História
Tem as cidades, como as familias, suas alcunhas que o rolar dos seculos váe puindo até que de todo as apaga. Quando os antiquarios, que são os genealogicos das cidades, querem fazer a arvore de costado das povoações antigas, esbarram com alcunhas já transformadas em appellidos, cuja origem se esconde no denso nevoeiro das lendas e tradições oraes, a que não ha atinar certo com a ponta do fio quebrado desde muitos seculos.
Tal acontece a muitos sitios e monumentos da velha Lisboa. E não só aos que nos tem sumido os terremotos, anniquilado a acção do tempo, varrido o sopro dos melhoramentos materiaes, e demolido o alvião municipal, senão tambem aos que ainda subsistem de pé, embora mutilados, a gemer pelas fendas e bojos que ameaçam a completa destruição d' esses macrobios de pedra e cal.
Mas nenhum d'esses caducos edificios, hoje monumentos, ainda que fossem insignificantes na sua mocidade, tem de certo mais occulto nascimento e baptismo que a Casa dos Bicos, sita no bairro escuro de Alfama, a antiga Judiaria e nova Gibraltar de Lisboa christã.
E todavia teve tal nomeada, chegou a ser tão popular e significativa, que deu mote para um dos nossos tão expressivos anexins, em summa, é casa que ficou em proverbio.
Mas com tudo isto, porque é tão desconhecida e ignorada, até dos nossos velhos e velhas, a origem e fundação d' esta casa, tão singular pela sua frontaria bicuda?
Não o sabemos.
Sabemos porém muitas particularidades curiosas e historicas a respeito d'ella, que descobrimos agora com muito custo, e revolvendo bastante papelada, para explicação e commentario da estampa que hoje publicámos pela primeira vez, apesar de nos dizerem no sitio, que muitos estrangeiros a tem ido alli desenhar.
Dividiremos em periodos as resoluções que nos parece se podem dar a respeito dos seguintes quesitos, que sobre esta casa singular se devem fazer. Mas primeiramente recapitulemos o que a tradição oral diz da casa dos Bicos.
É voz constante que aquella casa fôra edificada por um ricaço, que a revestira de cantaria lavrada em bicos faceados, em cuja ponta havia de cravar um diamante. Que estando já a casa na altura do primeiro andar, o governo mandára suspender a obra, não querendo que na cidade houvesse uma casa mais rica e fallada que o palacio real. Que não obstante este embargo, se lhe ficara chamando a "casa dos diamantes", e que com este nome era conhecida no tempo dos Filippes, tanto que quando veiu a Lisboa o II d'estes reis intrusos a fôra ver.
Dizem outros, que no tempo del rei D. Manuel estivera alli hospedada uma rainha preta, muito rica, que trazia muitos diamantes, e que d' aqui se formara o anexim de se dizer "não se perca a casa dos bicos", como um thesouro ou a coisa mais preciosa que havia na cidade.
Dizem alguns que a casa foi construida segundo o risco do senhorio, sem impedimento ou embargo por parte do governo; que em cada bico lhe puzera um diamante, só do primeiro andar para cima; que eram diamantes fingidos, mas que toda aquella pedraria rutilava maravilhosamente ao romper do sol que lhe batia de traves, porque n'aquelle tempo a frontaria da casa dos Bicos deitava para a praia da ribeira, e até nas aguas vivas se desembarcava mesmo á porta.
Que pelo terremoto é que abatêra, e se incendiara, ficando reduzida ás sobrelojas e armazens, tal qual agora a vemos, e a nossa estampa representa fielmente.
As memorias escriptas chamam lhe "casa dos diamantes" (D. Francisco Manuel de Mello, Cart. Fam. Cent. 2. 98). (Estrangeiros no Lima, t. 1. 240), mas não dizem se lá os houve ou não.
Dizem mais que aquella casa fôra de Affonso de Albuquerque, que na porta tinha as suas armas. (Est. no L. ibid.), que alli residia este grande conquistador da Índia portugueza, quando estava em Lisboa, e alli foi nascido e criado seu filho natural Braz de Albuquerque, que publicou os famosos Commentarios de seu pae, e em cuja pessoa el-rei D. Manuel, o ingrato, recompensou mesquinhamente os serviços do valoroso vice-rei.
Até aqui a tradição oral, e o pouco que indirectamente achámos escripto a respeito da casa dos Bicos.
Vamos agora averiguar por partes ou quesitos o que ha de certo ou provavel em tudo isto.
1º Quando foi edificada a casa dos Bicos?
2º Acabou-se ou foi embargada?
3º Teve ou não teve diamantes?
4º Se os não teve, porque se chama nos livros impressos "casa dos diamantes"?
5º Em que tempo residiu n'ella o grande Affonso de Albuquerque?
6º Porque pertence hoje esta casa a um dos vinculos do antigo secretario de guerra?
7º Acaso viria parar esta casa á familia dos Albuquerques por alliança matrimonial de algum destes fidalgos, como parenta dos ascendentes do doutor Lourenço Martins Bacalhau, appellido illustrado da magistratura portugueza?
8º Era bacalhoeiro o pae ou avô do doutor Martins Bacalhau, homem rico, como sempre foram entre nós os d'este commercio, e por isso esta casa serve ha seculos de armazem de bacalhau, como quem puxa para os seus e não degenera?
9º Porque é que a fazenda nacional poz a casa dos Bicos em praça, no tempo da infanta regente?
10º Como é que por este casebre deu o honrado c já fallecido bacalhoeiro Caetano Lopes da Silva 14 500$000 rs. em praça, e depois lhe foi pedida judicialmente?
11º Explica se bem a generosa abnegação com que o dito Caetano Lopes abriu mão da casa dos Bicos, logo que a sua arrematação se poz em litigio, não querendo nunca pedir á fazenda nacional a restituição dos 14 contos, e a sisa que por ella pagara na superintendencia das decimas do bairro d' Alfama? Louva-se a bizarria d'este honrado homem do povo.
12º Em conclusão, muita parte da tradição e das conjecturas a respeito da casa dos Bicos, virão a ficar em agua de bacalhau, genero cujo deposito tem sido ha tantos annos?
É o que os nossos leitores hão de decidir, á vista do que lhes dissermos nos artigos seguintes.
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