quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

História das Cidades de Lisboa em 1755, parte 2 - A Ocidental e o Hospital de Todos os Santos


História

Lisboa em 1755

2ª parte

Das Cidades de Lisboa: a Ocidental


Consta esta Cidade Occidental de setenta ruas entre mayores, e menores; duas praças de magnifica formosura, a do Rocio e do Terreiro do Paço, formado tudo de nobilissimos palácios, altivas casas, sumptuosos templos, que chegam ao numero de cento e quatro, entre Conventos, Ermidas, e Capellas, sem se contar os das Freguezias. Nelles se celebram os Officios divinos com tanta grandeza, aceyo, e profusão, como em parte nenhuma do mundo Christão, sem que pareça este nosso dizer ponderativo, ou apaixonado, porque são tantas as razoens, que se fundam na evidencia do que succede, que sobeja qualquer prova, que se queira produzir; nem nos valemos da comparação, que se podéra fazer com a pratica de outros paizes Catholicos, por ser recurso o dioso, e porque a grandeza desta verdade não carece de se verificar a respeito dos alheyos. Da boca do mefrne Christo se pode inferir a razão desta tao grande diflerença, porque quiz este Senhor que este Reyno fosse, e se chamasse seu, aceito a sua divina grandeza pela sua fé, como o disse no campo de Ourique ao nosso primeiro Rey.

Governa no espiritual esta Cidade hum Prelado com o titulo de Patriarcha de Lisboa Occidental erigido á instancias delRey N. S. D.  João V, pela Bulla Áurea, que concedeo o Summo Pontífice Clemente XI, expedida em Santa Maria Mayor em 7 de Novembro de 1716. Em virtude desta Bulla, a Capella Real dedicada a São Thomé que já estava engrandecida com o titulo de insigne Collegiada desde o anno de 1708, e se compunha de seis Dignidades, dezoito Cónegos, doze Beneficiados, e vinte Capellães, com outros muitos Ministros, ficou servindo de Basilica Patriarchal com tantas circunstancias de pompa, grandeza, e ornamento, que no estado em que hoje a vemo,s desanimaria a eloquência de Cicero e Demostlhenes, se a intentassem descrever, e eu que conheço quanto he pobre o cabedal do meu engenho para emprego tão alto só me contentarei com dizer o que já disse Dom Rafael Bluteau na Dedicatoria, que de seu famoso Diccionario Portuguêz, e Latino fez a ElRey nosso Senhor: Que com admiração do Orbe Catholico ficava entronizada a sagrada magnificencia da Capèlla de sua Magestade, mais pemposa em apparatos que o Pantheão de Agrippa, mais eycelsa em mystérios que o Templo de Salamão, não menos augusta, que as Basilicas Lateranense, e Vaticana, no brilhante das lauces competidora do Firmamento, e em celestes armonias imitadora do Empyreo, e summamente grata a Deos pelo continuo sacrificio de hum coração tão religioso, como régio, holocausto mais precioso que as Hecatombas de Grécia, e superior a todas as victimas dos antigos numes, e geitilicas deidades.

O Hospital Real de Todos os Santos em Lisboa

Como funcionava o Hospital de Todos os Santos

Nesta Cidade Occidental está fundado o grandioso Hospital Real de todos os Santos, cuja fabrica começou ElRey Dom João II e acabou ElRey D. Manoel, e bem mostra ser obra daquelles magníficos e Catholicos Príncipes, peia grandeza material de sua architectura, e pelas rendas com que genrosamente o dotarão, para cura, convalecença e alivio dos pobres doentes. Governase por hum Enfermeiro mór, Thesoureiro da fazenda, dous Mordomos de demandas, dous dos engeitados, e outros muitos ministros da Casa da Misericordia até o numero de cento e vinte, que servem por mezes, succedendo hum irmão nobre a hum official nos empregos da administração desta santa Casa, que por ser uma das fundações mais piedosas que ha no Reyno, a especificaremos com particular memoria.

Enfermeiros

Na despensa entra a servir hum destes irmãos cada mez de mordomo, para distribuir pão, ovos, açucar, passas, amêndoas, e vinho, e outros regalos para os doentes, e a elle he que os procuram os irmãos mordomos, que assistem nas enfermarias; a seu cargo está prover os carneiros, e gallinhas, que se gastam, as quaes recebe do mordomo da bolla, a quem dá o dinheiro neceísario para estas compras o Thesoureiro da fazenda. Em cada húma das enfermarias ha hum irmão mordomo para governar os enfermeiros, que são moços praticantes de Cirurgia, que servem os doentes, e sahem com carta de exame, e licenças para curarem em todo o Reyno, e em quanto assistem no Hospital, se lhes dá ração de pão, carne, peixe, e vinhos, e aos das enfermarias dos feridos, das febres, e dos convalecentes, se lhes dá também azeite para se alumiarem, e humas roupetas compridas de çaragoça, de que andam vestidos. Além dos enfermeiros, que são doze, ha três enfermeiras, e quatorze ajudantes, com os quaes com o irmão mayor, homem, que pede panos, e fios, e com a cristaleira despende a casa hum anno por outro perto de setecentos mil reis de seus ordenados além das suas raçoens e vestiarias.

