domingo, 23 de janeiro de 2011

Humor: Provinciano na Lisboa de 1860





Humor

O Provinciano Analfabeto


0 provinciano analfabeto é um ser que na vasta cadeia dos fenómenos animais ocupa um dos primeiros lugares.

Recebendo á nascença com heróica valentia, a primeira e impetuosa camada de ar que lhe entra nos pulmões, bem como a estranha impressão da mudança de temperatura, que deve ser fresca de mais para quem sai de uma espécie de forno, nasce sem chorar, dando assim logo persuasivas mostras do que há de vir a ser, nas proezas com que mais tarde humilha e ridiculariza o raquitismo e precauções higiénicas dos alfacinhas.

Em desforço porém das regalias aristocráticas, o nascimento do provinciano opera-se, como facto moral, tão obscuramente como o de um verme subterrâneo, e á excepção da sua família e aldeolas convizinhas, ninguém mais até á consumação dos séculos, tem conhecimento do individuo, salvo se aparece na cidade, onde a sua presença desperta espontâneamente todas as curiosidades, atrai todas as atenções, e o seu trato constitui as supremas delicias dos amadores do género.

Respirando o ar livre dos campos; criado com bom leite; desmamado com a clássica e desenjoativa boroa de milho; passando longos interregnos da alimentação e do repouso nocturno, com a pele sobre o fresco chão de puida pedra; levando a miúdo a tranca da porta; bebendo da cristalina agua fontes agrestes; costumado de pequenino a ajudar laborioso pai, que segue á risca o rifão - «o servidor do mestre é o próprio mestre» - nos misteres práticos da lavoura; banhado pelos raios ardentes de um sol constante, o provinciano atinge o desenvolvimento colossal, as cores da camélia vermelha, a robustez e força muscular d'Hercules, uma rigidez e impenetrabilidade de cutis á prova d'aço.

O provinciano analphabeto é um homem literalmente patriarcal. Os hábitos, costumes e conhecimentos de seus avós representam para ele o mesmo valor moral e utilitário que o Alcorão tem para os mouros, de quem é moralmente, á parte a crença religiosa, um retrato fidelíssimo.

Além do alcance dessas costumeiras e abusões, não vê nem quer ver uma polegada.

Por isso não admira que o provinciano agricultor analphabeto seja o homem que menos sabe do seu oficio.

Falai-lhe no lavadouro de raízes de Crosskill, no cilindro de Pernollet, na locomóvel de Garrett, em todos esses portentosos ensaios do engenho humano para melhorar a sorte do lavrador e das povoações, alargar á agricultura a esfera dos recursos, apressar e desenvolver a soma dos resultados; falai- lhe n'essa admirável ciência do amanho, que transforma o solo mais árido n'uma mina inesgotável e permanente de frutos variados, n'essa deusa da abundância, que com uma mão afasta o flagelo da carestia, e com a outra derrama a riqueza e a felicidade pelas nações; falai-lhe nas máquinas c conhecimentos lá fora triviais c de absoluta necessidade, como a sonda de Palissy, a importância da sondagem, os aparelhos de Guibal, o apurador de Champion, o laminador de Clayton, as charruas de Parquin, e vereis com que pretensioso e convicto desdém vos ouve esse falar grego para ele; como depois, n'uma estirada dissertação, imagina eclipsar todos esses melhoramentos; como, finalmente, tomando o aspecto e tom irritado dos doutores do antigo sinédrio judaico, vos taxa tudo de artificiosos meios de roubar-lhe a bolsa, e concluí com o dito sacramental -« meus pais não precisaram de nada d' isso para viver, toda a vida se arranjaram com o que acharam: nós havemos de viver também.»

Não está mais adiantado que o árabe cultivador do Egipto ou o selvagem da América.

