História
Tomar
Memória acerca o convento de Tomar
IV parte
Conclusão
Os claustros desta magnífica e grande casa não são menos de 8, e alguns deles de um gosto e sumptuosidade admirável. Parece que todos os príncipes e soberanos que aí foram quiseram na qualidade de mestres da Ordem rivalizar entre si e perpetuar a memória da consideração e amor que tiveram a esta casa por meio de uma bela fundação. Procedamos porém cronologicamente: e quando as noticias nos faltarem substituiremos nossas conjecturas fundadas no calculo artístico das construções mesmas.
O 1º claustro na ordem de sua antiguidade é visivelmente o que está lateral á igreja pelo lado do norte e nascente, quase no mesmo pavimento dela; pequeno no seu âmbito, arcada e abobada achatada, tosca e mal lavrada a cantaria, sem ornato algum. Parece-nos portanto que é o claustrosinho da primitiva, coevo com a fundação do castelo e próprio para aqueles começos de casa regular naquele sitio; construção sólida, mas rude e acanhada qual se usava naquela época. Do mesmo tempo nos pareceu também ser outra construção para o lado do sudoeste com entrada no patio da porta do Cano; é urna espécie de galeria, casa quadrangular sustentada em pilares, e por cima da abóbada igualmente achatada, representando como urna casa de capítulo; muito bem construída devia ser, pois que há muitos anos, segundo nos disseram, aí chove dos terrados e varandas superiores sobre as abóbadas, e não tem sinal de ruína. O convento por esse lado, e pelo do meiodia em frente da horta ou jardim próximo, é aparentemente antiquíssimo; janelas pequeninas, partidas ao meio e sustentadas por colunasinhas delgadas; as varandas, que conservaram apesar da elevação que depois deram ao edificio, apresentam a mesma aparência de construção vetusta, são da mesma arquitectura, e as supomos ou da primitiva, ou pelo menos anteriores á Ordem de Cristo. É notável porém que toda essa cantaria é de tão fina e boa pedra que ostenta ainda aquela cor de lindo amarelo tostado que admiramos na igreja e convento da Batalha.
Ao dito claustrosinho que dissemos, seguem- se dois outros a que não podemos assinalar a origem; presumimos serem já dos tempos da Ordem de Cristo, porém anteriores á época de D. João I em que a arquitectura muito se aperfeiçoou. O 4º e 5º são obra do infante D. Henrique, os mesmos de que nos dá notícia Azurara, e que em si mesmos indicam época melhora de arte. Um deles está em estado de ruína, porque lhe vimos em parte quase descoberta a arcada e colunata superior, e julgamos que desde muitos anos está condenado a um quase total desuso; o outro mais central, é de pequena dimensão, mas de forma agradável e perfeita, género gótico, de cantaria fina e bela. O 6º claustro é do tempo d'elrei D. Manuel; o 7º d'elrei D. João III, e este ficou sem o seu completo acabamento; é vasto mas sem graça nem beleza, e nele se lê no lado do noroeste uma inscrição que declara o seu fundador. O 8º finalmente é dos Filipes, obra verdadeiramente grandiosa, e de um género novo, que seria longo descrever; este era no tempo dos freires conventuais o claustro favorito por onde passava a procissão do Corpus Christi, e outras nas grandes solenidades da casa.
Já se vê que os dormitórios, casa de capitulo, refeitórios, casa de noviços, quartos do prior mor, hospedarias, e mais oficinas do convento, obra pela maior parte d'elrei D. João III, deviam ser conformes e adequadas à capacidade de uma casa em que cabiam oito claustros. Alguns destes tomaram o nome das oficinas aí próximas; e os designam ainda agora por elas, chamando a um o claustro da casa, a outro o da botica, a outro o das cozinhas, etc.
