domingo, 23 de janeiro de 2011

História: Casa dos Bicos (Lisboa); 6: as ossadas de Afonso de Albuquerque



História

Lisboa



VI

OS RESTOS MORTAIS DE AFONSO DE ALBUQUERQUE


Já que pela primeira vez se soube, pelas nossas indagações, que a tão fallada casa dos Bicos, fôra edificada para perpetuar a memoria e o appellido do grande conquistador da Índia portugueza, não proseguiremos sem dar conta da paragem das suas cinzas, até hoje esquecidas, não só da patria que elle tanto engrandeceu, mas dos seus proprios descendentes, e dos herdeiros de seus bens!

A estes corre mui mais apertada a obrigação de recolher essas preciosas cinzas, e dar- lhes mausoléo digno do «appellido» que elle lhes legou.

Cabe aqui bem applicarmos a sentença proloquial, de que «os que lhe tem comido a carne lhe roam os ossos».

Largo espaço váe já do capitulo passado a este de hoje, e todo elle temos consumido em buscas e averiguações da actual paragem dos ossos de Affonso de Albuquerque, tão sumidos e tão misturados já, talvez como os de Camões!

Parece que o ter ido á Índia não a mercadejar, mas a pelejar, foi sentença de opprobrio e extincção para as cinzas dos que lá consumiram a vida.

Longa fôra a lista dos heroes do Oriente a quem negámos sequer uma sepultura honrosa!

Passemos pois á historia dos ossos de Affonso de Albuquerque, que para isso temos documentos novos.

Vejamos primeiro o que diz a este respeito seu unico filho e herdeiro, nos Commentarios que escreveu das façanhas de seu glorioso pae.

«Tendo, diz elle, o grande Affonso d' Albuquerque feito seu testamento em que se mandava enterrar na capella de Nossa Senhora que tinha feito em Goa, vindo de conquistar o reino de Ormuz, deixando n'elle feita uma fortaleza, como atraz digo, fez um codicillo que dizia assim: "Declaro que fallecendo eu n'estas partes da Índia, que Nosso Senhor por sua misericordia não permitta, por alguns justos respeitos que me a isso moveram, e por descanço de minha alma, mando que depois de comesta a carne, os meus ossos sejam levados a Portugual, e se enterrem em Nossa Senhora da Graça, da ordem de santo Agostinho, onde jazem meus avós.»

No precioso inédito que está publicando a academia real das sciencias de Lisboa, confrontado o autographo com as copias que d'elle se acharam pelo consciencioso academico Rodrigo Felner, vem sob a rubrica de "Lenda de Affonso de Albuquerque", o seguinte, a que podemos prestar inteira fé, porque o auctor, Gaspar Correa, foi um dos secretarios particulares que Affonso de Albuquerque teve na Índia.

Referindo elle a indignação que em toda a Índia causára a nomeação de Lopo Soares, para render Affonso de Albuquerque antes de acabar o seu tempo, e tendo aquelle homem sido mandado preso para o reino pelo mesmo Affonso de Albuquerque, exprime- se, a respeito dos ossos do grande capitão, nos seguintes termos:

«Em Goa cada dia havia muitas brigas, e matavam e feriam os criados do governador Lopo Soares, porque praticando em coisas da Índia, elles fallavam mal de Affonso de Albuquerque, o que não podiam soffrer os homens da Índia, e sobre isso vinham ás brigas.

Tudo o governador sabia, do que havia grande paixão; e sabendo as venerações que as gentes da terra iam fazer á sepultura de Affonso de Albuquerque, a que punham flores e ervas cheirosas, e fallavam com elle como se estivesse vivo, e lhe faziam muitos queixumes; para fazer as gentes perder este crédito, assentou de lhe desfazer sua sepultura, dizendo que aquella capella era de abobada e forte, e estava sobre a porta da cidade, e que se os moiros com traição entrassem n'ella, seria causa de se tomar a cidade.




E porque os fidalgos sabiam a tenção do governador, que era destruir as coisas de Affonso de Albuquerque, sobre que elle não tomava seus pareceres, não lhe iam á mão. Então me disse a mim, Gaspar Corrêa, que eu era védor das obras da cidade, que derrubasse a capella, e que a ossada de Affonso de Albuquerque a deitasse debaixo de uma arvore que ahi estava, ou a fosse deitar na egreja. Eu lhe disse, que bulir com os seus ossos o mandasse fazer pelos clerigos, que o demais eu o faria; e que a capella se não podia derrubar porque era de abobada, e havia mister gastar muito dinheiro em armar-lhe dentro os simples de madeira para a desfechar do encerramento da abobada. Do que elle houve paixão.

Então me mandou que serrasse as traves da capella, e desfizesse o sobrado. O que fiz, e assim esteve a capella sem sobrado muito tempo; e me mandou que lhe derrubasse as boticas que estavam fora da porta, dizendo que eram alli prejudiciaes se moiros entrassem na ilha, e fossem guerrear a cidade. O que assim fiz, que as derribei. E mandou que as boticas se fizessem além da ponte do ribeiro d'agua, que era d'ahi um tiro de bésta. A isto lhe não iam á mão os fidalgos, porque sabiam a má tenção que tinham ás coisas de Affonso de Albuquerque.»

