História
ÉVORA
IGREJA E CONVENTO DE S. FRANCISCO
2ª parte
Não durou muito a pobreza primitiva da ordem. Da citada doação de julho de 1245, escrita por Payo, tabelião, consta que João Esteves e sua mulher, Maria Martins, deram uma terra aos religiosos para se alargarem mais, com a obrigação de os encomendarem a Deus. Por outra escritura feita em setembro de 1250, João Pelagio Cordura e sua mulher, Mayor de Guimarães, doaram aos frades um lagar e outra terra junto á porta de Alconchel para estenderem mais o convento. Finalmente, por outra escritura que fez Domingos Martins em 22 de junho 1280, Pedro Afonso, mercador, e sua mulher, Maria Soares, deram aos frades um campo contiguo ao convento para o mesmo fim, pelo amor de Deus e em beneficio de suas almas.
Foi também o convento, nos primeiros tempos depois da sua fundação, favorecido pelos monarcas portugueses. D. Afonso III deixou-lhe em testamento cinquenta libras, D. Fernando e D. Duarte lhe deram terras e casas para se alargar. Alguns o protegeram com importantes privilégios e isenções.
Com estas e outras esmolas aumentou a casa franciscanos a ponto de lhe chamarem comumente convento do oiro. Que chegara a estender-se por boa parte da cidade é o que se depreende das aludidas doações, e também de uma velha memória manuscrita que andava num livro de pergaminho do coro onde se cantavam as horas menores. Começa este curioso documento da maneira seguinte:
«Esta casa de S, Francisco de Évora quero aqui pôr o que tem para que os que vierem saibam o que é da casa. Esta casa tem por cerca da porta do Rocio até á porta do Reymondo, tomando pela rua dos Toiros abaixo até á porta. E tem este alpendre e todo o adro sagrado assim como são as claustras ambas e a igreja, e da banda do muro da cidade não é sagrada, posto que o seja o adro. A igreja era de sete naves, e no couce estava um côro muito honrado; e prégam no alpendre para caber a gente. A egreja de sete naves cahiu, e com esmolas a tornaram a fazer os padres de três naves, e tornou a cahir com parte do alpendre, de que esta casa recebeu grande perda e damno, e reinou D. Afonso V, e houve grandes guerras com Castella...»
Não merece crédito a historia do templo aqui referida, que os cronistas repetiram e a cidade conserva em tradição. Admitir que em pouco mais de dois séculos os frades, tendo principiado em grande pobreza, alevantassem uma igreja de sete naves, não mais de cinco as maiores da cristandade; que mesmo espaço de tempo caisse por terra, fosse reedifícada e tornasse a cair; que os religiosos a conservassem depois em ruinas muitos anos, á espera que a real munificencia lha reconstruisse, tudo isto é o mesmo que inverter a ordem natural dos factos, e começar por onde se deveria acabar. Baldadas diligências nos parecem pois as que puseram alguns escritores em conservar este glorioso brazão á ordem S. Francisco e á cidade de Évora.
Tinha o convento, como diz a memória, duas claustras. Uma existe ainda, posto que muito arruinada; outra apenas restam alguns vestigios. Era esta última num espaço alastrado de ruinas, que hoje vemos entre o edificio e o muro que entesta com a rua que há pouco tempo se abriu desde a porta lateral do publico até á rua do Paço. Conserva-se de pé parte do lanço setentrional da velha claustra com dois ou três grandes arcos de volta abatida, muito obstruidos e alterados com posteriores reconstruções; e no meio do largo subsiste a velha cisterna, tão entulhada que já custa a conhecer. Uma parede que recentemente deu em terra do lado do poente descoberto um abundante ossário.
A primeira claustra em breve seguirá esta na ruína que os homens, ainda mais que o tempo, lhe vão apressando. Em partes os arcos ogivais deram já de si a ponto de desaprumarem a dobrada ordem de colunas de mármore em que se estriham. Foi construida no anno de Cristo de 1376, como se lê na lapida que dali trasladaram ha alguns annos para biblioteca publica. «Dom Fernando Affonso de Moraes, commendador de Montemor, mandou fazer esta crasta a fr. João d'Alcobaça, custódio, e a fr. Aº Montemor, guardião, na grande fome em 1414.»
Os caracteres góticos minusculos, muito perfeitos e elegantes desta inscrição formam um quadro, em cujo meio se vêm esculpidas as armas dos Moraes com a cruz da ordem de S. Tiago, á qual pertencia a comenda de Montemor. Talvez por dificuldade que se lhes deparasse nas abreviaturas, os cronistas ordem e o padre Fialho deram só metade da inscrição, com quanto seja importante o facto da grande fome ali mencionada. Se foi particular do Alentejo ou geral do reino não o sabemos nós, nem temos noticia de nenhuma que se refira áquele ano de 1376.
Outra pedra mais notável e de maior valor artístico foi igualmente transferida do claustro de S. Francisco para a biblioteca publica. É um mármore de 1,23m de largura, de 0,94m de altura, e de 0,23m de espessura, que representa em mais de meio relevo a Anunciação de Nossa Senhora. Na parte inferior lê-se em carateres góticos maiusculos o seguinte, que também temos por inédito: «Aqui jaz Ruy Pires Alfageme, frade da terceira ordem. Era 420.»