A fachada ou frente do convento se estende em longo espaço prolongando-se pela estrada que por esse lado dá entrada à vila de Tomar; é vasta e tem seu ar de grandeza pelas altas janelas de sacada, e varandas nos ângulos do edifício, donde se goze um ponto de vista admirável, principalmente ao norte e nascente; sua arquitectura porém não é simétrica e regular, ressentindo-se o edifício na sua totalidade de haver sido construído por partes, e em diferentíssimas épocas. Pelo lado da cerca, em que este vasto paralelogramo olha ao nascente e meiodia; a perspectiva infunde maior interesse, porque estão aí quase reunidas, e como amalgamadas as diversas formas da arquitectura; porque na base dessa fachada se observam as muralhas solidíssimas de meia idade com sua cantaria grossa, e negra do tempo; sobre ela as pequeninas janelas, frestas e varandins da juventude da casa ainda templária, ou dos primeiros tempos da Ordem de Cristo; mais acima as largas e altas janelas de um tempo mais próximo, século XVI, e рог último, e como coroa, a simalha do aqueduto do século seguinte que forma uma espécie de parapeito acastelado, terminando ele mesmo num rendilhado de pirâmides com a cruz de Cristo em cima. E aqui devemos notar o partido sábio e discreto que о arquitecto soube tirar da mesma construção e direcção do aqueduto; porque encostando-o com suas arcadas á fachada do convento, não só deu a este um apoio e segurança incalculável, mas até о embelezou muito não só com o simétrico dos arcos, por entre os quais vão saindo frestas e janelas, mas com o remate engraçado e elegante de sua simalha e pirâmides. Aí nos disseram que esta parte aqueduto tem sido o elevo de curiosos e artistas, alguns dos quais admirando-a a desenharam.
A casa de capitulo e refeitório são construções sólidas e regulares, porém menos vastas do que se devia esperar de uma casa cabeça de uma Ordem de tal vulto e preponderância como a de Cristo; a primeira das duas principalmente nos pareceu pequena, e em nenhuma maneira capaz de conter a reunião dos estados do reino nas cortes de Filipe II. Nós não estamos decididos a crer que aí precisamente fossem celebradas; entretanto a tradição uniforme da vila de Tomar, onde talvez a recebeu о P. Carvalho na sua Corographia, assevera que efectivamente tiveram lugar na casa do capitulo. Elrei D. Manuel já havia sentido a pouca capacidade da antiga, porque princípio a outra que seria digna e grandiosa se acabada fosse; о que dela está feito se conserva há mais de três séculos exposto tempo com uma tenacidade estupenda. No topo dela se vê ainda о grande nicho ou pavilhão de cantaria lavrada que verosimilmente devia servir para trono de reis, ou para colocar a cadeira do mestre da Ordem que era о mesmo. О trabalho e despesa desta construção gigante só podem ser avaliados quem for ali contemplar a solidez do edifício, a sua altura a perfeição e luxo dos seus ornatos, e mais que tudo o despenhado do local, que devia tornar sumamente difícil о trabalho dos operários e a condução dos materiais.
Do estado actual do castelo com sua cerca e baluartes; e do aqueduto e cerca do convento
O castelo de Tomar com sua alcáçova, torreões, baluartes e cerca respectiva, que forma o ângulo saliente do convento de Cristo para o lado do norte e nascente, é tudo obra do Mestre do Templo D. Gualdim Paes. Com sua admirável sagacidade aproveitou ele um morro alcantilado de dificílimo acesso desde o nordeste até ao meio dia; sendo menos íngreme, porém sempre elevado o terreno pelo noroeste e sul. A cerca ou muralha exterior do castelo abrangia largo espaço até 1ª: isto é, até as muralhas que cercavam próximamente as torres do castelo. Desde cessaram as contingencias de invasões inimigas, o espaço compreendido entre a 1ª e 2ª cerca foi convertido sensatamente pelos em muito bons pomares, em hortas, e vinhas, que tudo aí produzia admiravelmente por terem uma exposição vantajosa, e poderem ser regados em todos os pontos por meio de condutos e tanques que aí se vêem ainda porque, porque a água do aqueduto chegava á maior altura do convento, serpentava discorrendo todas as oficinas e dormitórios, e até alguns dos religiosos gozavam dela nos seus jardins e alegretes particulares nos varandins e terrados de algumas celas. As muralhas e baluartes eram fortes, porque existem ainda hoje os da primitiva, à excepção da parte superior dos mesmos, que é visivelmente de data mais recente, o que se conhece até pelo mau gosto de a rebocarem de cal. Nalguns dos ditos baluartes abriram os Freires varandas e janelas donde gozavam uma vista deliciosa sobre a vila, aí tão próxima que se podem reconhecer as figuras dos passeantes, e sobre as hortas e veigas daquela formosa concha, e pelo ameno vale abaixo, partido ao meio pelo rio Nabão desde a Quinta da Granja até ao Lugar de Santa Cita, espaço de duas léguas. Uma observação curiosa que ocorre naturalmente a todos os que sobem a gozar daquele excelente ponto de vista, é que todas as ruas principais da vila estão alinhadas pelo convento, de modo que os olhos dos espectadores não acham embaraço algum e penetram pelo meio das ruas até ao rio, e ainda além no bairro de Santa Iria; prova manifesta da preponderância daquela casa e castelo de que a mesma vila foi uma emanação e dependência.
