
História da Lotaria e Portugal
ORIGEM DA LOTERIA DA MISERICÓRDIA
III
Por insinuação do marquez de Pombal, instituiu-se em 1771, n'esta capital, uma sociedade para a subsistencia dos theatros da corte, formada pelos homens de negocio da praça de Lisboa, da qual eram directores e caixas, Anselmo José da Cruz Sobral, Alberto Mayer, Theotonio Gomes de Carvalho, e Joaquim José Estulano de Faria. Com as instrucções para o regimen dos theatros, foi ella approvada por alvará de 17 de julho do mesmo anno, referendado pelo marquez.
Esta sociedade é quem dava por empreza o theatro do Salitre e rua dos Condes, unicos que então havia para representação das operas italianas e dramas nacionaes, porque o do Bairro Alto, no pateo do Patriarcha, a S. Roque, era então para espectaculos menos artisticos.
Uns vinte annos durou a associação, mas poucos beneficios fez á arte dramatica, intuito com que a promovêra o marquez de Pombal, cujo ministerio não chegou a durar seis annos depois della creada.
Da tempera do ousado estadista era quem abriu entre nós a scena em que ainda hoje assistimos á opera.
O desembargador Manique, que, na qualidade de intendente geral da policia, tinha a seu cargo a inspecção geral dos theatros, envergonhando- se da mesquinhez dos que existiam, conseguiu em 1792, que os negociantes e capitalistas Joaquim Pedro Quintella, Jacintho Fernandes Bandeira, Polycarpo José Machado, e Anselmo José da Cruz Sobral, emprehendessem a edificação de um theatro digno da capital do reino. Foi esta a origem do theatro de S. Carlos, que estes negociantes mandaram construir á sua custa, fazendo doação da propriedade d'elle á Casa Pia, por obsequio ao mesmo intendente, fundador e director de tão util estabelecimento. Esta doação, porém, tinha a clausula de se verificar depois de reembolsados os socios da somma que dispendessem.
Ignoravamos que a Casa Pia tivesse tambem contribuido para a edificação do theatro de S. Carlos, porque apesar de haver tanta escripta a respeito d'este notavel monumento, nunca tal se mencionou. Só agora o ficámos sabendo pela declaração do proprio intendente, no officio inedito que publicámos.
Dada esta explicação para melhor intelligencia do citado officio, continuemos a historia da loteria.
Alcançando o intendente que participasse tambem a Casa Pia do benelicio que fôra concedido á Misericordia, se ficaram alternando entre estes dois estabelecimentos as loterias annuaes, fazendo cada uma d'estas administrações, separadamente, a venda dos bilhetes e a extracção dos numeros.
Em quanto Manique governou a Casa Pia, foi a loteria rigorosamente fiscalisada; mas depois as mancommunações, os roubos e extravios, foram inauditos. Cremos que outro tanto aconteceu na casa da Misericordia; mas a respeito d'essa, ainda por ora não encontrámos documento tão insuspeito como o que hoje apresentámos tocante á Casa Pia.
A tal ponto havia chegado a dilapidação do producto da loteria, que em 1833 escrevia o administrador da Casa pia ao ministro do reino o seguinte:
«Nunca me aproveitei do alheio, nem consinto, nem consentirei jámais que outrem o faça, em objectos que estiverem debaixo da minha fiscalisação. Pelo que, e de modo que possa chamar a benefica attenção de v. ex.ª para a minha conta de 25 de janeiro do anno proximo passado, torno a dizer, que os fundos destinados peça augusta piedade para a sustentação da desvalida orphandade asylada na real Casa Pia, se vão progressivamente dilapidando, pelos extravios e sua pessima administração. Conta de sacco e arbitraria, eis a maneira por que se governa este interessante estabelecimento, e uma prova d'esta asserção (entre muitos e mui escandalosos factos) oflereço á consideração de v. ex.ª no seguinte:
O producto das loterias, que devera ser destinado para a sustentação e educação dos desgraçados orphãos, e para o pagamento dos enganados credores, se converte vergonhosamente a favor de certos interessados do dito estabelecimento. Em 1830 se dispenderam 3 378$000 réis em gratificacões; em 1831 4 729$200 réis; e em 1832 5 660$000 réis; fazendo o total 13 267$600 réis, como mais explicado se mostra na nota junta, extrahida das contas dadas pelo administrador. Cumpria-me, pois, evitar taes excessos; tirar ao administrador a arbitraria faculdade que se arrogou de dispor do dinheiro do cofre; obstar á falta de zelo com que se faz a compra dos generos; remediar o abuso de se dar pão alvo aos alumnos, quando deve ser de toda a farinha; fazer o fornecimento do pão por arrematação, e não por um ajuste particular, e perpetuamente com a mesma pessoa, etc.
Obstando porém o regio aviso de 19 de septembro ultimo, pelo qual S.M. me ordenou que não altere em coisa alguma o estado em que se acha a Casa Pia, e a falta de deliberação da indicada conta de 25 de setembro, lanço mão do unico recurso que me resta, e é o d'esta nova representação para desencargo da minha consciencia, para que em tempo algum se possa dizer que eu consenti em taes excessos e prevaricações; convindo por isso que v. ex.ª queira fazer me a honra de levar o exposto ao soberano conhecimento de S.M. - Lisboa 8 de fevereiro de 1833. - Ill.mo e Ex.mo Sr. Conde de Bastos.
1ª parte em Antikuices
2ª parte em Antiquices
4ª parte em Antikuices
ARCHIVO PITTORESCO SEMANÁRIO ILLUSTRADO 3º ANNO 1860
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