segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

História: Procissão do Ferrolho, Penha de França (2)



História

Procissão do Ferrolho

Penha de França

Lisboa

II

Havia n'esta cidade um religioso da companhia de Jesus por nome padre Ignacio Martins, tido de todos e reputado geralmente por santo, porque no seu modo de vida era um raro exemplo de virtudes, a cujo cargo estava o ensinar aos meninos e fieis christãos a doutrina catholica, no que era tão sollicito, que em nenhuma outra coisa mais trazia o cuidado que n'esta obra meritoria para Deus; e assim como na vida foi reputado por santo, em sua morte muito mais, em tanto que fallecendo na cidade de Coimbra, onde hoje está sepultado, foi acclamado por tal.


Era este padre mui particular devoto de Nossa Senhora da Penha de França, do reino de Castella, e comsigo trazia de ordinario imagens suas; como grande devoto da Santa Virgem, desejava que n'este reino e cidade houvesse casa de sua invocação; e assim tendo elle noticia, ou fosse por inspiração ou revelação divina, ou pela relação de pessoas que o tivessem alcançado do dito Antonio Simões (que elle lh'o não disse como o affirma) tratou com elle sobre esta materia, e o exbortou com palavras a ella apropriadas, a que proseguisse tão excellente obra, e juntamente lhe persuadiu que a imagem que pretendia fazer, fosse da invocação da Penha de França, relatando-lhe para o trazer e mover a seu intento, sua historia, e as muitas mercês que tinha feitas e de continuo fazia á gente portugueza.

Foram bastantes as persuasões d'este padre, para que o dito Antonio Simões viesse n'aquillo que elle e dizia e pedia; e assim lhe prometteu não só que faria a dita imagem da invocação da Penha de França, mas ainda de lhe fazer casa sua propria; e como o dito padre nenhuma outra coisa mais desejava, nem trazia no sentido, lhe agradeceu este bom proposito, e mostrou com historias e muitos exemplos, o quanto a Virgem Senhora Nossa sabia pagar com muita vantagem os serviços que seus devotos lhe faziam; e juntamente o applicou a que pozesse em effeito o que promettera; no que resoluto o dito Antonio Simões, mandou fazer a oitava imagem com a invocação da Penha de França, a qual feita por ainda não ter casa propria, a poz, como em deposito, na ermida de Nossa Senhora da Victoria, d'esta cidade, em companhia de outra de S. João Baptista, a que depois tambem fez casa propria, não se descuidando com isto de fazer a desta Senhora, como tinha promettido.


Feita a imagem com esta invocação da Penha de França, assim como antes deu cuidado ao dito Antonio Simões a invocação que havia de pôr á oitava imagem da Senhora, assim lh'o deu tambem o logar em que lhe havia de edificar a casa que lhe tinha promettida. Não o achava accommodado a seu intento, nem dentro na cidade, nem fora d'ella nos limites em que pretendia fazel' a; e andando assim pensativo e cuidadoso, succedeu que um Antonio Ferreira, doirador del-rei, o levou um dia a Valle de Cavallinhos, mostrar-lhe uma quinta sua, que alli tinha, para lh'a dar, contentando-se d' ella e do sitio. Não lhe contentou, e agradecendo a boa vontade ao dito Antonio Ferreira, se tornou Antonio Simões pelo valle acima até ao logar em que agora está edificada a dita casa, que então se chamava Cabeça de Alperche. Posto no alto d'elle, virando-se para uma e outra parte, sentia no coração uma certa alteração, e na alma uma inquietação divina, incitadora uma e outra coisa de que procurasse fazer n'elle a casa que pretendia.

Picado d'estes santos motivos, e informado de que aquelle sitio era de Affonso de Torres de Magalhães, se foi ter com elle, levando comsigo a dita imagem de S. João Baptista; tratou com elle do que pretendia, e pedindo- lhe em resolução que lh' o quizesse dar para fazer a dita casa, elle disse a Lopo Seitil, e Pero de Seixas, e outros homens que presentes estavam, que era o que lhes parecia d'aquella pretenção. E elles lhe responderam, que lhe désse o sitio para a dita casa, e que se se não fizesse ou não se acabasse, que ahi lhe ficava a sua terra. E então lhe respondeu elle ao dito Antonio Simões, que se fosse muito embora, que elle e Balthasar de Faria, almotacel mor, e Balthasar de Sá, tinham determinado de fazer alli uma ermida á honra de Nossa Senhora, mas que se resolveria, e tornasse outro dia pela resposta.

