OS TEMPLÁRIOS
2ª parte
O rei, a quem desde muito as riquezas dos templários causavam ciúme e inquietação, não foi sem intima alegria que entreviu um excellente pretexto para lhes arrancar os bens, que constituíam a sua força, e quebrar nas mãos de heréticos uma espada que começava a contrariar a sua. É além disso provável que o tal segredo, sobre o qual todas as historias guardam silencio, fosse de natureza a despertar no coração do rei negras suspeitas das intenções dos templários. A descoberta desta conspiração contra a segurança da egreja e do estado conservou-se algum tempo occulta. O rei fallou nella confidencialmente ao papa, porque era necessário o accôrdo dos dois grandes poderes que então regulavam os destinos do mundo, para ousar atacar uma ordem tão considerável. As revelações feitas aos ministros de Filipe, o belo, eram de tal natureza que, segundo parece, o governo da egreja não estava menos ameaçado do que o do rei. Um historiador faz dizer ao delator, que este segredo era «de tal importância, que o rei devia colhêr delle mais vantagem que da conquista de um novo reino.»
Chegando aos templários o conhecimento da acusação, que em segredo lhes faziam, levaram seus clamores ao chefe da egreja, e reclamaram uma sindicancia. Diz-se que o rei temeu a irresolução do papa. É provável que ainda mais temesse alguma alliança entre os queixosos e a corte de Roma. Efectivamente teria sido hábil politica na egreja escorar suas pretenções e interesses temporaes, numa força organisada como a dos cavaleiros do Templo, O rei preveniu as eventualidades com um acto de energia. Dizem que um tal golpe de estado (porque a providencia tomada contra os templários tinha então esse caracter) fôra aconselhado pelo seu confessor, frei Imberto, dominico e inquisidor de França. Assegura-se que muitos templários, advertidos dos desígnios do rei, se dispunham a evadir- se do reino com os seus bens, quando foram presos.
Se, como é licito crer, os cavaleiros do Templo tinham estatutos políticos, uma direcção, um fim; uma curiosa pergunta pôde cada um lazer a si mesmo. Que podia a sua intervenção, junta ao poder da corte de Roma e ás emprezas dos infieis, mudar então nos negócios da Europa?
As circunstancias da prisão provam bem o temor que os templários inspiravam ao governo. O rei fez chegar a todos os bailios e senescaes do reino confidenciaes, com prohibição, sob pena de morte, de as abrirem antes de um dia marcado. As cartas eram ordens para pegarem em armas, prenderem todos os templários do districto, e transportarem-nos bem guardados ás fortalezas, Em 13 de outubro de 1307 foi feita a vontade do rei.
O próprio grão mestre da ordem Jacques de Molay, genlilhomem de Besançon, que voltava de Chypre, onde se distinguira nas guerras contra os infiéis, e que pouco tempo havia viera de Poitiers ao Templo, em Paris, também foi preso.
O rei fez confiscar no reino todos os bens dos templários. Apoderou-se logo do Templo, cuja torre era famosa. Para ella transferiu a sua habitação; nella recolheu o seu thesouro e o seu archivo.
Toda a questão está em saber, se, procedendo assim Filipe, o belo, não respondia a um trama com outro trama.
Que Filippe via nos bens dos templários uma boa prêsa, prova-o superabundantemente o seu proceder, a pressa com que se foi estabelecer na própria casa do Templo, os actos arbitrários que se seguiram ao golpe de estado; por maior, porém, que então fosse a avareza dos reis, parece-nos difficil de admittir que um homem fraco (qual a historia nos pinta o caracter de Filipe ,o bello) chegasse a taes excessos, sem ser provocado por temores nascidos de revelações que inquietassem a sua auctoridade.
Não seguiremos o processo instaurado aos templários, em todos os desvios obscuros e sinistros da justiça do XII século.
As informações não deram nenhum resultado, ou deram resultados tão vagos, que parece que de ambos os lados se evitava a luz.
Acusavam os templários de renegarem Jesus Cristo no acto da sua entrada na ordem; de se entregarem entre si ás mais infames liberdades; de adorarem uma espécie de idolo, que tinha grandes barbas, olhar terrível, quatro pés, e estava então em Montpellier; de se darem a outras praticas supersticiosas e sacrílegas. Taes eram as confissões que o temor ou as promessas haviam extorquido.
O inquisidor Guilherme de Paris não arredava pé da instauração do processo a que presidia. É fácil adivinhar que sombrias angustias não encobriam então apparencias tão legaes e tão inoffensivas. Desde o começo dos processos mais de sessenta templários tinham sucumbido.