A pinta é a sua mais rápida e proficua sondagem; desfazer entre os dedos um torrãosinho, a mais fecunda analise e segura experiência, o seu tira-duvidas, por excelência; a enxada e o clássico arado dos avós, o suprasummo dos instrumentos agricolas; as patas do boi, as suas mãos o tempo e o sol, os unicos agentes complementares.

Não obstante, é pacifico, e nada lhe altera os habitos normaes, se qualquer circunstancia estranha aos seus olhos, ou á sua intelligencia lhe não toca pela porta. Mas se passa um aerostato por sobre os seus terrenos, ou bispa um engenheiro com instrumentos topographicos e traçando planos, então é que se torna mais temivel do que um hippopotamo ferido ou leôa enraivecida.

Supersticioso como uma beata velha, tão leigo na construcção politica das sociedades civilisadas como um indigena dos sertões virgens da Africa; tendo como os indios, a bossa da phantasia dos espiritos aereos; cioso da independencia como os pretos d' Angola, imagina logo que um genio diabolico lhe váe devastar as searas, comer os fructos, decepar as arvores, e empestar as terras; que um artificioso, um magico, um feiticeiro do governo traça meios engenhosos de mais larga e indefinidamente o roubarem, pela accumulação suecessiva de novos tributos, ou de lhe eliminarem a propriedade com uma rede de estradas e vias ferreas.

Então coitado do aeronauta ou do engenheiro que se lhe expozer ao alcance! Não lhes valerão elucidações, nem lagrimas, mesmo porque não terão tempo para isso. Estão em tribunal de justiça á mourisca, em parlamento onde se não admittem explicações. Para estes inimigos inflexiveis, e dos mais manhosos que o espirito da libertinagem pôde originar, não ha questões prévias, declarações, amnistias, nem protocolos possiveis!

O provinciano analphabeto não aprendeu a ler e contar, porque seus paes e avós passaram sem isso. Calcula de cabeça, no que tem certo orgulho; conta pelos dedos, arithmetica, em verdade, duplamente vantajosa, porque e além de visivel, palpavel. Mofa, por isso, dos patricios que mandam os filhos á eschola; mas muda logo de opinião se a fortuna o assopra! N' este caso, adeus tradicões, adeus costumes, adeus habitos, adeus opinião politica de familia, e o que é mais, passa de extremo a extremo. Na variadissima e quasi illimitada serie dos misteres sociaes, já não vê para seus filhos senão um capello de doutor, uma cadeira de deputado, ou uma farda de barão, e nos bons tempos dos frades um habito franciscano, cuja eliminação do catalogo dos parasitas humanos lhe não pôde ainda passar da garganta para baixo!

O profundo desprezo, o odio hereditario que em demasia nutria contra as casacas, váe-se-lhe de rojo com a miseria, e eil-o a encommendar logo logo ao mais afamado e barateiro algibebe, ao Nunes, por exemplo, uma encadernação completa, sobre-casaca de panno inglez, colete de veludo de lã côr de ginja com grandes ramos pretos, e calça de casimira dobrada, em quadradinhos, tudo obra de dura e meio moda, remettendo, ao mesmo tempo, a medida da sua cabeça para o melhor chapeleiro, que o correspondente substitue por um adelo, onde lhe compra o mais colossal dos quicos de quarenta annos d'edade, milagrosamente escapado á furia de muitos carnavaes.

Com este novo e elegante uniforme, que lhe fica a matar, grilhão ao pescoço, e annel de chapa no dedo indice, é que oprovinciano abastado apparece em Lisboa, olhando a todos por cima do hombro, com um sorriso desdenhoso digno da muita roupa suja que ainda por ahi resta dos antigos fidalgos, e perguntando na Praça das Flores, onde fica por alli a memoria do Terreiro do Paço!

É este o typo ridiculo do provinciano analphabeto e enfatuado, que nós tentámos representar na figura que para desenfado desenhámos, e hoje divulga o Archivo.

Ao provinciano, que é o avesso d'estes taes brutamontes, melhor cabe o nome, menos criticado, de provincial.

NOGUEIRA DA SILVA






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