Foi-se o dito Antonio Simões, e por ter occasião de tornar mais cedo, ou por inspirarão divina, deixou a dita imagem de. S João Baptista em casa de Affonso de Torres, ou como em penhor e arrefens, de que dando- lhe elle aquelle sitio, a Senhora lh'o saberia bem gratificar. Suecedeu, pois, que n' aquella mesma noite deu ao dito Affonso de Torres uma dor de colica mortal, de que era muito maltratado. Apertou-o infinito, e não havia remedio humano que aproveitasse o que vendo; D. Constança de Aguilar, sua mulher recorreu ao divino, temendo o grande perigo em que seu marido estava, com muita afllicção e devoção se encommendou á Virgem da Penha de França, tomando-a por intercessora, para que seu unigenito Filho tivesse por bem de o livrar de tão grande mal, e do perigo em que estava, promettendo-lhe o logar de que se tratava para casa sua. Foi coisa maravilhosa, que feita a promessa o dito Affonso de Torres se ergueu no mesmo instante são e salvo, como que se nunca tivera nada;, e em amanhecendo o dia seguinte mandou chamar o dito Antonio Simões, ao qual, chegando, lhe contou o caso, e com elle se foi escolher o sitio que lhe parecia mais accommodado para fazer a ermida, pedindo- lhe muito a não quizesse fazer senão defronte de suas casas, para sempre a ter diante de si, como em effeito se fez.

Este sitio parece que tinha a Senhora escolhido para a dita casa d'esta santa invocação; o que se alcança bem assim de ella só contentar ao dito Antonio Simões, e n'elle ter desejos ardentes de se fazer, como por o mesmo Affonso de Torres ter determinado de n'elle fazer casa a Nossa Senhora, como o declarou ao dito Antonio Simões, como pelo successo que lhe aconteceu; e tambem porque indo o padre Iguacio Martins por parte d'onde se via o sobredito sitio, disse para certos meninos com que ia fallando, como em prophecia (muitos tempos antes de n'elle se fazer a dita casa: « Vedes vós aquelle monte? pois ainda se ha-de fazer n' elle uma casa de Nossa Senhora»: como outrosim, porque o P. Monserrate, companheiro do dito P. lgnacio Martins, indo para a quinta que os padres tem em Valle de Cavallinhos, chegando ao logar onde agora está a primeira cruz, junto ás casas do dito Antonio Simões, disse a um homem velho que com elle ia, que no dito monte se havia de fazer uma casa de Nossa Senhora muitos tempos antes que d'ella se tratasse.


Ajustados d'este modo, a 25 de março de 1597 se lançou a primeira pedra á fabrica da ermida, que modestamente se acabou em maio do anno seguinte, e para alli foi trasladada a imagem da Senhora da Penha, com solemne procissão, que agenciou a industriosa devoção de Antonio Simões.

Na casa nova começou a ser mais buscada e visitada a Senhora; até que em 1599, sobrevindo o mal da peste, que dentro em poucos annos, por duas vezes, dizimára horrivelmente os moradores de Lisboa, temerosos de que se repetisse egual calamidade, buscaram o patrocinio da Senhora da Penha de França primeiro os soldados que estavam de guarnição no castello de S. Jorge, os quaes, com suas companhias formadas, se foram offerecer a Nossa Senhora, sollicitando o seu valimento para que os defendesse do mal que já começava a picar na cidade, e a tinha mui sobresaltada.

A este tempo já tinham fugido os governadores do reino, por parte de Filippe IV. O presidente do senado da camara, que era D. Julianes da Costa, e os mais do governo da cidade, procuravam com remedios humanos atalhar o mal. Porém fiando mais na efficacia da intercessão da Senhora que dos antidotos que os medicos applicavam, resolveram invocar a piedade divina, tomando por medianeira a Senhora da Penha de França.

Juntos os vereadores em camara, com muita gente do povo, fizeram o voto constante do seguinte:

Assento que se fez em Mesa de Vereação a 28 de janeiro de 1599, por causa da peste que assolou esta cidade de Lisboa

«Que a cidade faz voto a Nossa Senhora da Penha de França, de que lhe fará a sua capella com seu retabolo, e lhe dará um ornamento bem feito, como á cidade parecer; e que tanto que ella for servida alcançar de seu bento Filho saude para esta cidade, lhe fará uma procissão, que sairá pela manhã muito cedo da nossa cgreja e real casa de Santo Antonio, e na dita procissão se levará a sua imagem á dita casa, na qual irão o presidente, vereadores, e mais officiaes da mesa, e cidadãos que quizerem descalços, e todos levarão suas varas n'uma das mãos e cirios na outra, os quaes ficarao de esmola.

A mesa irá sem nada na cabeça, e na capella se porá uma divisa; e outrosim promette a cidade, que esta procissão se fará em cada um anno perpetuamente, no mesmo dia em que se fizer pela primeira vez; e no letreiro que se pozer na capella, se declarará tambem esta obrigação. E a ir a cidade descalça promette só por esta vez, porque os que vierem farão o que lhes parecer no ir descalços. E n'esta procissão irão, o presidente e mais officiaes da mesa confessados para na missa que se disser tomarem o Santissimo Sacramento, e até ao cabo d'ella estarão descalços. O presidente, Henrique da Silva - Francisco Cardoso - Luiz Mendes - Domingos Fernandes - Antonio Dias - Gaspar Antunes - Gaspar de Sequeira.»