O papa interveiu e suspendeu tudo. Sendo a ordem do Templo um corpo religioso, dependente immediatamente da santa sé, não devia o rei constituir-se seu juiz, nem confiscar-lhe os bens, nem prender as pessoas dos templários. Tal foi o objecto de uma carta por Clemente V dirigida a Filipe, o bello. Roma, como veremos, não tratava de salvar os cavaleiros, mas só de estabelecer a dualidade dos seus direitos num negocio em que o rei de França se apressara a obrar só, para recolher todos os proveitos da destruição da ordem. O papa fazia sobresaír o descontentamento que tinha do inquisidor Guilherme de Paris; tratava a empreza real de attentado contra a auctoridade da santa sé; e concluía suspendendo sobre este objecto a auctoridade dos prelados e dos inquisidores de França, avocando tudo ao seu tribunal.
Filipe, o belo, cedeu. Enviou alguns dos principaes do Templo a Poitiers, onde o papa estava então. Os infelizes compareceram em pleno consistório. Invocavam contra elles as confissões que a persistência dos interrogatórios, o silencio das prisões, o tormento da solidão, e até a tortura, que o inquisidor não poupara, lhes extorquira.
Satisfeito com ter chegado a obter participação nas consequências do processo, o papa levantou a suspensão que impozera aos ordinários e inquisidores de França, reservando apenas para si o julgamento do grão mestre.
As historias ecclesiasticas dizem, que, desde esse dia, o rei empenhára todo o seu credito em mostrar o grande zelo que o animava pelos interesses da fé, apertando mais e mais os templários em todas as prisões do reino!
Entretanto continuaram a recolher informações. Enfraquecidos pelas vigílias, pelo processo, e pelo captiveiro, os templários nem podiam suster-se em pé. Alguns dos principaes, que deviam ser levados ao papa, estavam em tal estado de doença que não poderam com a viagem, mesmo a cavallo. Compreende-se bem, como homens, em similhante disposição de corpo e de espirito, fariam todas as confissões que lhes pedissem.
O grão mestre da ordem, Jacques de Molay, tirado da prisão, foi conduzido ante os commissarios do papa. Perguntaram- lhe se tentava defender a ordem. Respondeu: «que não era tão letrado, como convinha, para desempenhar-se disso, mas que faria todo o possível, por mais difficil que lhe parecesse esta defesa posta nas suas mãos, quando estava prisioneiro do papa e do rei, sem ter cousa alguma, nem mesmo quatro dinheiros para alcançar provas, e não usando, como os outros cavalleiros, senão das cousas que lhe forneciam.» Concluía pedindo soccorro e conselho, já que não tinha junto a si, para o ajudar com as suas luzes, senão um pobre irmão servente.
Responderam lhe que se lembrasse que em matéria de heresia e de infidelidade, era preciso proceder simplesmente sem advogados, e sem ostentação de forma judiciaria.
Á vista disto, porque não hão-de os que na tribuna, e fora della, atacam todos os dias as formas da justiça de 1793, convencer-se de que o terror politico foi então um reflexo do antigo terror religioso?
Ao menos era preciso que o grão mestre, na sua qualidade de defensor, tivesse conhecimento do acto e acusação. Expuzeram-lhe os factos em lingua vulgar. Quando lhe leram os depoimentos e confissões, que diziam que elle tinha feito contra a sua ordem, em presença de três cardeaes commissionados pelo papa, assignou- se duas vezes, manifestou a principio a sua admiração e indignação, e depois, recordando-se da sua profissão militar, e procurando com mão valente o logar da sua espada, exclamou: «Se os commissarios diante de quem fallo, fossem outra gente, saberia responder-lhes de outro modo!»
Estas palavras perderam-se nas arcadas sombrias.
Os commissarios só poderam dizer: «Que não eram pessoas para receberem reptos militares.»
Foi assim que o grão mestre, tratando de caluniadores os que pretendiam alterar-lhe as confissões, appellava, a despeito das secretas formas do processo, para a justiça da historia. Se as confissões eram verdadeiras, se sobre tudo tinham sido obtidas sem violência da bocca de Jacques de Molay, como pretendem escriptores parciaes, fôra em verdade mui fácil em tal circunstancia confundil-o.
O pregoeiro renovou a formalidade que mais denunciava a hypocrisia, que o desejo sincero de chegar ao conhecimento da verdade; convidavam, como nos dias precedentes, a que comparecessem os que quizessem defender a ordem. Ninguém appareceu, pois sabiam anticipadamente, que ninguém, á excepção dos acusados ousara comprometter- se em similhante aventura.
