História
Tomar
2ª parte
Da Ordem do Templo à Ordem de Cristo
Memória acerca do convento de Cristo em Tomar
Prósperos e brilhantes continuavam os negocios da Ordern até ao ano 1190; porém no decurso deste uma furiosa borrasca veio perturbar tanta ventura. O Miramolim de Marrocos, Abu Jussof havia falecido em Algeciras das feridas e desgosto da derrota de Santarém em 1184, e deixando o trono e o califado do ocidente a seu filho Jacub lhe legou particularmente o encargo de vingá-lo e aos seus das injurias e malfeitorias dos cristãos. Com efeito, no ano 1190, reinando já em Portugal elrei D. Sancho, veio em pessoa o orgulhoso e irritado Califa, acompanhado de inúmeravel exército, que as memorias do tempo elevam a um número quase prodigioso, e atravessando a Beira assentou seu campo em volta do castelo de Tomar, estendendo-se pelas povoaçôes vizinhas, e por outras como Torres Novas, que nessa ocasião foi assolada. Achando os Freires do Templo determinados a defender-se, ordenou aos seus assaltassem o castelo, que por 6 dias sucessivos foi combatido com a fúria e tenacidade que é de supôr de muçulmanos que acommetiam à vista do que dizíam chefe dos crentes, irritados da pequenês do recinto acometido e do número de seus defensores. Repelidos sempre pelos templários vingavam- se os mouros na povoação da vila em que nãо deixaram pedra sobre pedra; mas desenganados por fim levantaram seus arraiais e deram volta para as suas terras. Este grande sucesso com o livramento prodigioso dos cercados, consta do letreiro que ainda hoje dura insculpido numa lápide do castelo, em que se lê o seguinte traduzido do latim bárbaro daquele tempo: « Nа era 1228 (ano de Cristo 1190) aos 3 dias das nonas de julho veio a Miramolim de Marrocos com 400 homens de cavalo e 500 de pé combater este castelo, e o teve cercado seis dias, destruindo tudo se achava fora de seus muros. E foi Deus servido livrar ao mestre D. Gualdim e aos Freires das mãos de seus inimigos. O rei de Marrocos foi obrigado a retirar-se e a voltar para a sua pátria com inúmerável perda em homens e cavalos.» A tradição porém supre a sucinta notícia do letreiro que nessa ocasião do sítio houvera um conflito tâo aceso junto a uma porta do castelo, que se ficou chamando «porta do sangue» pelo muito que aí derramaram os mouros. Nós procurámos com grande curiosidade esta porta, que será custosa de descubrir sem um guia e prático do local; e tivemos a fortuna de a contemplar por entre uma emaranhada balsa de silvas e arbustos silvestres que a ocultam. Existe ela na extremidade du um caminho coberto que antigamente saía para o lado nascente fronteiro á vila. A dita porta era postigo ou porta falsa destinada a fazerem-se por ela sortidas contra o inimigo; pareceu-nos que desde muitos anos foi tapada de pedra e cal formando hoje parte do muro; porém pela parte interior se contempla ainda muito distintamente o caminho coberto e o âmbito da porta encaixada na raiz da muralha, e o arco da abobeda de cantaria em que no centro se vê entalhada a cruz da Ordern do Templo. De crer é portanto à vista do mau resultado empresa para os mouros, e do azado da porta, que enquanto os inimigos dos cristãos atacavam o castelo pelos outros mais accessíveis, sairiam estes em sortida forte pelo dito caminho cpberto e seu postigo, e fariam grande estrago em seus contrários desprevenidos ou desfavorecidos no ingreme da encosta. É certo que a interpreza do castelo de Tomar se tornou funesta aos mouros, porque a crónica gótica concorda em substância com o letreiro acima, e a história árabe, suposto oculte segundo o costume dos muçulmanos o que lhes é desairoso, apontea contudo a jornada do Miramolim até aos campos de Santarém e a sua voila a Marrocos sem ganhar praça ou castelo em Portugal e apenas rico de despojos e com «13 cativos entre mulheres e crianças»; ostentação digna dos sequazes de Mahomet. Desde então nunca mais о distrito de Tomar foi assoberbado рог invasões muçulmanas; e os templários para acharem inimigos da cruz que combatessem Ihes era forçoso passar as raias de seus dominios e tomar parte nas guerras e expediçôes da Andaluzia e do Algarve, até mesmo ajudando os reis vizinhos da Península, como sucedeu na tomada de Sevilha, e na batalha das Navas de Tolosa. Os reis e os príncipes portugueses trataram sempre a Ordem do Templo com grande veneração e consideração, e não só em vida Ihe fizeram mercês e donativos, mas até nas ultimas disposições testamentárias se lembravam ordinariamente deles com especial deferência, como se pode ver do contexto dos que se acham ñas provas da Hist. Geneal. do P. Souza: «chegando elrei D. Afonso II a precaver que na minoridade possivel de sucessor à corôa fossem os templarios os guardas, depositarios e defensores do reino para lho entregarem depois.»