Outra curiosidade que logo dá nos olhos dos que visitam o convento de Tomar é o luxo de cruzes ali plantadas em todas as construções; no alto das portas de entrada, no aqueduto, nos chafarizes, nos portões do serviço, na cerca, no alto das capelas, nos passadiços, em toda a parte enfim, de modo que actualmente, quando a incúria e desmazelo indesculpável deixou entrar e devassar ali o génio destruidor, se observam a cada passo jazendo por terra algumas daquelas cruzes, umas inteiras outras despedaçadas. Até as séteiras abertas no alto dos muros e dos baluartes eram e são em forma de cruz, como querendo indicar aos mouros que da mesma cruz saíam lançadas e arremessadas as setas contra os que, por um sentimento inseparável de sua crença religiosa, são perpétuos adversários daquele sinal do cristianismo.
No recinto interior do castelo existia uma boa capela de Santa Catarina, de longo tempo arruinada, e mostrando na sua construção ser talvez coeva com a fundação do castelo. Lembra- nos que aquela santa era do Egipto, e aí padeceu martírio; o seu nome se tornou célebre e venerando no Oriente; e como o Mestre D. Gualdim militou por alguns anos na Síria, de crer é que daí trouxesse a devoção à santa; da mesma forma que a tradição lhe atribui a importação de uma preciosa relíquia de S. Gregório Nazianzeno, de que não temos outra notícia.
A cerca murada do convento é vasta, mas de difícil e dispendioso amanho; ela compreende, segundo ali nos disseram, 7 colinas; no meio das quais se forma um profundo vale, única porção de terreno susceptivel de mimosa produção; todo o resto são encostas íngremes e bravas que a perseverança dos Freires chegou a cobrir de vinhas e oliveiras.
Do famoso aqueduto já dissemos alguma coisa; conduz ele duas fortes nascentes de água de quase urna légua de distância; como o terreno que tinha de atravessar era intercortado de montes e vales, se descobrem em muitos lugares suas formosas arcadas, sendo as belas as que se aproximam do convento em considerável altura, e mais estupendas as sitio dos Pegões, onde foi preciso formar duas ordens de arcos para vencer a profundeza vale; aí está urna arca de água magnífica urna inscrição lapidar que indica os seus fundadores. A tradição, repetida pelo P. CarvaIho na sua Corograpbia diz que esta obra custara 60 mil cruzados.
Desta rápida e imperfeita noticia já nossos leitores podem formar algum conceito da importância desta formosa e magnífica fábrica, tanto na ordem moral como física. Quanto a esta mal se poderá fazer ideia adequada sem a ver de perto, e percorrê-la; é um labirinto, um largo e agradável grupo de edifícios e construções variadas, sucessivas ou amalgamadas, formando como uma vila tão vasta como a Tomar. No tempo da guerra peninsular se aquartelaram algumas vezes aí 3 regimentos, e não embaraçavam: os Freires no seu alojamento e obrigações, como que desapareciam na vastidão do recinto. As torres e muralhas do seu elevado castelo conferem a este todo um ar de nobreza e grandeza clássica, que prende a atenção e realça o interesse.
Conclusão: arbítrio ou pensamento nosso para a conservação do convento de Tomar
A Ordem da Milícia de Cristo existe, porque existem grão cruzes, comendadores, cavaleiros; e os reis de Portugal se presam sem dúvida de serem governadores e perpétuos administradores da Ordem; o que foi extinto unicamente foram os Freires conventuais, ou antes a conventualidade e regularidade dos Freires. Subsiste pois a Ordem de Cristo e esta por seu interesse, por sua honra e pundonor nacional deve com empenho procurar o reparo e conservação da casa cabeça da Ordem, a que estão ligadas ilustres e gloriosas recordações. Se o governo, tendo muito a que acudir, se não puder encarregar dessa tarefa, recabe ela naturalmente sobre a associação dos grão cruzes, comendadores e cavaleiros, em todas as partes do mundo em que existirem, como sócios e confrades dela pelo facto da sua profissão, e mesmo pelo de trazerem e se honrarem com a insignia da Ordem.