As figuras são toscas, bem como todas as que ficaram da mesma epoca, ainda nos primeiros trahalhos deste género; mas o gracioso e bem baldaquino que as cobre revela já o escopro que alguns anos depois abriu os delicadissimos ornatos da Batalha. O relevo do velho claustro é, pois, um mais interessantes monumentos da escultura portuguesa do seculo XIV.
Diz-nos o autor da memória qual era em seu tempo a importância do convento:
«Tem esta casa dois refeitórios, um de peixe, outro de carne. Tem mais esta casa estudo, que é a melhor coisa que tem este relno; e estão aqui sempre os principais mestres em teologia. Tem aposentamentos padres mestres e estudantes. Tem livraria, onde se acham todas as obras compridamente: Testamento velho e novo, e todos com suas cadeias. Esta casa chama-se Convento de Ouro. Aqui vem toda a clerezia com suas cruzes, e todo o povo vespera de Ramos, e nós todos em procissão, e seis padres com varas vermelhas e capas; e eramos por todos ás vezes oitenta; e trazendo os ramos a esta igreja aqui se benzem com grande solenidade e prazer, e isso temos por privilégio como outras coisas.»
Durando ainda o século XIII, se tornaram os conventos de S. Francisco de observantes em claustrais, por meio de dispensas e privilégios que lhes permitiram acumular riquezas, contra o primitivo espírito da ordem. Perdeu com esta mudança a austeridade monástica, mas ganhou muito a cultura das letras, que em todos os conventos do reino se promoveu com diligencia e ardor. E como das aulas que mantinham não recebessem estipendio, pouparam a despesa da cadeira de teologia na universidade a el rei D Dinis, que em estatuto determinou que os estudantes aprendessem com os frades de S. Domingos e de S. Francisco. Vigorava ainda esta disposição quando pela segunda vez se trasladou a universidade para Coimbra.
Não era sómente nos conventos desta última cidade e de Lisboa que havia estudos regulares. No de Évora ensinavam-se, além da teologia especulativa e da moral, as humanidades, e davam- se tanto aos de casa como aos de fora que frequentavam as aulas, os graus de doutor licenciado e bacharel. Costumava também a ordem mandar alguns filhos seus ás universidades estrangeiras para se aperfeiçoarem nas disciplinas que no reino haviam de professar.
Quando D. João III trasladou e reformou a universidade de D. Dinis, eo cardeal D. Henrique fundou a de Évora, pelos privilégios e aumentos que estas instituições obtiveram, começaram a decair os estudos seráficos da altura a que antecedentemente haviam chegado. Em Évora só a universidade podia ter aulas públicas. Desta e outras prerogativas muito se queixavam os franciscanos, de toda a maneira desatendidos e avexados pelos jesuitas, que chegaram até a lhes tirar o lugar, que de direito lhes pertencia, logo depois da ordem de S. Domingos, nos argumentos públicos da universidade.
Havia também noutros conventos, como no de S. Francisco, o uso de prender os livros com cadeias ás estantes. Os estatutos da universidade de Évora ordenaram a este respeito o seguinte: «Averá nas escolas húa casa pera livraria da Universidade, na qual estarão livros de todas as faculdades em ahastança, postos em estantes, e presos por cadeas, e enquadernados em tavoão, com seus titulos de boa letra.»
Lê-se mais adiante na memória do livro do côro:
«Pousava D. Afonso V nos estáos, e porque sahia muitas vezes ao campo, pediu-nos os estudos para neles pousar, e nós lhos démos com todas as casas dos mestres, por ser nosso rei e senhor; e elle como se viu de posse, e as casas tão boas, cometeu-nos que lhe dessemos aqueles aposentos, em que estava e nos faria a igreja; e nós todos com campa tangida lhos outorgamos, não nos parecendo que elle mais tomasse; e elle começou logo de fazer suas camaras e portas para a nossa casa, e cada dia pedia casas; assim que tomou bem ametade da casa, e depois ametade da horta; e depois os padres choravam pelas barbas, e reclamavam sem lhe aproveitar, que para isso el rei houve provisão de grande sacerdote, e por isso se foram daqui muitos padres...»
Os estáos ou paços reais eram na Praça de Évora, entre a rua da Cadeia e a rua dos Toiros, que ainda em 1500 se prolongava até á mesma praça. Ficavam portanto próximos de S. Francisco e na mesma área que, segundo o velho manuscrito ,o convento ocupava. Não se reputará por esta razão impossivel que chamassem antigamente paços de S. Francisco aos estáos, como parece depreender-se das crónicas de Ruy de Pina e Duarte Nunes de Leão.
D. Afonso V, fazendo em Évora mais longas residencias que os reis seus antecessores, e achando pequenas as casas da Praça, resolveu edificar novos paços no convento e horta dos franciscanos, o melhor sitio que para tal fim se lhe deparava em toda a cidade. Com o pretexto de sair facilmente ao campo, se hospedou na casa dos estudos e se foi apossando do que mais lhe convinha, embora deixasse os pobres frades a chorar pelas barbas.
Já vimos também que não é facil determinar o tempo em que principiaram estas régias invasões pelos dominios dos frades, e que só com alguma probabilidade supozemos que seria pelos annos de 1471, depois das vitórias de Arzilla e de Tanger.
A. Filippe Simões
38° 34' N 07° 54' W
Évora
Portugal
Continua
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