HISTÓRIA
MANGUALDE E A SENHORA DO CASTELO
Em distancia de 1 1/2 quilometro, pouco mais ou menos, ao NE da vila de Mangualde de Azurára da Beira, distrito de Viseu, e sobre o cume de um elevado e escarpado monte, crivado de rochedos, e fazendo face á mesma vila, se acha, como coroando-o, edificado o elegante e magnifico templo novo dedicado a Nossa Senhora do Castelo, erigido pelo zelo e devoção da ilustre casa dos Paes de Mangualde; á qual pertence actualmente a perpetua administração dele, e d'onde saiu todo o suprimento de despesas e serviços para aquela obra, porque a respectiva confraria carecia dos meios para tão dispendiosa construção.
Em Janeiro de 1819 se deu principio a este grande edifício. Suspendendo-se os trabalhos nos dois seguintes anos, foi depois continuado com o mais decidido empenho, e inteiramente á custa da referida ilustre casa, até que em 1837 se ultimou o templo com dispêndio de mais de 60 000 cruzados.
É todo de cantaria, e a sua arquitectura simples mas elegante, tem merecido os louvores dos entendedores, e é tido como um dos notáveis do reino, e o superior da província. A abobada de todo este templo é guarnecida de belos ornatos de estuque. Além do altar-mor, aonde está a imagem da Virgem, tem mais dois aos lados do arco, um dedicado a Santa Ana, outro a S. José, e neles se vêem dois óptimos painéis a óleo, obra do sr. Antonio José Pereira, insigne artista de Viseu. Tem o interior do templo, não compreendendo sacristia e outros ao acessórios, 24,2 metros de comprimento, sendo 9,8 metros da capela mor, e 14,4 metros da igreja, e de largura 5,8 metros na capela mor e 7,9 metros na igreja; a altura da torre, desde o pavimento, é de 38 metros. Do alto d'esta torre, aonde se sobe por uma bela escada em espiral, e aonde em dias festivos tremula uma bandeira própria, se descobrem serras, montes, planícies e povoações a uma distancia imensa; é um rico encantador e admirável panorama, que se não pôde descrever.
Em redor do templo há um adro espaçoso, guarnecido de parapeito com assentos de espaço a espaço; d'alli desce-se por uma bonita escada de dois lanços em frente do templo, para um plano assas grande e arborizado, ficando a um lado da escada uma porção de terreno com rochedos, e por entre eles plantadas videiras e oliveiras, e do outro lado uma hospedaria para acomodação dos romeiros.
A alguns passos ao nascente d'este plano, existe uma cisterna d'agua nativa, ao fundo da qual se desce por uma escada mui bem construída em espiral de 36 degraus. É muito fresca e saborosa aquela agua, e nunca seca. Daquele plano é cortada a descida da montanha por uma espaçosa escadaria de 163 degraus de 1,1 metros de largo, em declive, tendo no corte 0,22 metros de alto, de espaço a espaço interrompidos por pequenos terreirinhos, e estes interpoladamente, uma capelinha, sendo ao todo quatro, dedicadas a Nossa Senhora sob os títulos e Conceição, Encarnação, Visitação e Assunção, com belíssimas imagens romanas. Toda a escadaria de um e outro lado é guarnecida de árvores, que suavizam o cansaço da subida, e fazem encantadora vista, ficando ao fundo do monte planos e férteis campos, e prados sempre cobertos de verdura. A solenidade festiva d'este templo é no dia 8 de Setembro, dia da Natividade, sendo tão grande o concurso e afluência de devotos de longínquas povoações, que excede o ajuntamento ao do grande mercado mensal d'aquella vila.
Consta por tradição antiquíssima, que o antigo templo, que foi já demolido, e que era edificado no plano arborizado já referido, fora na ocupação das nações barbaras, mesquita de moiros, convertida depois da sua expulsão em templo do verdadeiro culto, por motivo da aparição de uma imagem de Nossa Senhora n'aquelles sítios; é certo, porem, que ainda existem, por detraz do novo templo, ruínas de um castelo, cujos materiais e forma testemunham mui remota antiguidade; e crê-se que daí veio o titulo de Nossa Senhora do Castelo, com que hoje se venera ali a Virgem.
Estão presentemente concluídas aquelas obras, para o que muito concorreram as avultadissimas esmolas, legadas para esse fim, pelo comendador de Malta, Miguel Paes, e seu irmão, cónego da Sé de Coimbra, José Paes, ambos falecidos em 1837. A condessa d'Anadia, D. Maria Joana, ofereceu na ocasião da trasladação da milagrosa imagem do templo antigo para o novo, um rico e inteiro paramento branco, bordado a oiro e seda, para serviço do templo, e dois mantos riquissimos para a Senhora.
É tradicional ter alli sido castelão um moiro chamado Zurar, d'onde viera ao concelho o nome de Azurar ou Azurara, repetido no foral del rei D. Dinis, e reforma do mesmo por el rei D. Manuel, em 1514, e que, para expulsão d'aquelle moiro, muito concorreram os habitantes de Linhares, por conselho de outro moiro convertido á verdadeira fé, que depois foi alcaide daquela vila. Julga-se ser esse o motivo por que a camara e habitantes da cidade de Viseu, indo todos os anos áquella ermida na segunda oitava da pascoa da Resurreição, por ocasião do cumprimento de um voto, curvavam e agitavam seu estandarte no alto do monte, para a parte da dita vila de Linhares, como em grata recordação dos valiosos serviços de seus moradores. Há menos de 40 anos que se tem deixado de fazer esta solenidade, sendo a câmara e povo de Viseu desobrigados daquele voto.
A vila de Mangualde tem perto de 500 fogos, e está dividida em dois bairros, a parte mais antiga ao poente, e a outra ao nascente. Está edificada em um plano; é bem situada, saudável. agradável e vistosa; tem bons terreiros ou largos, em que se faz o melhor mercado mensal da província. Tem boas casas, bons chafarizes, e bonito templo da Misericordia, onde se vêm preciosos quadros de pintura romana. Tem uma bela casa de câmara municipal, sendo tão vasto edifício que acomoda, além da sala das sessões da câmara, o tribunal de justiça, administração do concelho, aulas de ambos os sexos, etc. O mais notável n'esta vila é o sumptuoso e magnifico palácio dos Paes, hoje do conde da Anadia. É, sem duvida, um dos melhores edifícios do reino, reunindo uma grande quinta muito aformoseada, com pomares de deliciosas frutas, bonitos jardins e quatro estufas onde vegetam o ananaz, a bananeira, e outras árvores e plantas tropicais. Pegado á quinta, segue-se uma extensa mata arruada, aonde se encontram diversos objectos de recreio, muita caça, e se admiram árvores seculares. Finalmente é uma vivenda deliciosa, aonde se encontra tudo quanto seja necessário á vida, tanto para recreio como para utilidade, e o gozo de tantas delicias faz despertar ideias de um paraíso. Tal é a amenidade daqueles lugares.
MIGUEL XAVIER MERCIER D'ALMEIDA
ARCHIVO PITTORESCO SEMANÁRIO ILLUSTRADO 3º ANNO 1860
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