sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

História: Casa dos Bicos (2) e a família Albuquerque







História


A CASA DOS BICOS

II

A Casa dos Bicos e a família Albuquerque


Começaremos n'este capitulo a desatar os nós cegos que a tradição oral, e tambem a escripta, tem dado successivamente no fio da historia fabulosa d' esta casa tão popular pelos seus bicos ou pontas de diamante.


O primeiro dos quesitos propostos no capitulo antecedente a que temos de responder é este:

Quando foi edificada a casa dos Bicos?

Quasi a meio da antiga villa nova de Gibraltar, ou Judiaria Grande, povoação ou bairro judaico fóra do lanço de sul e sueste do muro que cercava Lisboa antes do seculo XIV, bairro tão poeticamente descripto pelo nosso eminentissimo antiquario o sr. A. Herculano, que Deus, guarde foi edificada a casa dos Bicos.


Á celebre casa da esnoga (synagoga), transformada em 1502 por el-rei D. Manuel em templo christão (a Conceição Velha), succedeu, em celebridade, a casa dos Bicos, sua visinha.

Desinfamado aquelle bairro da judiaria e heregia que o habitava, começaram os senhores e fidalgos vindos das conquistas, podres de ricos e dos maus vezos que por lá tomaram, a edificar os seus palacios, e a gente mercantil a casaria para o seu trato, que já era muito por aquelle tempo, e ia crescendo com os generos vindos do recemdescoberto Brasil.

Mas Affonso de Albuquerque, ao qual se tem attribuido a edificação do palacio ou casa dos Bicos (Beserra, Estrangeiros no Lima), não voltou da Índia senão em pó, e sessenta annos depois de ter para lá ido.

Affonso de Albuquerque nasceu em 1452. Foi filho segundo de Gonçalo de Albuquerque, senhor de Villa-Verde, e de D. Leonor de Menezes, filha do primeiro conde de Atouguia.


Descende Affonso de Albuquerque da casa real, como quasi todos os nossos antigos fidalgos; mas a ascendencia d'este anda vinculada a um desastroso facto da nossa historia, a primeira guerra civil que houve em Portugal.


El-rei D. Diniz teve de D. Aldonça Telha, natural de Galliza, um filho que se chamou D. Affonso Sanches, o qual foi tão predilecto de seu pae, que veiu a causar inveja ao principe D. Affonso, filho legitimo de D. Diniz, e o que lhe suecedeu no throno. Chegaram as coisas a ponto, que D. Affonso Sanches teve de se retirar para Hespanha, e lá casou com D. Theresa Martins, neta del-rei D. Sancho, o bravo, de Castella, tendo em dote, além d' outras possessões, villa do Conde em Portugal, eo castello de Albuquerque em Hespanha. D. Affonso oppoz se á doação feita ao bastardo seu irmão, e rebellando-se contra seu pae e rei, poz-se em campo, levantou gente de guerra; dividiu- se o reino em duas parcialidades, houve muitos recontros, homicidios e roubos entre os dois partidos, até que estando o proprio rei D. Diniz já bem edoso, para dar batalha a seu filho nos campos do paço do Lumiar, interveiu a piedosa e depois santa rainha Isabel, a qual conseguiu congraçar seu filho com seu esposo, conciliação mui festejada por todo o reino, e que se perpetuou n'um padrão que ainda se conserva n'aquelle


D'este bastardo del rei D. Diniz ficou um filho por nome João Affonso de Albuquerque, que herdou a casa de seu pae, e foi o primeiro que tomou o appellido de Albuquerque. Esta familia veiu a apparentar-se com o celebre valido e escrivão da puridade de D João I, Gonçalo Gomide, tão privado d' aquelle grande rei, que só elle soube do segredo da conquista de Ceuta, onde se achou com 400 homens "todos da sua libré". Foi o primeiro senhor de Villa Verde, prior do Crato e alcaide-mór de Óbidos, Leiria, etc. Jaz no claustro do convento da Graça de Lisboa, onde lhe fez jazigo seu pae, no tempo del-rei D. João I, com uma inscripção curiosa, que achámos no codice C da secção dos manuscriptos da bibliotheca nacional, e diz assim: Aqui jaz Gil Esteves Fariseu, e sua mulher Sancha Annes da Cunha, os quaes receberam por filho Gonçalo Lourenço Gomide, escrivão del-rei. Fizeram levantar em este cabido uma capella para sempre.