Assim progrediu e engrossou a Ordem do Templo nos 6 primeiros reinados, quando em tempos d' elrei D. Dinis sobreveio a catastrofe da sua extinção no concílio de Viena no Delfinado no ano 1311, havendo durado quase 214 anos depois da sua instituição. Não é do nosso assunto moralisar sobre a justiça e conveniência deste estrondoso acontecimento, que ainda hoje tem como em suspensão todos os homens pensadores; é certo, contudo, que os templários de Portugal foram achados sem culpa, e elrei D. Dinis, o homem do seu tempo talvez mais capaz de conhecer e venerar a justiça, sujeitando-se como todos os demais príncipes cristãos à medida geral do concílio, fez valer por meio de seus embaixadores ao papa esta circunstância, e respeitar como soberano os direitos da coroa portugueza para não deixar dispor dos bens e casas da Ordem como sucedeu noutras potências. Suspendido assim até certo ponto o golpe transcendente da extinção total da Ordem, o mesmo soberano negociou do papa João XXII, successor de Clemente V, a criação de uma nova Ordem com a mesma nalureza com idêntico destino, com os mesmos domínios, privilégios e isenções, e até com o mesmo hábito dos antigos cavaleiros do Templo, e com o mesmo distintivo da cruz, um pouco mais ornada do que a antecedente na extremidade das hasteas; milicia igualmente religiosa e generosa, destinada a combater infiéis e a defender o reino das invasões maometanas; sujeita ao chefe da igreja na parte religiosa, e obedecendo aos reis portugueses como cidadãos e como cavaleiros, o que foi desde o começo clausula e condição fundamental da sua admissão e estabelecimento. Expediu enfim o papa João XXII, estando em Avinhão, a bula da criação e fundacão da nova milicia da Ordern de Nosso Senhor Jesus Cristo, em 14 de março de 1319, a qual foi aceite por elrei D. Dinis em Santarém, aos 5 de maio do mesmo ano. E para não ficar dúvida alguma de que a nova Ordem era como uma substituição e transformaçao de outra Ordem de cavalaria, destinada aos mesmos fins, lhe nomeou logo Mestre D. Gil Martins, que antes о era de S. Bento de Aviz, por cuja regra e estatutos se ficou governando a Ordem de Cristo enquanto não teve Definições e estatutos próprios.
Do castelo e convento de Tomar pertencentes já á Ordem de Cristo
«Entre as demais causas (diz o papa João XXII na citada bula) e razões que nos foram expostas por parte do mesmo rei D. Dinis por seus procuradores o nobre varão João Lourenço, cavaleiro de Monsarás, e o muito veneravel padre Pedro Peres, conego de Coimbra, foram as graves injúrias e inumeráveis dão-nos, e outros diferentes e enormes males que lhe tinham feito e nâo cessavam de fazer os sarracenos, inimigos perpétuos da fé, assim nos anos passados como até agora; e porque no Algarve que é fronteira dos ditos inimigos, e na praça de Castro Marim e seu fortissimo castelo, se havia de estabelecer uma nova milicia de lidadores de Cristo, com ajuda dos quais e seu propósito se poderia dar remédio de ora avante ás injurias, danos e males em que a fera mão do inimigo se tem empregado há muito tempo, e descobrir-se caminho mais fácil, não sómente para resistir aos rebates dos inimigos, mas ainda para quebrantar e rebater o impelo e acometimentos dos mesmos, e para recuperar outras partes intermédias que estavam ocupadas desde muito tempo por suas enganosas ciladas. Nós, tendo entendidas diligentemente as ditas causas e razões, e discorrendo nelas com atenta consideração por amor da segurança e amparo dos fiéis, e por muitos bens que com о favor de Deus daíi se haviam de seguir, dispozemos de acolher favoravelmente o louvavel intento que nesta parte tinha elrei.»