Três arbítrios nos ocorrem para esta empresa, que nenhum homem de coração português deixará de reputar bela e honrada:
1. - Transferir-se para aquela casa alguma instituição útil, como um seminário um colégio de educação, ou outro qualquer instituto composto de indivíduos e rendimento capaz de conservar tão grande fábrica. A famosa abadia de S. Dinis em França está hoje convertida em casa de educação das filhas dos oficiais da Legião d'Honra
2. Reestabelecer em certo modo aquela imposição antiga que pagavam para a fábrica do convento de Cristo todos os beneficiados da Ordem; estabelecida a mesma imposição por bulas pontifícias a petição dos Reis portugueses como Grão Mestres, depois de reclamada pela necessidade nos capítulos gerais, e incorporada finalmente nos Estatutos e Definições da Ordem no T. 1 9 part. 2ª, que diz assim: «Declaramos que pela Graça que a Santa Sé Apostólica concedeu aos Vigários, e Freires, Coadjutores, Comendadores, e Cavaleiros desta nossa Ordem, que podessem testar (o que dantes não podiam), lhes impôs a obrigação de pagarem três quartos da renda de um ano da Vigararia, Benefício, Coadjutoria, Comenda, ou Tença que com o Habito lhes seja dada; com o que ficarão hábeis para testar de todos seus bens.» E no 1º do mesmo T. se lê: «estão aplicados estes três quartos para a fábrica do convento de Tomar.» Ora no estado actual das coisas essa imposição пãо pode recair sobre o rendimento das comentas, beneficio ou tença, nem ser por ele arrecadada; porém como subsiste o motivo da graça, a causa debendi, se deveria substitui-la por urna certa compensação, e esta com ainda maior necessidade e urgência de aplicação para a fábrica do convento. Desta substituição temos já um exemplo prático no império do Brasil (cuja coroa julgou partilhar com Portugal o mestrado das 3 ordens militares). Aí os providos em alguma das insígnias e dignidades das Ordens têm obrigação de dar a prenda para a Ordem a que ficam pertencendo; e sem esse pagamento se Ihes não passa alvará de provimento e encarte.
О 3º arbítrio finalmente consiste numa quotização voluntária dos confrades da Ordem; esta confraria é vasta e poderosa; nela se compreendem Reis, príncipes, grandes generais, ministros, diplomatas, além de muitos de inferior hierarquia; á testa de todos está o soberano português como sucessor do Grão Mestre, aquele que pelo facto da sua entrada na Ordem prestava juramento solene de manter e sustentar as regalias e privilégios da Ordem como é expresso nos citados estatutos na part. 1ª tom. 5º; todos os demais têm deveres religiosos a cumprir pelo facto da profissão, e os que inconsideradamente se eximem dela têm os deveres de brio e pundonor, que também é vinculo de obrigaçôes para cavaleiros. Ora se aparecesse um papel congruente de convocação, um Prospectus em que se ponderasse a relevância do reparo e conservação da casa capitular, cabeça e fundação da Ordem, qual seria o individuo a ela pertencente, nacional ou estrangeiro, que se recusasse a uma módica quotização anual ? E esta contribuição voluntária, que repartidamente não seria pesada, colocada num banco ou noutra instituição mercantil segura, estabeleceria um fundo para a manutenção e reparos ordinários do edifício e para a sustentação dos guardas indispensáveis que aí habitassem, os quais poderiam (e deveriam) ser alguns cavaleiros ou Freires da Ordem mais necessitados. E os curiosos nacionais e estrangeiros que por acaso aí fossem visitar aquelas honradas e venerandas ruínas dos tempos primitivos, e as construções existentes de um infante D. Henrique, de um D. Manuel, e D. João III; em lugar de uma solidão triste, e de um desamparo e abandono indecoroso, aí encontrariam agasalhado abrigo, e homens polidos e versados na história daquela casa, para os receberem e instruírem
J.С. N. С.
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