D'aqui provém ser o jazigo dos Albuquerques no extincto convento da Graça, e ter o grande Affonso de Albuquerque disposto no seu testamento, feito em Goa, o seguinte: «Declaro que fallecendo eu n'estas partes da Índia, o que Nosso Senhor por sua misericordia não permitta, por alguns justos respeitos que me a isso moveram, e por descanço de minha alma, mando que depois de comesta (comida) a carne, os meus ossos sejam levados a Portugal, e se enterrem em Nossa Senhora da Graça, da ordem de Santo Agostinho, onde jazem meus avós.»


E com effeito para aquelle jazigo foi trasladada de Goa a ossada de Affonso de Albuquerque em 1566.

Mas onde pararão hoje as cinzas d'este Napoleão da Índia portugueza?


Mais adiante tocaremos este ponto, porque tudo quanto vamos notando tem relação com a historia da casa dos Bicos.

D'este entroncamento, dos Gomides com os Albuquerques, nasceu o celebre vice rei. Foi seu avô o mestre de S. Thiago, D. Francisco Affonso de Albuquerque, o qual foi degollado por ter morto sua mulher, por suspeitas, mas innocentemente. Do filho d'este chamado Gonçalo de Albuquerque, senhor de Villa-Verde, e de D. Leonor de Menezes, filha do primeiro conde de Atouguia, nasceu em 1452, o nosso Affonso de Albuquerque. Como era filho segundo, teve de começar mais cedo a grangear augmentos. Começou por moço da camara del-rei D. Affonso V. Quando este falleceu em 1481, passou ao exercito de Africa, e depois de fazer proezas em Arzila, voltou ao reino e foi nomeado estribeiro-mór del-rei D. João II. Morto este soberano, em 1495, voltou a Arzila em companhia de um irmão, o qual mataram os moiros n'uma peleja, pelo que regressou a Portugal, e foi nomeado camarista del-rei D. Manuel, saindo por varias vezes nas armadas de Portugal, inclusive na que foi a Tarento, por instancias do papa. Finalmente, em 1506 saiu de Lisboa commandando a esquadra que el-rei D. Manuel mandou á costa da Arabia, nomeando-o juntamente para sueceder a D. Francisco de Almeida no vice-reinado da Índia. Alli esteve perto de dez annos, fallecendo em 1515.

Por estas datas, viagens e guerras, se vê que Affonso de Albuquerque não teria, de certo, muito vagar para fazer obras taes como a casa dos Bicos.

O que porém é certo, é que ella foi feita com as quintaladas de pimenta que se lhe ficaram devendo, e que recebeu seu filho bastardo e herdeiro universal, como ha pouco descobrimos n' um documento antigo, o codice C. da collecção genealogica dos padres theatinos, que se acha hoje na secção dos manuscriptos da bibliotheca nacional de Lisboa.


Affonso de Albuquerque morreu solteiro; e é notavel que o benemerito investigador de antiguidades nacionaes, o beneficiado João Baptista de Castro, no Mappa de Portugal t. 3. pag. 221, lhe dê por mulher uma D. Filippa de Vilhena!


Á hora da morte, escrevendo a D. Manuel a notabilissima carta que vem transcripta nos seus Commentarios, posto que mui errada como se viu pela confrontação do authographo, que se acha depositado na Torre do Tombo gav. 15. mas. 17. n. 13. declarou Affonso de Albuquerque que deixava um filho natural. São notaveis, por affectuosas, as suas palavras: «Eu, senhor, deixo cá um filho por minha memoria, a que deixo toda minha fazenda, que é assas de pouca, mas deixo-lhe a obrigação de todos meus serviços que é mui grande. (...)
Peço a vossa altesa por mercê... que me faça meu filho grande, e lhe dê satisfacão de meu serviço.»


Sobre quem fosse a mãe d'este filho ha diversas opiniões. Nos Commentarios que elle publicou em nome de seu pae, não nos diz palavra, o que se deve respeitar como testimunho do seu respeito filial.


