés à ce couvent par les rois qui en furent les patrons Dom João II et Dom Manuel.»
Hoje que o novo caminho de ferro do sul nos leva de Lisboa a Setubal em tão poucos minutos, devem ser mui agradaveis aos que prezam as nossas antiguidades, e amam as artes, estas e outras noticias dos monumentos e sitios, que dão nome á novissima cidade patria do nosso Bocage.
ARCHIVO PITTORESCO SEMANÁRIO ILLUSTRADO 3º ANNO 1860
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