História
Procissão do Ferrolho
Penha de França
Lisboa
III
O giro que fez esta procissão tem sua curiosidade, porque sobre ser muito longo, passou por alguns sitios que tão outros são hoje.
Eis como a descreve o manuscripto achado fr. Carlos de Mello:
«Fez-se esta procissão em o dia 19 de de 1625. Saiu da egreja velha ao meio dia, e tomou pela costa abaixo que está por detraz das capellas de ambas as egrejas, da parte do poente; foi sair ao chafariz de Arroios, caminhando por todo o campo de Santa Barbara até á egreja aos Anjos; d'ahi foi direita até ás portas da Mouraria, e voltou para o postigo da Palma, e passando a rua nova, assim chamada, se foi ao Rocio, entrou pela rua dos Escudeiros, atravessou-a toda, e assim a dos Douradores e ourives do Oiro, até ir dar na rua Nova que chamam dos Ferros; esta passou tambem, e veiu pela Padaria acima; entrando pela porta de Ferro passou pela Sé, e levando a rua direita que váe para S. Jorge, S. Martinho, Limoeiro e Santiago, foi sair pela porta do Sol, d'onde, dando volta, levou o caminho para S. Thome e Santo André; d'alli, seguindo pela calçada acima, chegou ao postigo de Nossa Senhora da Graça, e d' ahi tomou o caminho direito por entre aquelles olivaes até á casa nova, onde a sacratissima imagem foi posta.»
Saiu esta procissão com oitenta e nove guiões (irmandades), e pelo caminho se lhe aggregaram quasi outros tantos. Saiu com cincoenta e sete cruzes, durante o caminho se metteram n' ella mais sessenta e uma. Saiu levando noventa lanternas de prata, recolheu com cento e vinte e quatro. Saiu com três ternos de charamellas, e vieram festejar e a Senhora mais quinze.»
Acompanharam-n' a os soldados do castello com e o guião de Santa Barbara; assim como gente sem conto com cirios e muitas danças, chacotas, outras folias que n'aquelles tempos faziam parte prestitos religiosos.
Em summa foi rara a pessoa de qualidade e estrangeira, que não acompanhasse a da Penha para a sua nova casa; juntando isto os repiques de todos os sinos da cidade, tantos que não havia quem se ouvisse.
Dizem as memorias d' aquelle tempo, que não obstante ser a nova egreja muito grande além formosa, não havia poder entrar n' ella aos sabbados, domingos e dias santos sem muito trabalho, sendo necessario esperar que uns saissem para entrarem outros.
Com promessas e offertas, principalmente da gente do mar, se renovou primorosamente a egreja em 1754; mas no anno seguinte, sobrevindo o fatal terremoto, a derribou, fazendo-se então a que actualmente existe, com as esmolas dos devotos da Senhora. É quasi toda de tabique, e importou n'uns quinze mil cruzados.
Diremos agora porque se fazia esta procissão noite, e lhe chamavam popularmente do ferrolho.
Como o voto foi feito no tempo de peste, e de verão, para evitar o sol se tomou aquelle arbitrio, o qual se continuou. Uns dizem que pelo caminho ser longo e as calmas grandes no mez de agosto, em que se fazia esta procissão. Outros que por ir a maior parte da gente descalça, bom era que se conservasse o costume de se fazer de noite, por causa dos envergonhados.
O chamar lhe o vulgo procissão do ferrolho, era porque o rapazio, que em grande numero acompanhava esta romagem, ia correndo o ferrolho de quantas portas encontrava por tão longo transito, fazendo d'isto grande galhofa, visto que n'aquele tempo quasi todas as portas se fechavam com ferrolho por fora. E ainda temos a phrase proloquial «tocar no ferrolho», por bater á porta.
A principio esta procissão saia de Santo António da Sé á meia noite em ponto; mas depois era madrugada, de sorte que chegasse á Penha a horas de se poder celebrar a missa promettida.
A camara dava de almoçar aos devotos mais conspicuos; e parece que dos roes das despezas d'este voto, que existem no archivo da camara, se deprehende que o almoço constava de succulentas fatias de presunto de Lamego, pão de Meleças, e bom vinho do Lavradio.
Como os camaristas ficavam para almoçar, a procissão desfazia-se na Penha, e o Santo Antonio vinha para a sua egreja dentro de uma canastra às costas de um moço bem abafado. Isto escandalisou um certo mestre dos meninos do côro (estes meninos é que levavam o andor do santo), de appelido Andrade, o qual se offereceu para trazer o para a sua egreja, de sege. E assim o cumpriu por muitos annos.
A ultima vez que se fez a procissão do ferrolho foi em 1832. Consta- nos que a irmandade da Senhora da Penha tentou restabelecel'a, mas a camara pediu ao cardeal patriarcha a commutação d'este voto por uma missa cantada na egreja da Pena, a que os vereadores assistem, commutação que lhe foi definitivamente concedida por provisão de 18 de julho de 1857.
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