Gaspar Correa, nas Lendas da Índia, manuscripto que a academia real das sciencias está imprimindo sob a direcção de seu socio o sr. R. Felner, diz na lenda de Affonso de Albuquerque, cap 54, anno 1515, que elle deixára um filho «que houve sendo mancebo n'uma mulher de Africa». O já citado codice manuscripto da bibliotheca nacional diz: «Teve um filho natural havido de uma escrava branca, por nome Joanna Vicente.» Em um nobiliario manuscripto da mesma bibliotheca (cod C. fol. 183) lê-se o seguinte: «Este Braz de Albuquerque, filho natural de Affonso de Albuquerque, teve, diz- se, por mãe uma mourisca. Foi universal herdeiro de seu pae, sem saber que era seu filho, porque só á hora da morte o disse.» Gaspar Correa diz mais, que este filho fôra criado por uma irmã de Affonso de Albuquerque; mas o dito nobiliario conta, que el-rei D. Manuel, tanto que recebeu a carta de Affonso de Albuquerque, lhe mandára recolher o filho em Santo Eloy, para que aprendesse o que convinha para tratar com homens, porque até então tivera criação muito inferior




Effectivamente el-rei D Manuel reparou no filho a injustiça que fizera ao conquistador de Goa, Malaca e Ormuz, mandando-lhe por suecessor e espia um inimigo, e desattendendo a petição que Affonso de Albuquerque justificadamente fizera para lhe ser dado o titulo de duque de Goa, merecendo elle o de duque da Índia, porque ao seu valor, politica e prudencia, se deveu o estabelecimento do imperio asiatico portuguez. Não só tomou conta do filho que este grande capitão lhe recommendára, mas, para perpetuar tão glorioso nome, o mandou chrismar para que se ficasse chamando Affonso de Albuquerque, como seu pae. Depois casou-o com D. Maria de Noronha, filha do primeiro conde de Linhare, seu parente, dotando-o com vinte mil cruzados, fazendo-lhe merce de trezentos mil réis de juro: mandando- lhe pagar oitenta mil cruzados de soldos que se ficaram devendo a Affonso de Albuquerque, e as quintaladas de pimenta que lhe pertenciam, o que tudo montou a grandes cabedaes para aquelle tempo.


Era então moda e luxo dos poderosos fazerem casas para habitar, na Ribeira, o antigo bairro da Judiaria, de grande trafego e concorrencia de estrangeiros, á beira do Tejo povoado sempre de innuineraveis galeões de todos os reinos do mundo, e das frotas mercantis de todas as nações do poente e levante.


O bastardo de Affonso de Albuquerque, o filho da mourisca, elevado á grandeza, brilhando com os raios da gloria do pae, valido do rei, e tal rei como foi D. Manuel, casado com uma fidalga da primeira nobreza, e com muito dinheiro, quiz tambem ter palacio na Ribeira, e para quebrar os olhos, para cegar os émulos de seu pae, que eram todos os fidalgos poltrões e enredadores, protestou que havia de fazer uma casa forrada de diamantes. Esta bravata deveu, certamente, ser assumpto das satyras e epigrammas do tempo; mas não chegaram até nós. Chegou porém o anexim, que é evidentemente uma ironia.


A confirmação de que este filho de Affonso de Albuquerque foi o edificador da casa dos Bicos, achámos depois de muitas investigações, n'um dos codices da bibliotheca, o qual diz, tratando da genealogia d'este Albuquerque: « Foi vereador da camara de Lisboa, e algum tempo presidente d'ella. Fez a casa dos Bicos na Ribeira, e a grande quinta em Azeitão.»

Cumpria que n'aquelle tempo o presidente da camara municipal de Lisboa tivesse uma casa sumptuosa. E a aos Bicos o foi, como mais adiante veremos.

Este homem teve muitas letras, como provam os Commentarios das façanhas de seu pae, que elle escreveu, e tiveram duas edições em sua vida. É tido por um dos primeiros classicos da lingua portugueza, e o seu livro como um grande subsidio para a historia da Índia.

Foi escolhido por el-rei D. Manuel para ir na armada que levou a Saboia a infanta D. Beatriz para casar com o duque reinante d' aquelle estado.

Falleceu, talvez na casa dos Bicos, na avançada idade de 80 annos.


Fica pois resolvido o primeiro quesito, sobre o tempo em que se edificou a casa dos Bicos, que foi naturalmente pelos annos de 1523.



ARCHIVO PITTORESCO SEMANÁRIO ILLUSTRADO 3º ANNO 1860



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