Em Goa se conservaram os ossos de Affonso de Albuquerque, não obstante o rancor e brutalidade de Lopo Soares, até que de lá sairam para Lisboa em 1565, como nos refere seu filho nos seguintes termos:

«Coisa tão desejada de Affonso de Albuquerque, como era trazerem seus ossos a Portugal (como se vê por aquellas palavras do codicillo), descuido fôra de seu filho passarem se cincoenta c um annos sem lhe cumprir sua vontade; mas como esta obrigação era de Pero Corrêa, e como testamenteiro era obrigado a fazel-o, fica elle desculpado, o qual Pero Corrêa por muitas vezes pediu a el-rei D. Manuel que lhe désse licença para os mandar trazer, a qual lhe não quiz nunca dar, dizendo, que em ter os ossos de Affonso de Albuquerque em Goa, tinha a Índia segura.

Morto Pero Corrêa, ficou esta obrigação a seu filho, como seu herdeiro, que trabalhou muito com el-rei D João III por haver esta licença, que lhe sempre negou, pelos muitos requerimentos que teve dos moradores de Goa e de toda a Índia, que lh'a não désse; e depois de seu fallecimento, governando a rainha D. Catharina Nossa Senhora estes reinos por el-rei D. Sebastião seu neto, tornou outra vez a este seu requerimento, e passaram-se alguns annos sem o poder acabar, que lhe foi necessario haver uma bulla do papa, com grandes excommunhões aos moradores de Goa, que o não impedissem (parece que não era ainda a hora chegada).

Havida esta licença da rainha nossa senhora, porque já ahi não havia quem n'a impedisse, e indo D. Antão de Noronha á Índia por vice-rei, que poz força com sua auctoridade a mandal-os; chegaram ao porto de Lisboa a seis do mez de abril de 1566. E da nau em que vinham foram tirados e levados á casa da Misericordia, sendo Ruy Lourenço de Tavora provedor, acompanhados de muitos fidalgos, e alli estiveram alguns dias, coberta a tumba com um panno de veludo carmezim, com muitos clerigos que o acompanhavam, e diziam cada dia missa por sua alma, em quanto se dava ordem a se levarem á capella -mór de Nossa Senhora da Graça, que seu filho dotou de grossa renda para seu enterramento.

Estando tudo prestes, um domingo, dezenove dias do mez de maio, foram juntos na casa da Misericordia todos os senhores e fidalgos que havia na corte, para acompanharem estes ossos, e d'alli sairam em procissão, indo diante a bandeira da Misericordia com toda a irmandade; apoz ella os frades franciscos e agostinhos, e toda a clerezia da cidade, com tochas nas mãos, e no couce o cabido da sé de uma parte, e D. Affonso Henriques, deão del-rei com toda a capella da outra, e apoz elles a tumba, onde iam os ossos, que levavam os irmãos, coberta por cima com um panno grande de tela de oiro, e diante ia o provedor com sua vara na mã,o e Affonso de Albuquerque seu filho de uma parte, vestido em um capuz de dó, com a cabeça descoberta, e da outra parte André de Albuquerque seu sobrinho, da mesma maneira, e detrás da tumba o duque de Aveiro, e seus filhos, e irmãos, e todos os mais senhores e fidalgos e prelados, que a este tempo estavam na corte. A gente do povo era tanta que não cabiam pelas rua,s e assim n'esta ordem foram caminhando em procissão, e por todas as egrejas por onde passavam se dobravam os sinos, e chegaram a Nossa Senhora da Graça, e na capella-mór estava um estrado alto de dois degraus, que quasi a tomava toda, cercado de todas quatro partes com muitas tochas, e alcatifado de muitas alcatifas, e alli puzeram a tumba, em que os ossos iam mettidos, forrada de téla de ouro, acompanhada de muitos criados seus, vestidos todos de dó. E sobre esta tumba estavam dependuradas tres bandeiras das côres e divisas dos tres reinos que o grande Affonso de Albuquerque anhou aos moiros na Índia. Em riba d'estas bandeiras estava a bandeira real, que lhe el-rei D Manuel entregou, muito rota e velha, a qual lhe foi entregue aos seis dias do mez de abril do anno de 1506. E havendo sessenta annos que d'aqui partira, os ossos a tornaram a entregar no mosteiro de Nossa Senhora da Graça, da ordem de santo Agostinho, cheia de muitas vitorias que houve na Índia, debaixo d'aquelle signal da cruz, reinando el-rei D. Sebastião nosso senhor, e depois de estar tudo quieto, começou mestre fr. Sebastião Toscano sua pregação, da qual não dou razão n'estes Commentarios, assim por não fazer grande volume, como tambem por andar impressa.»

Vejamos agora o pouco caso que os frades da Graça fizeram de tão honrados ossos.

Sem comentários:

Enviar um comentário