Religiosos

Assistem dentro do Hospital dous Religiosos, que as Comunidades desta Corte mandam a petição do Enfermeiro mór para ajudarem a bem morrer aos doentes, e se lhes concorre com o sustento necessario, e serventes que lho ministrem com muito aceyo, e perfeição além do gasto, que se faz com o paramento, e adorno dos cubiculos, em que se agafalham, em quanto dura esta pia e devota assistencia, da qual foy o primeiro inventor D. Henrique de Portugal Provedor e Enfermeiro mór pelos annos de 1610, e importa esta despeza hum anno por outro perto de cento e quarenta mil reis, sem entrar nesta conta as raçoens de pão, carne e vinho.

Pessoal Médico

Paga mais quatro Médicos, cinco Cirurgioens, um Anotomico, hum Algebista e dous sangradores, e alguns delles moram dentro do Hospital com porta para dentro para acudirem sempre que são chamados, e ha necessidade urgente, e cõ elles despende perto de quatrocetos e vinte mil reis, além de dez moyos e meyo de trigo e nove de cevada.

Porteiros e Cozinheiro

Outras pessoas ha que servem este Hospital de portas a dentro, e são hu porteiro da porta grãde, ao qual se dão vinte quatro mil reis em dinheiro cada anno, hum roupão, casas em que vive, e agua, dous alqueires de legumes, e hum quarto de carneiro, nas três festas principaes do anno. Outro porteiro, da porta que conduz para as enfermarias, a quem se dão cada dia três pães, meya canada de vinho arratel, e meyo de carne, casas em que vive e pitanças. Hum cozinheiro, a quem dão vinte quatro mil reis cada anno, hum saco de trigo cada mez, hum arrátel de carne cada dia, meya canada de vinho, e hum quarto de azeite com outras pitanças; hum trinchante, que tem por obrigação partir na cozinha as raçoens dos doentes ao jantar e cea, ao qual se dão vinte mil reis cada anno, trinta alqueires de trigo, botas, casas e pitanças.

Amas e Mercieiras

Para os engeitados ha vinte quatro amas, e porque estas sempre podem crear todos, os que se expõem na roda, se repartem pelas amas do termo, pelo qual gozam ellas, e as suas casas de diferentes privilégios. As do Hospital se lhe dá trinta mil reis cada anno, três pães cada dia, arratel e meyo de carne e hum quartilho de azeite. Ha mais dez Mercieiras com seis tostoens cada mez, trinta alqueires de trigo cada anno, dous mil reis pela Pascoa para hum manto, casas em que vivem, agua, hum alqueire de grãos, outro de chicharos, pitanças, e Medico, barbeiro, e botica, quando estão doentes, como a todos os outros familiares e domesticos do Hospital. Outras quatro Mercieiras da Capella do Conde D. Pedro sita na Sé, que por ser sua instituição tão antiga, tem cada mez hum tostão e dous cruzados cada anno para casas.

Cangalheiros, mestre de tinhosos, medidor, moço da bolsa e despenseiro 

Paga mais o Hospital quatro homens do esquife, e se dá a cada hum doze tostões cada mez, hum coveiro, que tem cada anno doze mil reis, casas, agua, meyo alqueire de chicharos, e três arrateis de carneiro; huma cristaleira com três cruzados cada mez, duas sacas de carvão, casas, agua, e dous mil reis; hum mestre de tinhosos, a quem a Misericórdia paga ordenado, e o Hospital dá agua, e casas; duas visitadas da Misericordia, a quem se dão casas e agua. Hum medidor do celleiro, o qual tem dous vinténs de cada moyo que meden casas e agua; hum moço da bolsa, que compra em ausencia do mordomo, e tem cada dia dous vintens, hum pão, casas e agua; hum despenseiro, que tem huma ração como a do cozinheiro, com suas pitanças.

Solicitador, Tesoureiro, Lavadeiras

Servem mais ao Hospital hum solicitador, a quem se dão vinte oito mil reis, casas, botas, e pitanças; hum Thesoureiro dos livros cm vinte e dous mil reis, casas e pitanças; dous sacadores dos foros com vinte e dous mil reis cada hum, casas e pitanças. Huma lavandeira das febres dos homens, à qual se dão quatorze tostões cada mês, casas em que vive, e meyo alqueire de chicharos e três arrateis de carneiro, nas três principaes festas; outra das frebres das mulheres, a que se pagam dez tostoens cada mez, e as mesmas pitanças e casas; lavandeira dos feridos, a quem se faz a mesmo partido que a antecedente; outra lavandeira dos males como o mesmo partido; outra lavandeira da Sacristia com trezentos e trinta reis cada mez, outra lavandeira do Hospital dos Arrabidos, com hum cruzado cada mez.

