HISTÓRIA
OS DOMINGOS DE BEMFICA
As romarias foram, desde tempos immemoriaes, uma feição nacional do nosso povo, e algumas d'ellas tem sua origem tão poetica, motivam- se em gratidão piedosa, em epocha de alguma tribulação memoravel, que embora os tempos hajam sepultado muitas d'ellas no esquecimento e desuso, a historia deve- lhes perpetuar a lenda, e não deixar que de todo se apaguem as noticias do viver e crer de nossos avós.
Algumas d'estas devoções populares estão historiadas nas chronlcas monasticas, outras em escriptos avulsos; muitas porém nunca passaram da tradição oral, e bastantes tem já desapparecido com os sanctuarios e logares, que o correr dos seculos e os acontecimentos sociaes tem levado diante de si.
De muitos d'estes devotos passatempos de nossos avós iremos dando noticia, recolhendo as origens, aneedotas e tradições que andam dispersas, e como que sepultadas nos impressos e manuscriptos fosseis, hoje inteiramente fora do alcance dos leitores por sua carestia ou raridade.
Quando valer a pena, acompanharemos a lenda, ou a narrativa, de alguma estampa que interesse á arte, á historia, ou ao conhecimento dos usos e costumes dos nossos antepassados.
A devoção e romaria dos domingos de Bemfica ou de Maio, ao convento onde se venera S. Domingos, advogado e protector dos que andam sobre as aguas do mar, foi das mais populares que houve nos arredores de Lisboa. Extinguiu-se com os frades; mas agora, pela compra do convento que ultimamente fez S.A. a Serenissima ínfanta D. Isabel Maria de Bourbon, nos dizem se váe restabelecer a antiga romaria.
Começaremos pois a serie das «Devoções e lendas religiosas» antigas e modernas de Portugal, com a dos domingos de Bemfica, ou de Maio, porque nos fica ao pé da porta, da cidade, bem entendido.
Por boa estreia e melhor fortuna, temol-a referida pela mais bem aparada e elegante penna dos mestres antigos da nossa lingua, pela de Fr. Luiz de Sousa, que não ha desejar nem gostar mais.
Na «Historia de S. Domingos», t. II, pag 153, depois de concluir a da fundação do convento de Bemfica, nos conta o bom frade a origem dos domingos de maio, por estes termos tão suaves como familiares:
«Em casa moderna, como esta he, que passa pouco de duzentos annos, não pôde haver grandes antigualhas; todavia, as que forem de tanta idade como ella, já merecem memoria e honra, por lhe cahirem em proporção. Diremos algumas das mais notaveis. Seja a primeira a veneravel figura do nosso Padre S. Domingos, venerave, não pela riqueza da materia, nem primores da esculptura, mas por devoção de todo o grande povo de Lisboa, que pelo mez de maio despeja a cidade pelo vir buscar, e offerecer-lhe suas orações. E ainda que em materia de romarias tem muito poder o costume, ou a companhia, ou a imitação, não pode ser tanta a constancia em aturar esta, sem haver causa que a sustente: quero dizer, sem os que a continuão sentirem algum beneficio no que pretendem com ella.
He este santo um dos 17 que chamamos auxiliadores, e para todas as necessidades da vida grande valedor diante de Deus. Mas aqui particularmente he buscado dos que esperam por parentes ou amigos ausentes, e que andam sobre as aguas do mar; e dizem que começou a devoção no mesmo tempo que a imagem entrou no convento, referindo-a ao successo que diremos.
Partia para Alemanha certo mercador, quando os frades começavam a povoar a casa. Assentou el-rei D João I com elle, que lhe fizesse lavrar n'aquellas partes, em fino alabastro, uma imagem do santo para a dar aos frades. Não foi descuidado o mercador; fez a imagem e embarcou-se com ella. Na viagem levantou-se tormenta, e foi o perigo tal, que os que mandavam a via se deram por perdidos, tratando cada um dos remedios da alma, mais que do governo da embarcação. N'este estado foi instincto do ceo lembrar-se o mercador da peça que trazia. Cheio de animo e confiança, deu vista della aos companheiros; exhortou- os a se encommendarem ao santo; esforçou-se a devoção com a necessidade; mostrou o Senhor que a intercessão do seu servo dava vida e salvação aos affligidos; porque n'um momento cessou a furia dos ventos, abrandou o mar, e correram com bonança até tomarem a barra de Lisboa, e entrarem no rio. Celebrou-se o suecesso como verdadeiro milagre, e tanto que sôou na cidade, como sua vida e substancia pende de navegações, obrigou o povo a estimar e buscar a imagem; e porque constou que valêra aos navegantes que a traziam em um domingo de maio, dura a romagem em taes dias. A figura é pequena, o sitio pouco atilado, e, pera menos policia, de barba e circilho dourado, pela qual he conhecida e nomeada no vulgo. Tem seu assento no altar do Rosario em um nicho dourado, que fica aos pés da Senhora.
He ponto de considerar, e digno de ficar em lembrança, que dando de ordinario similhantes concursos occasiões a brigas e descomposturas, não ha ver nunca n'este nenhuma.»
Chegou a tal ponto a concurrencia, que se julgou indispensavel a instituição de uma feira n'aquelle sitio para abastecimento dos romeiros; e a requerimento do prior e mais frades do convento de Bemfica, lh' a concedeu el rei D. José por alvará de 2 de maio de 1751.
ARCHIVO PITTORESCO SEMANÁRIO ILLUSTRADO 3º ANNO 1860
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