O grão mestre agradeceu aos commissarios ou juizes a demora que lhe tinham accordado. «Era, dizia elle, em estilo militar, descançar-lhe a brida em cima do pescoço.» Perguntado se queria defender a ordem, respondeu mais: «Sou um gentilhomem sem letras; ouvi ler uma certa missiva apostólica, que dizia, que o papa se reservara o julgamento da minha pessoa e dos principaes templários; assim restrinjo-me a isso. Estou prompto a ir prostrar-me na presença do papa; mas, sendo mortal, e restando-me pouco tempo a viver, rogo- vos convideis sua santidade a que me chame o mais depressa possível. Não tenho senão uma palavra a dizer- lhe: trato de honrar Jesus Cristo e a sua igreja, tanto quanto posso.»
Os templários redigiram memorias, que espalharam por toda a França. Chamavam mentiras ás acusaçôes feitas contra elles, e ás confissões dos seus confrades, obrigados pelo temor ou pela tortura a declarar-se culpados. «A ordem dos cavalleiros da milícia do Templo é pura e mui estranha a esses horrores que lhe reprehendem. Estamos todos habilitados a defendel-a. Aquelles templários que vencidos pelos soffrimentos, ou seduzidos pelas promessas, depozeram mentiras contra si mesmos, são, ou gentes tímidas e fracas, a quem o receio da morte ea prova dos tormentos arrancaram estes falsos depoimentos, que não podem levar a consequências, nem contra a ordem, nem contra elles; ou, melhor, homens miseráveis, talvez corrompidos pelo dinheiro, ou pelas sollicilações, pelas promessas ou pelas ameaças. Isto é tão notório, que temos direito a pedir por Deus, que nos façam justiça, que nos livrem de uma longa e tão cruel oppressão, e que desde já nos admitiam aos sacramentos da igreja.
É tempo de dizer uma palavra sobre a mais grave das accusaçòes feitas á ordem do Templo; queremos fallar dessas abominações renovadas, dos vícios das cidades malditas, ás quaes não cessam de alludir no seu processo. Que as ordens religiosas descaíssem nesses vicios infames, comprehende-se; mas a ordem dos templários, pela liberdade de que gozava, nem sendo claustro, nem sujeita a todas as conveniências da vida monástica, devia ser mais isempta que qualquer outra, e a ultima a cair em taes aberrações. No caminho da Terra Santa, e fora delle, havia em abundância criadas de estalagem, e mulheres infiéis, para poupar aos padres soldados desvarios que, em geral, não nascem senão da impudente sequestração dos sexos. Devem-se pois considerar inverosímeis as accusações, despidas de provas, com que perderam aquela ordem tão notável pelo resplendor do seu valor e das suas riquezas. Se assim o principal aggravo era supposto, que seria dos mais? Que deve dizer-se desse idolo com barbas que os templários adoravam, coberto pelas praticas religiosas?
Os principaes da ordem ofereciam se incessantemente a provar a sua innocencia. Pediam: «Que se prendessem os apóstolos da ordem, até que a verdade ou falsidade do seu testimunho fosse conhecida; e que nos interrogatórios dos templários não admitissem seculares, para que a sua presença não intimidasse os acusados, gente mui accessivel ás influências do medo.» Esta ultima circunstancia pode parecer estranha; nada, porém, ha que seja mais conforme ao que sabemos da natureza humana. Todos os dias vemos homens chamados de acção, que não curvariam a cabeça diante da metralha, perturbarem-se diante de juizes, e mostrarem na presença das fórmulas da justiça, uma fraqueza, uma hesitação que contrasta com a sua bem conhecida coragem. Convém distinguir o que é coragem, do que é firmeza d'alma.
«Cousa inconcebível (acrescentavam os templários, alludindo a seus confrades seduzidos ou corrompidos), cousa injusta, é que se punha mais fé em falsarios, ganhos a preço de ouro, do que naqueles que têm supporlado tantos males, e expiraram nos tormentos com a palma do martyrio!»
Só de uma ideia de uma fé religiosa ou social é que se c martir. Qual era essa ideia, essa fé, essa doutrina dos templários? Quanto mais considerámos o espirito geral do século XIII, as circunstancias daquelle processo, e as relações dos templários com o oriente, mais nos convencemos de que ainda se não rasgou o véo do Templo. Das antigas sociedades da Índia, da Pérsia, e do Egipto, tomara sem duvida aquela ordem o principio das iniciações. Tinha estatutos que se não descobriam; misterios que se calavam; segredos reservados aos principaes da ordem e guardados sob ameaças severas. De algumas circunstancias, de algumas confissões do processo, resultou estabelecer- se que os templários se tinham appropriado no oriente uma doutrina composta de relíquias do sabeismo, ou crença dos chamados cristãos de S. João.