Atentem reflectidamente os leitores nalgumas das frases deste rescrito, e notem aí apontados os prognósticos dos altos e venturosos destinos da nova milicia de Cristo. Aí se não continham sómente as tarefas, aliás relevantes, de repelir as incursöes barbarescas, e guardar a fronteira de seus ataques e devastações, mas também se antevia a possibilidade de recuperar outras partes ocupadas desde longo tempo pelas ciladas de Mahomet e seus sectarios, e se punha já a mira em outros bens e contingências felizes que daí se haviam de seguir. Admiravel vaticinio, que, em menos de um século, se principiou a verificar na tomada de Ceuta, e em pouco mais desse espaço se executou á letra nos descobrimentos, navegações, e conquistas do nobre Mestre da dita milicia, o infante D. Henrique, e nas demais que se seguiram até o estabelecimento do imperio português no Oriente.
Conforme os votos do soberano português, e os motivos da criação da Ordem de Cristo, se estabeleceu no começo a sede e cabeça dela na praça e castelo de Castro Marim, onde é de supôr que residira o primeiro Mestre dela, D. Gil Martins, com a flor dos cavalleiros aptos para a guerra. No governo desle e de seus sucessores D. João Lourenço, D. Martim Gonçalves Leitão, D. Estevão Gonçalves e D. Rodrigo Annes é provavel que não houvesse alteração nesta disposição, e que о castelo e convento de Cristo estivesse regido por um Comendador mór que era о primeiro em graduação de toda a Ordem depois do Mestre. Em tempos porém d'elrei D. Pedro I, ou fosse que о enfraquecimento dos mouros na Peninsula, limitados ao reino de Granada, e as excursões marítimas dos de Barberia fossem já menos temíveis, ou enfim por outras causas que ignoramos, voltou a residir em Tomar no ano de 1356 o Mestre da Ordem D. Nuno Rodrigues, pessoa de grande consideração e valimento para com o mesmo soberano; e daí em diante até os nossos dias ficou sendo constantemente a mesma casa de Tomar cabeça e baliado de toda a Ordern de Cristo.
Sucedeu a D. Nuno Rodrigues D. Lopo Dias de Sousa, sobrinho da rainha D. Leonor, em tempos d' elrei D. Fernando, o qual governou a Ordern por espaço de 46 anos. No convento e castelo de Tomar se achava ele quando aí passou o infante D. João com a tensão sinistra de matar-lhe a mãe em Coimbra, e daí lhe expediu inútilmente aviso o dito Mestre, como contam nossos chronistas. Aí mesmo residia quando de volta de Abrantes descia para a jornada de Aljubarrota o condestável e logo depois elrei D. Joao I; e com quanto a obscuridade da epoca e os interesses embates dos partidos o contivessem então numa espécie de observação e neutralidade armada, é certo que debatidos, declarados e definidos os direitos nacionais que puseram a coroa na cabeça do ilustre Mestre de Aviz, o mesmo D. Lopo não sómente se decidiu com a Ordern de Cristo a favor da nova dinastia, apesar de ser ele mesmo ramo da antecedente, ligado por interesses de familia à rainha de Castela, mas ajudou grandemente a restauração do reino pondo-se em campo, combatendo o partido castelhano até ficar prisioneiro infeliz tentativa de Torres Novas.
Continua
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