«E o povo é contente de assignar na promessa que a cidade tem promettido para Nossa Senhora da Penha de França, no que toca á capella-mór ,retabolo, e ornamento para se celebrarem os officios divinos, em o qual se poderá gastar cinco ou seis mil cruzados sómente, e mais não, com declaração, que no arco da capella mór se fará saber como o povo deu esta esmola. - Thomé Antunes - Antonio Dias Fialho - Gaspar de Sequeira - Antonio Dias - Pedro Soares - Bento Soares - Francisco Pereira Ferreira - Lucas Soares - Pedro Mendes - João Dias - Adrião Martins - Domingos Fernandes - AIvaro Gomes - Antonio da Costa.

A primeira procissão se fez a 5 de agosto de 1599. dia de Nossa Senhora das Neves, e no mesmo dia se farão as mais d'aqui em diante. O Presidente, Francisco Cardoso - Luiz Mendes - Gregorio de Moraes - Gaspar Antunes - Gaspar de Sequeira.»

Este voto teve confirmação regia, porque dependia da approvação do soberano poderem-se applicar os impostos municipaes para a edificação n'elle promettida. Escreveu a camara para Madrid, e de lá veiu a seguinte carta regia:

«Presidente amigo, vereadores procuradores da cidade de Lisboa, e procuradores dos mesteres d'ella: Eu El- rei vos envio muito saudar. Recebi a vossa carta sobre o voto que fizestes a Nossa Senhora da Penha de França, cuja casa se vae fundando no contorno d'essa cidade, e pareceu-me muito bem tudo o que fizestes em serviço de Nossa Senhora, de que eu recebo particular contentamento, e hei por bem de o approvar, e dar a licença necessaria para os seis mil cruzados que no dito voto se hão de dispender, se tirarem por imposição do vinho e da carne, conforme ao que assentastes. Escripto em Madrid, a 9 de setembro de 1599. - Rei.»

Feito o voto em janeiro, quando já o contagio ia declinando, se tratou de lhe dar cumprimento fazendo-se a procissão promettida no dia da Senhora das Neves, a 5 de agosto. Saiu a procissão da egreja de Santo Antonio da Sé, onde a camara tinha os seus paços, acompanhando-a muitas communidades de frades e a cleresia da cidade, todos descalços e resando a ladainha. O povo que concorreu á procissão foi innumeravel, não havendo caminho por onde se podesse romper (diz testimunha de vista), nem campo que não parecesse arraial; até pelas oliveiras e outras arvores, e pelos vallados subiu gente; e não obstante haver ainda muita peste, todos n'aquella occasião perderam o medo, fiados na Virgem, a quem se iam offerecer.

Houve missa e prégação, commungando os ofliciaes da camara, que para isso iam já confessados e em jejum.

Fez a camara o retabolo para a capella mór, como tinha promettido. Mas pelo grande concurso de gente que a esta nova egreja vinha, principalmente todos os sabbados, pareceu a Antomo Simões que seria conveniente fazer -se entrega d'ella a alguns religiosos. Resolveu elle primeiro dal'a aos frades de S. Domingos, e para fim tratou com o prior do convento de Lisboa; mas dando conta do seu pensamento ao padre Ruy Mendes, este lhe aconselhou que a désse aos frades da Graça. D'isto se fizeram as escripturas para conservação do direito de ambas as partes.

No poder dos frades agostinhos esteve a egreja primitiva vinte e cinco annos, até que no de 1625, tendo augmentado por tal modo a devoção do povo para com a Senhora da Penha, que não havia já logar nas paredes onde se podesse pendurar nem uma molcta de aleijado, todas occupadas com paineis que representavam as merces que a Senhora fazia, assentaram de edificar egreja nova e ampla, onde o povo se não afogasse e abafasse dentro, como acontecia na ermida. Pozeram os frades mãos á obra, tomando a cidade á sua conta a capella mór, como tinha promettido, e a irmandade da Senhora da Penha muita parte do corpo da egreja, pulpito, portaes e grades, accudindo alguns devotos com suas esmolas para esta obra, Pondo-se mão a ella com estas ajudas, se levantou a nova egreja junto da ermida antiga, concluindo-se no referido anno de 1625, transferindo-se para ella a imagem da Senhora em solemne procissão, que acompanhou a camara da cidade, e percorreu toda Lisboa e arrebaldes, indo tambem o Santissimo Sacramento com muitos folgares e festas.



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