A igreja não tinha então só que lutar contra heresias, mas tambem que resistir ás antigas religiões, mortas sim desde muitos séculos, mas cujos fantasmas a perseguiam até no mesmo campo das suas victorias.
É sorte da espada cair sob o peso das ideias que combate. Encaminhando a ordem do Templo para a Palestina, creu a egreja fazer um acto politico, um acto de conservação, quando a christandade estava ameaçada pelas armas dos infiéis. Succedeu, porém, que essa milicia religiosa, conservando e guardando sempre a cruz e as praticas exteriores, renunciou nalgumas cousas ao espirito das instituições catolicas. Exterminando os habitantes do mundo antigo, deixou-se vencer pelos seus deuses.
Um grupo de ideias vagas, de conhecimentos confusos, de tradições varias, de reminiscências obscuras, era então coberto pelo antigo nome de cabala. Para se comprehender até que ponto a cabala era odiosa á igreja, é preciso dizer que detraz deste véo é que se refugiava o pensamento humano, a opposição á tirania religiosa. Relíquias de cultos, doutrinas destroncadas pelo vasto derrocamento do mundo oriental, praticas extravagantes sobrevivendo a deuses desapparecidos, tudo isto não era realmente, nem mui solido, nem mui terrível; mas em todas estas ruínas esvoaçava um novo espirito de liberdade; e era desse espirito que a igreja degenerada tinha medo.
Os templários cabalavam. Nisso consistia um dos seus crimes aos olhos do poder ecclesiastico. Filiando-se em antigos mistérios, os cavaleiros do Templo inclinavam-se a uma direcção moral e religiosa que não era a da igreja romana. Que fosse costume dos templários andarem por cima do crucifixo, na sua entrada na ordem, não o acreditámos, a despeito das confissões, é verdade que arrancadas pela tortura. Comtudo, se a renuncia a Jesus Cristo não vestia essas formas positivas e brutaes, é certo que pelas tendências heterogéneas do seu ensino secreto, pela aliança do christianismo com as antigas religiões do oriente, pelas suas praticas mais ou menos inficionadas de magia, os cavalleiros do Templo, directa ou indirectamente, alteravam a causa que defendiam com a sua espada.
O oriente, invadindo o ocidente, é um dos factos mais importantes da idade media. Contra esse diluvio de doutrinas mais ou menos misticas, mais ou menos materialistas, combatia a igreja sem piedade. Que os templários desterrassem os infiéis para o interior da Asia, que restabelecessem a liberdade de communicações com a Terra Santa, que libertassem o sepulcro de Jesus Cristo; era bom, e a igreja favorecia taes emprezas, e applaudia o seu zélo militar. Mas a igreja via de mais alto e mais ao longe, que conquistas materiaes. A igreja sabia que as nações não são vencidas em quanto os seus deuses estão de pé; e porque temia os deuses do oriente, mais que as armas dos infiéis, é que nunca pôde perdoar aos templários terem feito com elles aliança. Isto quanto ás doutrinas religiosas.
Agora quanto ás tendências politicas, a ordem do Templo parece ter sido concebida sobre o instituto de Pitagoras; importava o desinteresse dos membros, e sacrifício aos interesses da corporação. A sua influencia occulta extendia-se por toda a parte. Se é verdade que as luzes e as sciencias não eram ahi representadas como nas iniciações que se faziam á sombra dos templos egipcios; se os cavaleiros eram pela maior parte gentishomens sem letras que mais se ocupavam em adestrar a mão que em ornar o espirito; em compensação disso, a ordem do Templo dispunha de uma força quasi soberana nas edades barbaras a força das armas.
Concebe-se que a existência de uma tão poderosa organisação militar, que não obedecia absolutamente, nem ao rei, nem á santa sé, fosse para estas duas auctoridades objecto de incessantes desconfianças. Aquella maçonaria armada, com estatutos particulares, com uma direcção impenetrável, apoiada na terra e nas riquezas, podia vir a ser um serio obstáculo aos desígnios da corte de Roma e das monarchias europeas. Só lhe faltava um grão mestre, dotado de algum génio e de força d'alma fora do commum, para impor a sua influencia á sociedade. Temeria Filipe, o bello, que esse homem fosse Jacques de Molay? Tudo leva a crê-lo.
(Continua)
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