Igreja

Quasi no meyo da grandiosa fabrica, e officinas do Hospital, está huma formosa Igreja, que em architectura, perfeíção, e capacidade não cede a alguma das da Corte. No Altar mór se fez modernamente o retábulo entalhado, que he dos melhores que de madeira se tem visto até nossos tempos, com magnifica tribuna para se expor o divino Sacramento. Tem esta Igreja treze Capellaens, que rezam em coro os officios divinos; nas festas principaes, Domingos e dias santos he de canto de orgão, para o que ha hum Mestre que ensina muitos moços dentro do mesmo Hospital.

Despesas e receitas

A estes e outros domesticos, que por todos passam de cento e vinte pessoas empregadas no serviço da casa, sustenta e dá ordenados de maneira que só em pão amassado gasta cada anno duzentos moyos de trigo, quarenta e duas mil gallinhas para o sustento dos doentes, sem fallar em vitela, carneiro, e carne de porco para as pitanças, que importa cada anno em perto de três contos de reis. S. Magestade dá cada anno de esmola, além dos quartos das lizirias de Ribatejo, cento e cincoenta arrobas de açúcar, e porque cresce o gasto manda comprar o Hospital açúcar branco, e mascavado, agua ardente, arroz, manteiga, legumes, azeite, vinagre, adubos, e varias cousas mais para a cozinha, e fabrica della; a quantidade destas especies importam em perto de dous contos de reis. Gasta cada anno dous contos e duzentos mil reis em medicamentos da botica, ainda que se dão pela terça parte menos do regimento. Morrem hum anno por outro mil e setecentos doentes, e com as suas mortalhas se faz despeza de cento e cincoenta mil reis. Por estas parcellas se pode ver a quanto montará a despeza das outras que não expressamos e os ordenados que se dão em dinheiro, e ainda quem os Reys fundadores o dotaram, com muita grandeza, e depois outros bem feitores lhe accrescentaram as rendas até a quantidade de dezanove contos trezentos secenta e dous mil oitocentos e trinta reis, he tal o concurso dos pobres necessitados, e a caridade, e regalo, com que se lhes assiste até restaurarem a sua saude, que excede muito a despeza á receita, e he e serà muito aceita a Deos nosso Senhor a lembrança que os fieis Christãos tiverem de concorrerem para tanto, e caritativo instituto.

As enfermarias (e camas nos corredores) e os loucos furibundos

As enfermarias tem o nome de vários Santos, a que estão dedicadas, a saber: S. Cosme, S. Damião, S. Clara, S. Vicente, S. Bernardino, Madre de Deos, S. Pedro, S. Diogo, S. Francisco, e oito corredores, e casas, que estão cheas de leitos para homens e mulheres, com separação, aceyo e cuidado, e nove casas para loucos furibundos. Nestas enfermarias ha ordinariamente cento e sete leitos armados, e porque algumas vezes he excessvo o numero dos doentes, se armam em outros corredores as camas que bastam, porque a ninguem engeita o piêdoso instituto desta obra pia e seus zelosos adminiftradores. Ha annos, em que entram perto de oito mil doentes, e todos são curados, e assistidos e se morrem não se aproveita a casa dos seus fatos, dinheiros, ou outra qualquer cousa, que se lhes ache, porque tudo se entrega fielmente ao pay, mãy, mulher, ou legitimos herdeiros do defunto, para o que quando o recebem, se toma por assento a pátria, o nome, a filiação e estado dos doentes, para no caso do fallecimento se saber a quem se ha de fazer a tal restituição.

Lisboa Ocidental: o Paço da Ribeira

No distrido Occidental se acha o Paço da Ribeira, o mais magnifico, agradável, e espaçoso palácio dos quatorze, que os senhores Reys deste Reyno fabricaram para a sua morada. Começou-o EIRey D. Manoel, accrescentou-o Filippe Prudente, e o aperfeiçou o Senhor Rey D. João IV na fórma em que hoje existe. He dos melhores da Europa na sua grandeza, e se se acabassem as ideias do seu primeiro risco, seria único. Accomodase nelle com muita largueza toda a família real, e a mayor parte dos tribunaes supremos com espaços commodos para as suas expediçoons, e officinas. Domina hum dilatado terreiro rodeado de magníficos edifícios, obras todas Reas, e de estrondosa archicteturas.

Quasi no meyo desta soberba fabrica se levanta huma torre de mármores brancos com relógio de quatro mostras, em que se deve collocar hum sino, que está ja feito, e he o terceiro na ordem da grandeza que ha em todo o mundo, porque tem de peso quarenta e dous mil arrateis, e só o prefere o sino que está em Moskou Capital do Império da Russia, que tem secenta e seis mil, e o de Nankím no Reyno da China, que tem cincoenta mil; depois se segue o dito sino, que como fica dito, tem quarenta e dous mil; depois o que está em Mafra, q tem trinta e seis mil; depois o que está em Ruão, que he de igual grandeza, e peso ao da Basilica Mafrense, e ultimamente o mayor dos de Paris, que tem trinta e hum mil arrateis.

Continua


Descripçam corografica do reyno de Portugal, 1755

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